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domingo, 29 de maio de 2016

É preciso por fim à cultura do estupro!





"Não tem 30 monstros juntos. Não tem patologia nisso. É uma questão cultural. São 30 pessoas que participaram do crime e nenhuma delas agiu para evitar que aquele crime acontecesse. Isso revela uma sociedade criminosa e violenta contra a mulher. Que enxerga que o corpo da mulher é feito para o homem usufruir (...) Por tudo isso, esse caso precisa de uma punição exemplar. E acima de tudo, precisamos fazer um trabalho de educação de gênero, de respeito ao corpo da mulher e aos direitos dela" (Dra. Silvia Chakian, promotora de justiça e coordenadora do Grupo Especial de Enfrentamento à Violência contra a Mulher (GEVID), do Ministério Público do Estado de São Paulo, citada na matéria 'A Índia é aqui': Impunidade fez estupro coletivo virar motivo de ostentação, diz promotora, publicada no portal G1)

O crime de estupro coletivo cometido contra uma adolescente de 16 anos, no Rio de Janeiro, além de despertar a sociedade brasileira para a questão da impunidade, deverá promover também outros debates acerca do respeito aos corpos das mulheres. 

Na postagem anteriormente publicada neste blogue, A barbárie brasileira, citei um episódio da Bíblia que narra um caso semelhante que é sobre a concubina do levita, revelando a que ponto pode chegar uma sociedade quando o Estado é ausente. Porém, hei de reconhecer que as Escrituras Sagradas trataram a questão dos direitos da mulher de maneira incompleta já que, na referida passagem, o corpo da vítima é usado como uma troca para proteger a integridade física de seu companheiro:

"Quando estavam entretidos, alguns vadios da cidade cercaram a casa. Esmurrando a porta, gritaram para o homem idoso, dono da casa: 'Traga para fora o homem que entrou na sua casa para que tenhamos relações com ele!' O dono da casa saiu e lhes disse: 'Não sejam tão perversos, meus amigos. Já que esse homem é meu hóspede, não cometam essa loucura. Vejam, aqui está minha filha virgem e a concubina do meu hóspede. Eu as trarei para vocês, e vocês poderão usá-las e fazer com elas o que quiserem. Mas, nada façam com esse homem, não cometam tal loucura!'" (Juízes 19:22-24; NVI) 

Sem dúvida que o texto bíblico acima registra a moral de uma época e num determinado local, sendo que a fala do anfitrião expressa uma menor importância que a mulher teria dentro daquela cultura esquecida dos valores éticos da legislação de Moisés. Aquele era um mundo essencialmente masculino, refém do milenar patriarcalismo, algo que esteve muito forte não só nas sociedades do antigo Oriente Próximo como também em Grécia e Roma.

Apesar do cristianismo ter valorizado a mulher, não houve uma educação capaz de promover o respeito pela vontade alheia durante a bimilenar existência da Igreja. Por exemplo, o sexo entre marido e mulher, sem que a esposa manifeste uma concordância, raríssimas vezes parece ter sido objeto de algum sermão proferido nos púlpitos das congregações religiosas. O foco das pregações ate hoje ainda cai mais sobre o respeito pela companheira do próximo e as ideias de "pureza sexual", mas a limitação permanece quanto aos demais aspectos do tema.

Por sua vez, carecemos ainda de um programa de educação sexual mais eficiente  nas escolas e fora delas capaz de prevenir melhor o estupro e combater a desigualdade de gênero. E, sem querer exagerar, entendo ser perfeitamente possível uma mulher andar peladona na rua e os homens respeitarem-na em todos os locais. Mesmo que o sujeito tenha uma reação instintiva ou venha a ingerir bebida alcoólica, o ato violento jamais se justifica. Aliás, como abordou a feminista Susan Brownmiller em sua obra Against Our Will: Men, Women, and Rape (1975), o estupro constitui uma forma de violência, poder e opressão masculina e não de desejo sexual. Ou seja, o delito seria uma forma consciente de manter as mulheres em estado de medo e intimidação.

Além disso, é preciso também mudar a mentalidade existente na sociedade de que a vítima possa ter dado causa à violência sofrida pelo seu medo de vestir ou agir. Lamentavelmente, esse ainda tem sido o pensamento de vários ilustres operadores do Direito tais como como advogados, delegados de polícia e até mesmo magistrados. Inclusive, não faz muito tempo, um policial do Rio de Janeiro, ao ser convidado para orientar a comunidade sobre segurança, disse que as mulheres poderiam evitar o estupro se "não se vestissem como vadias". Tal declaração causou muita indignação entre as lideranças feministas e pessoas esclarecidas da sociedade, motivo pelo qual foi organizada uma passeata no dia 26/05/2012, na Praia de Copacabana, a qual ficou conhecida como a Marcha das Vadias.

Nos estudos de vitimologia, busca-se, por exemplo, diagnosticar até que ponto o comportamento da vítima teria contribuído para a ocorrência de um delito. Mas data venia, não existe o mínimo respaldo para alguém afirmar que uma mulher vestindo trajes de "piriguete" facilitou o estupro! A atitude da vítima, neste caso, é bem diferente das situações em que, por exemplo, acontece um assassinato decorrente de briga em que um ofendeu a mãe do outro (mesmo assim não justificaria a morte). Logo, as mulheres não podem passar a viver sem liberdade de se vestir, ou de se expressar, por causa da existência de estupradores e nem justifica haver um abrandamento da pena do autor do fato com base na falta de indumentária da vítima.

Sendo a vítima prostituta, usuária de drogas ou esteja ela ainda no quarto com um homem tendo um relacionamento afetivo por livre vontade, nenhum ato sexual pode ser praticado contra o seu consentimento. Deste modo, não há motivos para a sociedade tolerar que profissionais do sexo continuem sendo abusadas e humilhadas por se tratar de um atentado à dignidade humana, mesmo que o cliente venha a pagar pelos seus serviços.

Bem, se pensarmos como acontece um estupro, entendo que existe uma preparação do ato, uma cogitação e uma execução (fase da tentativa do delito). Em outras palavras, nenhum homem vê uma mulher em trajes sensuais e vai imediatamente estuprá-la. Antes, ele toma uma decisão em seu íntimo e resolve por em prática as ações necessárias para a satisfação de sua lascívia, mesmo sem a concordância da mulher, usando aí de violência ou de grave ameaça. Até mesmo fazendo uso da coação psicológica.

Na hipótese de um estupro coletivo, em que vários homens abusam de uma só mulher, temos ali uma situação que considero ainda pior. Até porque, no caso da jovem violentada no Rio de Janeiro, os criminosos manteriam um lugar específico para se aproveitarem de outras vítimas, sendo provável que outras jovens teriam sido levadas antes para aquele local de horrores. Logo, o episódio que chocou o Brasil tornou-se emblemático e demonstra a gravidade da questão da violência contra as mulheres no país (a cada dez minutos uma pessoa é estuprada, sendo quase 90% mulheres), tratando-se de uma violência patriarcal encarnada, mas que precisa ser combatida por toda a sociedade.


OBS: A ilustração acima refere-se à obra Tarquínio e Lucrécia, uma pintura de 1571 feita pelo artista italiano Ticiano (ca. 1473/1490 — 1576), conforme extraí do acervo virtual da Wikipédia, onde consta que: "O estupro de Lucrécia, uma patrícia romana, seguido do seu suicídio, deflagrou um processo que culminou com a queda do Reino de Roma e o estabelecimento da República".

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