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domingo, 31 de janeiro de 2016

O recurso contra decisões interlocutórias nos Juizados Federais




Neste mês de janeiro, fiz uso de um recurso que muitos advogados e "concurseiros" ignoram. Aliás, trata-se da maior pegadinha para quem presta exame na Justiça Federal ou pretende trabalhar na Advocacia Geral da União (AGU), Procuradoria do INSS ou na Fazenda Nacional.

Se você acha que, nos Juizados Especiais, não cabe recurso contra interlocutórias, tal entendimento não se aplica totalmente à Justiça Federal.

De acordo com os artigos 4º e 5º da Lei Federal n.º 10.259/2001, a qual dispõe sobre a instituição dos Juizados Especiais Cíveis e Criminais no âmbito da Justiça Federal, existe uma única hipótese em que o litigante pode tentar a reforma ou modificação de uma decisão proferida pelos magistrados do JEF que não seja a sentença. Senão vejamos o que diz o texto normativo referenciado:

"Art. 4o - O Juiz poderá, de ofício ou a requerimento das partes, deferir medidas cautelares no curso do processo, para evitar dano de difícil reparação.
Art. 5o - Exceto nos casos do art. 4o, somente será admitido recurso de sentença definitiva."

A primeira vez que me deparei com isso foi em 2007 quando defendia uma paciente que aguardava cirurgia no INTO numa ação movida por ela em face da União. Na primeira instância, obtivemos a medida de antecipação da tutela jurisdicional em que a juíza havia determinado a realização dos exames pré-operatórios para a moça conseguir colocar uma indispensável prótese no quadril, visto que ela necessitava recuperar sua saúde para retornar à vida laboral. Fui então surpreendido ao receber uma publicação das Turmas Recursais para apresentar as contra-razões num recurso chamado de "medida de urgência", o que fiz dentro do prazo legal, tendo a Justiça mantido a liminar. Felizmente ela operou e deu tudo certo.

Neste ano, porém, quem entrou com o recurso fui eu numa ação de minha esposa em face do INSS, referente a uma revisão de benefício em que a autarquia resolveu consignar a cobrança de valores que teriam sido recebidos a maior de boa-fé durante cinco anos, por motivo de erro administrativo da própria Previdência Social. Sinceramente, achei que fosse quase uma causa ganha baseando minha expectativa num posicionamento recente da Turma Nacional de Uniformização (TNU) dos Juizados Federais. Esta havia reafirmado o entendimento de que não cabe a devolução de parcelas de caráter alimentar recebidas de boa-fé no Processo n.º 5001609-59.2012.4.04.7211, cujo relator foi o juiz federal Dr. Paulo André Espírito Santo. Para tanto seria necessária a verificação desses requisitos:

"(...) restando caracterizada: 1) a boa-fé do segurado; e 2) o caráter alimentar do benefício, há de se rechaçar a possibilidade de o INSS reaver os valores dos benefícios previdenciários indevidamente concedidos. Presentes os dois requisitos cumulativos no caso concreto, não se cogita de devolução (...)"

Entretanto, a compreensão sobre esse importante tema não se encontra tão uniformizada assim! Ao ajuizar a ação perante a 1ª Vara Federal de Angra dos Reis, pelo rito sumaríssimo dos Juizados Especiais, o pedido sobre tutela antecipada para impedir a consignação foi negada na primeira instância. E aí não me restou outra alternativa senão recorrer para as Turmas Recursais no Rio de Janeiro na expectativa de que a questão viesse a ser reapreciada por um magistrado que tivesse o mesmo entendimento do Dr. Paulo André.

A forma desse recurso pode ser feita semelhantemente ao do agravo de instrumento, mas não exige o mesmo nível de rigidez previsto no Código de Processo Civil. Pelo menos aqui no Rio de Janeiro, onde os processos são todos eles eletrônicos, não há mais a necessidade do advogado se responsabilizar pelas cópias que formarão o instrumento. E, se eu houvesse tomado conhecimento a mais tempo da Resolução n.º TRF2-RSP-2015/00007, de 24 de março de 2015, a qual dispõe sobre o Regimento Interno das Turmas Recursais da 2ª Região, confesso que não teria contribuído com a derrubada de tantas árvores quando imprimi 153 folhas na sala da OAB em Itaguaí pagando R$ 0,50 por cada impressão. Isto porque, no capítulo IV da Seção I, que fala sobre os recursos, o seu artigo 15 orienta o seguinte:

"Art. 15. Aplicam-se aos recursos dirigidos às Turmas Recursais os princípios da celeridade, da informalidade, da simplicidade e da economia processual, regendo-se o seu processamento pelas normas das leis especiais que lhe são próprias e aplicando-se, subsidiariamente, as normas do Código de Processo Civil e do Código de Processo Penal, somente se compatíveis com tais princípios. 

Parágrafo único. Sempre que for possível o acesso aos autos virtuais, será dispensada a juntada de cópias de peças neles contidas." (destaquei)

O fato é que, quando deixamos de nos atualizar, não acompanhando as mudanças do mundo jurídico, tornamo-nos cada vez menos advogados. E eu, tendo praticamente parado de militar no Direito no final da década passada, em razão do agravamento da doença da esposa (e de minha incapacidade de gerir os problemas pessoais junto com a profissão), não me dei conta dessa boa novidade surgida em 2015. Ou seja, graças ao processo eletrônico, já não precisamos mais gastar tanto tempo, dinheiro e papel fazendo cópias/impressões para instruir um "agravo" contra decisão interlocutória de juiz do JEF. A única dificuldade, porém, é que a Justiça Federal ainda exige que o causídico compareça pessoalmente para levar a sua petição de recurso até o protocolo das Turmas Recursais, o qual fica no 8º andar do bloco "B" do prédio da Rua Venezuela, no Centro do Rio de Janeiro. Algo, a meu ver, injustificável tendo em vista as oportunidades geradas pela tecnologia nos processos.

Por que será?!

Bem, essa pergunta deixo para o egrégio Tribunal nos responder sendo óbvio que, nas mentes dos advogados adeptos das teorias conspiratórias, não faltariam desconfianças no sentido de que a dificuldade existiria justo para desestimular a interposição dos recursos sobre "medida de urgência". Contudo, ter viajado de Mangaratiba até à região da zona portuária carioca valeu a pena. Aproveitei para avistar de longe o tal do Museu do Futuro, recentemente inaugurado na Praça Mauá. E, antes de pegar o ônibus do Rio para Itaguaí, dei uma voltinha no teleférico que vai da Central até à Gamboa, passando pelo histórico Morro da Providência. Esta era uma área da Cidade Maravilhosa até então desconhecida para os meus olhos e pés.

Quanto ao recurso de minha esposa, não tive sorte no que diz respeito ao pedido de antecipação da tutela recursal. A magistrada não só considerou a inconstitucional "previsão legal para que o INSS proceda ao desconto de valores recebidos indevidamente pelos segurados (art. 115, II da Lei nº 8.213/91)", como também fundamentou-se nas jurisprudências a meu ver contrárias ao entendimento da TNU. De acordo com ela, "embora comprovada a boa fé do beneficiário, é cabível a cobrança de tais quantias quando o erro foi escusável e não decorreu de interpretação equivocada ou má aplicação da legislação regente pela Administração". Além disso, não foi aceita a alegação de haver dano irreparável como se os advogados de hoje ganhassem o suficiente para terem uma vida digna:

"(...) Por fim, no que concerne ao alegado risco de dano irreparável ou de difícil reparação, apesar de a autora ter recebido o valor de R$ 855,78, a título de aposentadoria, em Novembro/2015 (fl. 35), e arcar com o pagamento do Plano de Saúde no valor de R$ 465,91, observo que é casada com o advogado que a defende nos presentes autos, o que afasta o risco de ter sua subsistência comprometida (...)" - (Recurso de Medida Cautelar n.º 0500016-14.2015.4.02.5161/01 - DECISÃO MONOCRÁTICA EM ATUAÇÃO TABELAR - Juíza Federal Drª Cynthia Leite Marques - Publicado em 29/01/2016)

Lamentavelmente, minha mulher agora começa a receber em fevereiro menos de um salário mínimo por mês. Pois, com a consignação da cobrança no benefício dela, a renda mensal atual de Núbia passa a ser de parcos R$ 666,62 (seiscentos e sessenta e seis reais e sessenta e dois centavos).

De qualquer modo, as apreciações do recurso e do processo originário ainda não terminaram sendo que, quanto às decisão judicial, só existem duas opções: cumprir ou recorrer. E isto é o que, via de regra, deve ser feito por todo advogado que tem respeito pelo seu cliente e pela profissão que exerce.

Portanto, meus caros colegas, usem e abusem dessa modalidade de recurso quando estiverem atuando perante os Juizados Especiais Federais. Divulguemos a informação a fim de que possamos lutar incansavelmente pelo Direito. Ainda que muitas das vezes essa luta pareça ingrata.

Uma ótima semana a todos! 

quinta-feira, 28 de janeiro de 2016

Seguidores sendo arrebatados dos blogues



Olá, amigos!

Desde ontem, eu me angustiava com o que estaria acontecendo com essa contínua redução no número de seguidores nos diversos blogues administrados pelo Google, inclusive nos meus. Pensei logo num ataque de hackers ou que o Blogger resolveu deletar contas inativas. Porém, descobri hoje o motivo ao acessar o Pitéis da Dinha em que a blogueira esclarece no artigo SEGUIDORES SUMINDO DOS BLOGS que, a partir de agora, para ser um seguidor, o interessado precisa ter uma conta no Google....

Menos mau, porém acho que houve uma tremenda falta de consideração com os usuários do Blogger, quer sejam blogueiros ou leitores. Principalmente por causa da falta informações! Até mesmo porque o internauta pode não saber o real motivo pelo qual foi deletado do rol de seguidores e pensar que foi ato praticado pelo administrador da página.

Infelizmente, a internet ainda é terra de ninguém e inexiste a tão sonhada democracia virtual. Manda quem é o dono do site de relacionamento que, neste caso, é o Google.

Portanto, quem desejar seguir os meus blogues, agora precisará abrir uma conta no Google.

Um ótimo dia a todos!


OBS: Imagem acima extraída de http://www.evangelhoperdido.com.br/wp-content/uploads/2014/08/arrebatamento.jpg ilustrando as ideias apocalípticas sobre o arrebatamento da Igreja

quarta-feira, 27 de janeiro de 2016

O político que tentou virar honesto




Na brasileiríssima cidade de Corruptópolis, houve um vereador que resolveu se tornar um político honesto, Após uma grave crise existencial, eis que, durante uma madrugada de insônia, pegou a sua maleta cheia de dólares, tirou o carro da garagem e dirigiu direto à mansão do prefeito. Chegando lá, foi logo abordado pelo vigia da casa, o qual, embora devesse cumprir o seu plantão como policial militar, estava fazendo um servicinho extra ali:

Segurança: Pois não, vereador? O que deseja?

Vereador: Quero falar com o prefeito já!

Segurança: Senhor, tenho ordens para não deixar ninguém entrar nesse horário.

Vereador: Meu assunto é urgente, rapaz! Diga ao prefeito que é algo do interesse dele.

Segurança: Só um momento, vereador.

Após telefonar da portaria até à residência, o vigia obteve autorização para deixar o vereador passar uns cinco minutos depois. De pijama, o prefeito pôs-se de pé para receber o seu edil:

Prefeito: Em que posso ajudá-lo, vereador? Espero que tenha um motivo bem relevante para me tirar da cama a essa hora da noite. Venha até o meu escritório.

Saltando do carro, o vereador entrou na casa do prefeito onde resolveu logo abrir a mala com meio milhão de dólares e esparramar todo o dinheiro no chão.

Prefeito: O que significa isso, vereador?

Vereador: Estou devolvendo tudo quanto recebi de propina por todos os meses deste meu mandato. Risque meu nome da lista desse seu mensalão sujo!

Prefeito: Não estou entendendo, vereador. Comprei o seu apoio e você cumpriu direitinho o nosso acordo por todo esse tempo, aprovando meus projetos, votando o orçamento e acompanhando o líder do governo nos seus posicionamentos. A grana é sua e trate de guardá-la imediatamente num lugar seguro para não sujar pra ninguém.

Vereador: O dinheiro não é meu e nem seu. Pertence ao povo!

Prefeito: Onde você quer chegar? Diga logo aquilo que pretende porque eu quero dormir. Se estiver insatisfeito com o valor, posso estudar um aumento para você ou conseguir colocar mais gente sua num dos programas do governo, caso desenrole uns dois projetos pra mim lá na Câmara. Só que isso não é assunto para falarmos agora e...

Vereador: Não quero mais participar do seu jogo sujo! Daqui por diante, só vou defender o povo e estarei na oposição. Mas pode ficar tranquilo que não denunciarei nada sobre a sua compra de votos na Câmara.

Prefeito: Não enche o meu saco, vereador! Olha que eu exonero aquelas vinte pessoas indicadas por você e que foram contratadas temporariamente pela Prefeitura. Inclusive o seu cunhado e as duas sobrinhas que estão lá na Secretaria de Inclusão Social.

Vereador: Faça como bem entender. Está aqui o dinheiro!

Prefeito: Tudo bem. Só que não terá devolução pela perda de sono que está me causando. Lembre-se que vai precisar de grana para a sua campanha. Tem certeza do que está querendo fazer?

Vereador: Absoluta! E pouco importa se vou ser reeleito ou não. Quero usar o tempo que resta do meu mandato para concretizar alguma coisa útil em benefício do povo. Tenha uma boa noite, prefeito.

Saindo dali, o vereador passou em frente ao hospital da cidade, viu já naquele horário uma fila enorme de pessoas aguardando pelo atendimento de saúde e resolveu conversar com os eleitores. Foi então que uma senhora o reconheceu.

Eleitora: Meu vereador! O senhor por aqui? 

Vereador: Olá, minha senhora. Enorme essa fila, não? Não deu nem quatro horas da madrugada e já está desse jeito.

Eleitora: É a fila da marcação de consulta com o cardiologista, vereador. Toda primeira terça-feira do mês abre a agenda dele para atender apenas cinco pacientes por semana durante todo o mês.

Vereador: Caramba! Eu não imaginava essa. Achei que até sobrassem vagas porque a secretária de saúde sempre atendia aos meus pedidos para encaixar novos pacientes.

Eleitora: Puxa! Se eu soubesse disso, teria procurado o seu gabinete para não ficar aguardando aqui. Olha! Lá em casa moram oito pessoas e...

Vereador: Mas agora não adianta mais porque acabei de brigar com o prefeito. Se quiser contar comigo, me ajude a fazer um abaixo-assinado que entrego o quanto antes no promotor.

Eleitora: A Câmara não pode fazer nada? Vocês não têm lá uma comissão sobre a saúde com poderes para fiscalizar a Prefeitura?

Vereador: Até pode. Só que ninguém quer brigar. Sou apenas um vereador no meio de mais doze. De qualquer modo, posso falar sobre isso quando for usar a tribuna na sessão de hoje à tarde. Aparece para me dar uma força.

Eleitora: Preferiria que o senhor arrumasse uns refrigerantes para a festa que vai ter na minha rua e conseguisse aquele emprego para o meu neto que havia prometido durante a última campanha. Já estou acostumada a chegar aqui bem cedo. 

Vereador: E a senhora está na fila desde que horas?

Eleitora: Meia noite. Já se encontravam na minha frente aquelas duas moças. Elas vendem o lugar na fila por quarenta reais. Uma é minha vizinha na comunidade, está desempregada e passou a fazer bicos por aqui quase todos os dias. Se puder, dá uma moral pra ela porque a companhia de eletricidade já veio cortar a luz da casa onde ela mora mas acabou lacrando o relógio de um outro barraco que tinha o mesmo número.

Vereador: Não posso fazer isso! Essa madrugada disse para mim mesmo que serei honesto daqui para frente. O meu papel a partir de agora será fiscalizar a Prefeitura e fazer as leis da cidade serem cumpridas. Desculpe se prometi emprego para o seu neto e não poder arrumar os refrigerantes. É que o trabalho do vereador não é esse. Ainda assim, pode deixar que tomarei providências sobre a quantidade de consultas com o cardiologista e a necessidade do paciente entrar na fila só para marcar. Agora deixa eu ver como anda a emergência do hospital. Boa noite.

Ao ingressar na unidade de saúde, os enfermeiros estavam todos dormindo e não foi encontrado quem pudesse responder pelo setor porque o plantonista havia faltado. Também não tinha anestesista e havia apenas a recepcionista acessando o Facebook pelo computador da instituição. Esta nem se deu ao trabalho de minimizar a tela ao ver o nosso edil entrando.

Funcionária: Como vai, vereador? Infelizmente estamos mais uma vez sem médico. Se estiver precisando de atendimento pra algum eleitor, o senhor vai ter que levar a pessoa em outro hospital.

Vereador: Filha, vim aqui saber como anda a emergência.

Funcionária: Por favor, não fale para ninguém o que vou contar. Hoje o médico faltou porque precisou fazer plantão em outro lugar que é uma clínica particular da cidade vizinha da qual ele é sócio. Além disso, todos estão evitando trabalhar aqui, inclusive aquele seu colega da Câmara que é médico, o doutor Joaquim. O raio-X está novamente quebrado, não tem todos os medicamentos, nem esparadrapo e até o papel higiênico dos banheiros acabou. Estamos sem dipirona desde o mês passado e o benzetacil só pode ser aplicado se o paciente comprar a ampola na farmácia. Ontem uma criança nasceu bem ali no corredor porque a médica achou que ainda não era a hora do parto e pela terceira vez tinha mandado a mulher de volta para casa com quarenta e duas semanas de gestação. O senhor é o relator da comissão de saúde, não?

Vereador: Ainda sou e prometo levar esses problemas para serem debatidos na sessão de hoje.

Funcionária: Que bom, vereador! Só peço que não fale no meu nome porque sou contratada por indicação do vereador Ricardo do Poste e preciso do emprego. A propósito, sabe informar quando é que vai ter concurso público para a saúde?

Vereador: O prefeito havia dito pra mim uns dias atrás que, se dependesse dele, nunca. E, nesse ano, como nós vamos ter eleições, fica impossível sair o edital.

Funcionária: Uma pena!

Vereador: Pena você não querer testemunhar essas coisas.

Funcionária: Infelizmente, não posso. Tenho dois filhos para criar e o meu marido é também contratado pela Prefeitura. Trabalha no colégio municipal lá perto da rodoviária.

Vereador: E como vai a escola?

Funcionária: Está sem merenda há duas semanas e os professores estão organizando uma paralisação para amanhã. Ou melhor, pra hoje. Ontem, as aulas precisaram ser suspensas por causa da falta d'água.

Vereador: Que horror! Nunca imaginava que fosse assim. Vou denunciar isso também e, se o seu esposo tiver um tempinho, pede pra ele passar lá no meu gabinete.

Tendo o vereador voltado para a casa, tentou descansar por duas horas e depois se arrumou para estar na Câmara. Chegou bem cedo a ponto de surpreender a todos os servidores da casa já que não era costume dele trabalhar pela manhã.

Porteiro: Bom dia, vereador? O que foi? Madrugou hoje? Não tem nenhuma sessão extraordinária a essa hora.

Vereador: De agora em diante, vou chegar cedo todos os dias e não faltarei mais às sessões.

Porteiro: E esse atestado médico que a secretária do seu médico deixou comigo para justificar a falta que o senhor teve na sessão passada?

Vereador: Por favor, rasgue isso. Vou assumir a falta e aceitar o desconto de quase mil reais no meu pagamento.

Entrando o vereador no gabinete, o seu assessor já estava na sala fazendo umas ligações sobre negócios particulares usando o telefone da Câmara.

Assessor: Patrão, como o pagamento do mês atrasou, só pude vir hoje tomar um café contigo. Eis aí a metade do meu salário, conforme o nosso combinado. Cheguei cedo na casa porque tenho um montão de coisas para resolver lá na loja, preciso fazer uns telefonemas pro exterior e...

Vereador: Pode ficar com o dinheiro todo. Aliás, o salário é seu. Só quero que permaneça aqui e me ajude a elaborar uns requerimentos.

Assessor: Puxa vida! Logo hoje, vereador? O nosso trato foi que eu recebesse sem trabalhar, não era? Por isso é que sempre divido o salário contigo. Tá lembrado? A propósito, nem sei como faz esses requerimentos daqui.

Vereador: Eu errei com você. Só que, a partir de agora, as coisas vão ser diferentes. Se quiser continuar trabalhando, terá que ficar no gabinete de segunda à sexta-feira das oito até meio dia e depois das duas às seis da tarde. Peço que passe a redigir pelo menos umas três indicações pra cada sessão.

Assessor: Não estou entendendo o senhor. Desse jeito não interessa mais ser seu assessor. E, se for para trabalhar, por que vou ter compromisso de fazer campanha esse ano? Por favor. dê o meu contra-cheque porque preciso sair e abrir a loja. Hoje você me pegou de surpresa e assim não é justo.

Sem a ajuda do assessor, o vereador precisou fazer todo o trabalho sozinho. A todo momento o telefone tocava ou chegava alguém para pedir algum favor. E uma das pessoas atendidas foi o representante de uma empresa:

Lobista: Bom dia, vereador. Soube que Vossa Excelência estava na casa e resolvi procurá-lo.

Vereador: O que deseja?

Lobista: Represento uma empresa de limpeza urbana e que pretende participar da licitação da Prefeitura. Soube da influência que o senhor sempre teve junto ao prefeito desta cidade e por isso viemos pedir a sua intermediação para que ele direcione o edital. Rachamos uma comissão de setenta mil e ainda contratamos uns trinta varredores que o senhor nos indicar.

Vereador: Como é que é?! Repete novamente porque eu gostaria de gravar essa nossa conversa pra levar ao Ministério Público. Só um momento que vou pegar meu celular.

Envergonhado, o homem se levantou da cadeira, passou pela porta do gabinete e saiu batido sem se despedir. Depois disto, o vereador ligou para a portaria pedindo para só deixarem as pessoas subirem à sua sala na parde da tarde pois precisava redigir os requerimentos sobre o hospital e sobre a escola antes da sessão começar. Ainda assim, o telefone continuou tocando:

Vereador: Alô!

Telefonista: Vereador, sei que o senhor pediu para não ser incomodado mas é que chegou uma ligação importante de Brasília. Atende aí o deputado João, presidente da Executiva Estadual do seu ex-partido.

Imediatamente o deputado entrou na linha.

Deputado: Meu caro vereador, bom dia. Estou ligando para tratar de um assunto sério contigo. Ainda esta semana o setor jurídico do partido pretende ingressar com uma ação para reavermos o seu mandato visto que o senhor andou mudando de legenda.

Vereador: Bem, eu achei que tínhamos acertado tudo entre nós e que o partido não iria criar caso.

Deputado: Acontece que recebi uma reclamação do seu prefeito sobre você e o partido está fechado com ele para a campanha deste ano. Caso resolva partir para uma oposição ferrenha, vamos ter problemas. Se não quer mais permanecer alinhado ao governo, inventa uns casos inofensivos e joga pra plateia, mas nada de envolver a Polícia, Ministério Público e gravações de conversas sigilosas. O que você está querendo fazer é contra a ética! Inclusive, sou amigo do dono da companhia que faz serviços de limpeza urbana na sua cidade.

Vereador: Não vou voltar atrás e, se continuar me ameaçando, vou colocar essa ligação na internet. Agora me deixe trabalhar!

Na hora do almoço, o vereador quase foi atropelado por um carro preto que veio em sua direção quando atravessou a rua indo para o restaurante. Mesmo assim, manteve o seu propósito de ser honesto e, no começo da tarde, retornou à Câmara a fim de apresentar na secretaria os requerimentos de informação.

Ocorreu que, na hora da sessão, apenas seis edis e mais o presidente da Câmara se achavam em Plenário e os trabalhos não puderam ser iniciados por falta de quórum regimental. O nosso vereador foi então chamado para uma conversa particular na sala do presidente.

Presidente: Meu caro vereador... Que requerimentos são esses que protocolou na secretaria? Por favor, não nos obrigue a contrariar o prefeito aprovando essas coisas ou nos colocando na incômoda situação de termos que votar contra o povo por mais uma vez. Por sua causa, a maioria teve que arrumar motivo para não comparecer hoje. Por isso, peço que desista logo desses papeis ou vai me colocar em maus lençóis.

Vereador: De modo algum farei isso, presidente. Fui eleito com oitocentos e quinze votos para defender o povo! Quero honrar o meu mandato.

Presidente: Pense direitinho. Senão pode ficar de fora do congresso remunerado que teremos em Maceió bem em frente à praia.

Vereador: Não me importo.

Quando anoiteceu, havia um grupo enorme de pessoas na casa do vereador aguardando-o depois de divulgado o manifesto que ele havia postado nas redes sociais sobre o seu rompimento com o governo. Além de seus familiares, da esposa e dos parentes desta, encontravam-se também os mais de dez assessores lotados no seu gabinete juntos com os vinte funcionários contratados pela Prefeitura que foram indicados por ele, mais a paciente do SUS encontrada de madrugada na fila, a recepcionista do hospital, o cônjuge desta, o médico que passava atestados falsos, o deputado e o lobista. Todos queriam uma explicação quanto às atitudes de rebeldia tomadas naquele dia pelo edil e se mostraram profundamente indignados:

Esposa: O que você está fazendo, meu bem? Esqueceu-se das nossas dívidas, das prestações do carro importado, do plano de viagem para Miami, onde celebraremos nossas bodas de prata, e daquele anel de brilhante que havia me prometido? Se você perder o mandato, terei que fazer programas numa terma a fim de pagar nossas contas e acho que estou um pouco fora da idade para prestar esse tipo de serviço.

Cunhado: O prefeito ameaçou que vai me exonerar do cargo de secretário de cultura e suspender o evento de sábado por tua causa. Se está cansado de ser político, terei o maior prazer de vir como vereador em seu lugar nas próximas eleições. Só não se esqueça de que investi mais de cem mil reais na sua campanha!

Funcionária do hospital: Meu chefe já está desconfiado de que fui eu quem passei as informações que botou na internet sobre a emergência. A barra ficou difícil pra mim lá e, se eu tiver que testemunhar algo, não confirmarei nada.

Marido da funcionária: E lá na escola também a diretora chamou as merendeiras, professores e inspetores para uma conversa sobre não expormos assuntos internos para terceiros. Não se esqueça de que eu e minha esposa dependemos desses empregos no Município, pagamos aluguel e temos filhos.

Deputado: Nosso advogado já entrou em acordo com o seu partido atual sobre a perda do seu mandato por infidelidade. Nenhuma das duas agremiações quer ser prejudicada com as denúncias estúpidas que pretende fazer.

Assessor: Se você perder o mandato, todos nós vamos pra rua procurar emprego. É isso que o senhor quer?!

Lobista: Tenho comigo um documento assinado pelo senhor confirmando que recebeu ajuda de outra empresa associada ao nosso grupo quando foi candidato a deputado estadual no ano passado. Se tentar algo contra a Aluganty, já sabe quem será o primeiro político que meu patrão entregará na delação premiada.

Vereador: Podem continuar com as ameaças porque vou seguir em frente. E, se necessário, procuro a Polícia Federal e conto tudo o que sei.

Naquele momento, o médico que vendia atestados aos políticos da cidade resolveu trazer a ambulância do SAMU.

Doutor: Senhores, esse meu ilustre paciente tem andado com muitos problemas de comportamento ultimamente. Ele precisa ser internado com urgência para tratamento em clínica psiquiátrica. Só neste ano tive que assinar treze atestados porque não estava em condições de comparecer nas sessões da Câmara. Vai dar tudo certo e o vereador ficará de licença médica por tempo indeterminado até que melhore. Agora vamos levá-lo ao hospital.

Em uma semana, tudo ficou acertado em Corruptópolis. No lugar do vereador assumiu o seu suplente com o compromisso de manter parte da assessoria já nomeada. Para não atrair a atenção dos eleitores e nem dos jornais, o nosso personagem principal foi conduzido para uma unidade do SUS em outro estado onde pacientes vip recebiam tratamento diferenciado num setor reservado (alguns usuários de planos de saúde também eram internados ali). Diariamente, os enfermeiros lhes aplicavam doses cavalares de psicotrópicos.

Um mês se passou e pela primeira vez o nosso vereador recebeu uma visita. Era um ex-correligionário seu, pastor da Igreja dos Salvos da Última Hora Antes de Jesus Voltar pela Terceira Vez. Tratava-se uma seita apocalíptica que estava crescendo na cidade, a qual pregava ter ocorrido um pequeno arrebatamento de cristãos escolhidos no fim da Segunda Guerra Mundial, inaugurando um período de setenta anos de tribulação até Cristo voltar. Pregava ele que mais pessoas estavam sendo arrebatadas e que o fim do mundo chegaria em 2016.

Vereador: Até que enfim alguém se lembrou de mim. Por favor, não vai tentar me converter, pastor.

Pastor: Se estivesse preso com os caras da operação Lava-Jato, com uma pena fixada pela Justiça, não seria um destino melhor do que ficar esquecido nesse manicômio? Mas você sabe que, no fundo, sou ateu e só finjo ser crente para arrumar grana dos trouxas. Entre nós, o papo sempre foi diferente.

Vereador: Lamento que tenha perdido a fé.

Pastor: Nunca tive fé, meu vereador. Aliás, vou chamá-lo de futuro prefeito de Corruptópolis.

Vereador: Como é que é?!

Pastor: Isso mesmo! Vou eleger você prefeito daquela cidade.

Vereador: De que jeito? Meu nome deve estar mais queimado do que carvão de churrasqueira.

Pastor: Os impossíveis para os homens são possíveis para o Todo Poderoso. Isto é, para esse pastor poderosão da igreja mais do que visível.

Vereador: E estou vendo que será uma igreja mais do que visível mesmo. Tem um paciente membro da sua seita que falou sobre o plano que vocês têm de construir uma réplica do Templo de Salomão dez vezes maior do que o inaugurado pelo Edir Macedo.

Pastor: Não é bem assim. Vai ser uma réplica do templo do livro do profeta Ezequiel que pretendo construir em Corruptópolis para recebermos Jesus Cristo quando ele vier reinar. Na ocasião, pretendo lançar um missionário da minha igreja para ser candidato a Presidente da República.

Vereador: Eu tô fora! Resolvi deixar de ser corrupto. Prefiro anular meu voto!

Pastor: Só que você está esquecido aqui e com todo o tratamento vip que recebe nem direito a visita íntima de sua mulher tem num hospital psiquiátrico onde poderá permanecer pelo resto da vida. É pior do que uma cadeia em Bangu 8 ou na Papuda. Pelo menos lá os caras do tráfico conseguem mordomia com a carceragem, fazem ligações de celular, ainda dão trotes dos outros e ainda conseguem sair para dar um rolé molhando a mão do carcereiro. Se continuar por mais tempo no meio dessa malucada, vai acabar virando um deles.

Vereador: Você tem razão.

Pastor: Preste a atenção, filho. O povo de Corruptópolis ainda não compreendeu bem o verdadeiro motivo pelo qual foi licenciado do seu cargo e o colocaram aqui. Vou tirá-lo já dessa clínica e você dirá à população que aceitou Jesus tendo sido curado de sua doença. Consigo todos os laudos médicos para provar que agora está bem de cabeça e poderá voltar pra Câmara.

Vereador: E o prefeito vai deixar?

Pastor: Claro! Já articulei o seu retorno com ele. Aliás, o prefeito bem que preferiria que estivesse lá pois o seu suplente cobra uma propina muito mais cara e exige duas secretarias no governo pro irmão dele. Basta que esqueça essa maluquice de virar um homem honesto.

Vereador: Acho que não tenho outro jeito.

Pastor: E quando você se eleger prefeito, terá a chance de melhorar a saúde e a educação de Corruptópolis porque iremos roubar menos. E não vai ter mais problemas para lavar o seu dinheiro porque eu o promoverei a diácono na minha igreja com um altíssimo salário. Para justificar a origem da grana, declararei que o dinheiro roubado estará vindo das ofertas dos fieis e das vendas dos meus livros sobre o fim do mundo. Ninguém sabe o quanto entra na sacolinha, não é mesmo?

A ideia agradou ao vereador e ele acabou concordando em participar do plano do pastor. Afinal, era insuportável viver num hospital de loucos. Assim, após o psiquiatra diretor da clínica levar uma graninha do pastor e receber um telefonema do governador confirmando a sua futura promoção, assinou a alta médica.

De volta a Corruptópolis, o vereador reassumiu o seu cargo tendo entrado em acordo com os seus pares sobre não fiscalizar mais as coisas erradas do Município. Apenas faria os seus discursos na Câmara fingindo ser da oposição. Meses antes das eleições, conforme pactuado com o pastor, o prefeito lançaria um candidato sem chances pelo seu partido e todos os nomes principais do governo mudariam de lado a fim de preservarem seus privilégios...

Bem, essa é uma história sem fim porque, como sabemos, a safadeza insiste em jamais acabar nesse país. Assim ocorria nos tempos de Dom João VI e a essência permanece a mesma. Tanto em Brasília, como nos estados e mais ainda nas prefeituras dos grotões do Brasil.


terça-feira, 26 de janeiro de 2016

Depilação masculina? Nem que a vaca tussa!




Talvez este seja um dos mais fúteis artigos que escrevo no meu blogue. Mas saibam que será uma exceção à regra, muito embora eu não esteja preso a padrões sociais, quer sejam de alguma profissão ou de moral religiosa. Aliás, não tenho a mínima pretensão de me passar por um pseudo-intelectual que só publica assuntos sérios na internet escondendo-se por trás de um questionável título de "doutor" (para muitos os advogados e médicos só poderiam ser chamados assim caso aprovados num curso de doutorado).

Pois bem. Hoje resolvi comentar sobre essa moda ridícula de homem ficar depilando o corpo. Algo que, nos meus tempos de criança, seria considerado "coisa de boiola"... (por favor, que ninguém me pré-julgue achando que eu seja homofóbico)

Acontece que, na atualidade, tem mulher que apenas se interessa por caras com o peito liso e muitas até estimulam o namorado, marido, ou "ficante" a arrancarem os pelos. E olha que tem homens 100% héteros que já andam a depilar também as pernas, os braços, as axilas, as nádegas, bem como a região pubiana incluindo o sensível saco escrotal. Os mais preocupados com a estética chegam a formar uma subespécie de uns tempos para cá denominada de "metrossexuais". Estes, segundo uma página no Significados, assim se caracterizariam:

"O metrossexual gosta de se vestir bem e de estar na moda. Investe em vestuário e acessórios sofisticados, frequenta cabeleireiros e institutos de beleza, cuida da pele, usa cosméticos, bons perfumes, faz manicure, pedicure, depilação, etc (...) O comportamento do metrossexual pode gerar comparações com um homossexual. No entanto, o que marca o comportamento do metrossexual é o seu estilo vaidoso e os cuidados excessivos com a imagem, que antes eram considerados exclusivos do universo feminino." (extraído de http://www.significados.com.br/metrossexual/)

Com toda a consideração pela tão defendida diversidade, não abro mão de orgulhar-me do meu peito de símio. E, se no mundo moderno, devemos aprender a conviver harmonicamente com as diferenças, então que a sociedade saiba respeitar os seguidores dos antigos costumes sem nos preconceituarem de machistas ou de homofóbicos.

Mas confesso que, às vezes, sinto-me meio que um peixe fora d'água, digamos assim. Pois, se vou a uma praia e tiro a camisa em público, há quem me olhe com alguma estranheza por não exibir aquele peito de nadador profissional. Pode até ser que algumas mulheres apreciem e tenham tesão por um cara parecido com o global Tony Ramos que ainda deve ser o símbolo sexual de muitas coroas por aí. Só que a maioria das novinhas agora parece gostar mais dos caras com uns traços femininos, o que deve ter uma explicação psicológica para tanto.

Já ouvi dizer que toda mulher seria bissexual, porém apenas considero que todos temos o nosso lado feminino assim como cada uma delas guardaria também um pouco do masculino em si. E se as diferenças geram atração, penso que o interesse se forme junto com vários pontos de semelhança. Ou seja, ele pode gostar de futebol e ela detestar, mas o casal seria fã de um mesmo estilo musical, por exemplo.

De qualquer maneira, a semelhança que mais atrai as mulheres em relação aos homens seria a sensibilidade destes para com o feminino. Um cara pode manter o seu estilo viril herdado do pai, dos avós e bisavós, tipo deixando os cabelos do peito intactos ou não vestindo nada de unissex. Contudo, ele precisa ser compreensivo com o sexo frágil para estabelecer o dialogo das emoções, algo imprescindível em todo relacionamento. E, se isso é alcançado, dá perfeitamente para continuar sendo um macho à moda antiga sem desagradar a mulherada.


OBS: Imagem acima extraída de http://virgula.uol.com.br/modaebeleza/depilacao-masculina-veio-pra-ficar-montamos-um-dossie-pra-nao-restar-duvidas-nem-pelos-indesejados-sobre-a-questao/#img=1&galleryId=902439

segunda-feira, 25 de janeiro de 2016

"Quem vai querer picolé?"




Um vendedor de picolé saiu de casa para trabalhar. Pegou a sua caixinha de isopor, busuntou a cara de protetor solar e foi até à loja de seu fornecedor que era um depósito de sorvetes situado umas duas quadras da praia onde trabalhava. Ali já estavam dois colegas de profissão aguardando o atendimento que começava a partir das nove da manhã.

Colega 1: Bom dia, Artur.

Vendedor: Bom dia.

Colega 1: E aí? Vendeu muito ontem?

Vendedor: Não vim.

Colega 2: O sábado estava horrível! A chuva atrapalhou um mocado. Melhor era ter ficado em casa. Consegui vender apenas vinte e sete palitos.

Colega 1: Também você só chega tarde. Só no domingo é que resolve aparecer a essa hora. Olha que o Reinaldo já começa vendendo nessa época de calor antes da loja abrir.

Colega 2: Tá bom. Ele pode estocar picolé em casa e mora logo ali na comunidade. Eu venho lá da Baixada Fluminense para trabalhar aqui e ando todos os dias nesses ônibus lotados.

Colega 1: Deixa eu ir. Boas vendas para vocês!

Colega 2: Vai lá! Acho que só saio daqui lá pelas dez. Já estou vendo mais vendedores chegando e agora as crianças ainda não estão com  muita vontade de chupar. Passa na minha frente, Artur.

O nosso vendedor aproxima-se do balcão onde é atendido pelo dono da loja:

Fornecedor: Vai levar a placa (de gel) ou o gelo seco?

Vendedor: Só a placa. Se mais tarde estiver vendendo mais, compro o gelo seco.

Fornecedor: Quantos de coco?

Vendedor: Sete.

Fornecedor: Chocolate?

Vendedor: Cinco.

Fornecedor: Maracujá e limão?

Vendedor: Quatro e três...

Minutos depois, Artur já estava com o seu isopor abastecido, carregando cinquenta picolés nas costas e saiu gritando pelas ruas indo em direção à praia:

Vendedor: Olha o picolé! Quem vai querer picolé? Teno coco, chocolate, morango, milho verde, graviola, uva, maracujá, limão... Picolé de goiaba e picolé de brigadeiro! Olha o picolé! É o picolé cremoso. Picolé do verão carioca! Olha o picolé...

Aparece então o primeiro comprador antes mesmo de chegar á praia. Era uma mulher com o filho portador de necessidades especiais, o qual ela conduzia na cadeira de rodas:

Cliente: Ei, moço. Quanto esta o picolé?

Vendedor: Um é quatro, três são dez.

Cliente: Vê dois.

Vendedor: Qual sabor, senhora?

Cliente: Um de milho verde e o outro de coco. Quanto dá?

Vendedor: Oito reais.

Cliente: Aqui! Está tudo trocadinho em notas de dois. Obrigada.

Vendedor: Obrigado a senhora. Tenha um bom dia!

Cliente: Um bom dia pra você também, querido.

Ao atravessar a avenida Litorânea, a qual acompanha a praia, outro cliente que acabara de parar o carro indevidamente numa vaga de idosos chama o vendedor com assovio fazendo-o retroceder até o estacionamento público de veículos no lado da calçada.

Cliente: Picolé, venha cá!

Vendedor: Pois não, senhor.

Cliente: Quanto está o picolé?

Vendedor: Quatro reais.

Cliente: Que picolé caro! É de ouro?

Vendedor: É o preço de todos os camelôs da praia...

Cliente: O que você tem aí?

Vendedor: Coco, chocolate, leite condensado, morango, uva, maracujá, graviola, milho verde...

Cliente: Graviola! Mim querer um. Troca um galo? Só tenho notas nesse valor e três moedinhas de um real.

Vendedor: Troco.

Cliente: Vai trocar cinquenta reais por causa de um picolé?!

Vendedor: Já venho prevenido para não negar vendas, coisa que nenhum comerciante pode fazer se tem produto no estoque. Aqui o troco. Um bom dia para o senhor.

Embora fosse cedo, já havia um considerável número de banhistas na areia. Mesmo com a crise econômica, o pessoal não deixava de tomar banho de mar ainda que deixando de consumir a habitual cervejinha nos quiosques trazendo toda a bebida de casa junto com a comida. Só não costumavam levar sorvete pra praia. 

Para Artur, a areia era o seu ganha pão. Se não chovesse, ele vinha quase sempre trabalhar seis dias por semana e folgava um. Até no inverno o nosso vendedor não deixava de comparecer ao trabalho. E, no verão, era preciso ganhar o suficiente para terminar de pagar as contas e sobreviver o resto do ano depositando o que pudesse na poupança. Só que muitas das vezes a atividade era ingrata de modo que ele penava na areia, tendo um dia quase desmaiado. E, naquela manhã, embora quente e abafada, não tinha o sol brilhando no céu para ajudar nas vendas. Vários banhistas perguntavam o preço e não compravam:

Cliente: Moço, vem cá.

Vendedor: Pois não.

Cliente: Quanto está o picolé?

Vendedor: Um é quatro, três são dez. Vai querer qual?

Cliente: Obrigado. Depois você passa aqui.

Caminhar com peso nas costas já não era indicado pelo ortopedista que o acompanhava por causa do problema que Artur tinha desde jovem na coluna. Porém, era preciso encarar as dificuldades do cotidiano do jeito como podia. Havia solicitado na Prefeitura uma licença para empurrar um carrinho, mas as autoridades municipais ficaram enrolando seu processo protelando a apreciação do pedido. Apenas renovaram a autorização que ele já tinha na modalidade móvel sem veículo. Logo só lhe restava seguir com a caixinha de isopor. Afinal, no Brasil, manda quem pode...

Vendedor: Olha o picolé! Quem vai querer picolé? Olha o picolé! Picolé cremoso...

Cliente: Ei, picolé!

Vendedor: Em que posso ajudar?

Cliente: Quero um de limão. Tem?

Vendedor: Tem sim.

Cliente: Sabe dizer se por aqui tem casa pra alugar?

Vendedor: O ano inteiro. Depois do Carnaval aparecem mais ofertas.

Cliente: E quanto deve estar uma quitinete perto da praia?

Vendedor: Se for para todos os meses do ano, cerca de mil. Já na temporada, os proprietários andam pedindo uns três contos. Até lá no morro os preços ficam caros.

Cliente: Esse é o meu telefone. Sabendo de alguma coisa baratinha me avise. Quanto está o picolé?

Vendedor: Um é quatro, três são dez.

Cliente: Toma cinco e pode ficar com o troco. Se conseguir uma quitinete ou um quarto e sala pra mim por menos de oitocentos mensais, dou cem reais para você de presente.

Vendedor: Lá na comunidade tem uma senhora que fez umas suítes e cobra setecentos. Fica no alto do morro.

Cliente: Não quero nada na favela. Tem que ser perto da praia.

A conversa é então interrompida por outro cliente. Tratava-se de uma família representada pela mãe com várias crianças:

Cliente novo: Moço, vem aqui rapidinho.

Vendedor: Com licença. Oi! Aguarda um momentinho.

Cliente antigo: Vai lá. Depois conversamos. Pode ligar pra mim a cobrar quando achar a casa.

Nosso picolezeiro afasta-se e vai até a barraca da mulher que o chamara.

Vendedor: Bom dia, amiga.

Cliente: Quanto está o picolé?

Vendedor: Um é quatro, três são dez.

Cliente: Três é dez? E cinco? Quanto o senhor faz? Sai por doze?

Vendedor: Cinco picolés eu faço por quinze.

Cliente: Poxa, moço. É muita criança...

Vendedor: O menor preço que posso fazer é o de três reais por unidade.

Cliente: No trem eu pago um real pelo picolé...

Vendedor: No trem é diferente. Na praia tenho que pagar a Prefeitura para trabalhar e enfrento as condições de sol e de temperatura de janeiro a janeiro carregando esse peso nas costas. Aliás, não são todos os dias que podemos vir aqui. Pois, se chove, não temos venda. Quando chega o inverno, a orla fica vazia e o movimento cai.

Cliente: Perto de casa eu pago setenta centavos nesse picolé. Moro bem ao lado da fábrica e, se você fosse lá, compraria mais barato e poderia vender por dois reais.

Vendedor: Já não é mais esse preço no distribuidor. Aqui o meu fornecedor cobra um real por picolé no atacado acima de cinquenta, mas não compensa ir longe buscar por causa da longa demora no trânsito. Na praia, todos os camelôs têm que praticar o mesmo preço para um não atrapalhar o outro senão dá briga. E, se a gente não lucrar pelo menos uns dois reais em cada picolé, torna-se difícil viver com dignidade. Caso os ambulantes resolvam abaixar demais o seu preço, os comerciantes da orla reclamam, a Prefeitura revoga as nossas autorizações e a fiscalização expulsa os vendedores todos daqui.

Cliente: Num sei disso, não. Mais tarde o senhor passa...

Uma das crianças, o mais novinho, começa a chorar fazendo a mãe mudar de ideia:

Criança: Mãe, compra o picolé!  

Cliente: Depois!

Criança: Eu quero agora!

Cliente: Moço, me vê só quatro picolés. Vou comprar só para os meus filhos.

Vendedor: Que sabor eles vão querer?

Criança: Brigadeiro!

Posicionando-se ao lado da mãe, a filha mais velha optou por recusar, porém os outros dois irmãos pediram o mesmo sabor do caçula de modo que só restou um brigadeiro na caixinha.

Cliente: Aqui seus dez reais. Ela não vai mais chupar. Pode meter o pé!

Vendedor: Obrigado e boa praia.

Mais adiante, um casal de idosos pediu dois picolés (a esposa de milho e o marido de graviola). Veio um rapaz alto e comprou um picolé de maracujá. Em seguida, três amigas levaram um de morango e dois de uva. Ao lado delas estava um senhor diabético que, embora não costumasse comprar sorvetes, fizera amizade com Artur. Semanalmente ele lhe trazia os frutos de uma árvore exótica chamada noni que cultivava em seu sítio na região de Guapimirim, próximo à serra de Teresópolis. Ambos sempre conversavam sobre assuntos de política:

Senhor: E aí? Acha que a presidanta cai este ano?

Vendedor: Duvido! Com o Eduardo Cunha e um bando de parlamentares encrencados, como que a Câmara vai fazer o impeachment dela? Além disso, se a Dilma cai, quem assume é o vice de modo que fica mais difícil para o PSDB conseguir vencer em 2018.

Senhor: O Temer está na pica também! Seu nome já anda aparecendo em gravações e nos depoimentos dos delatores da Lava-Jato. Acho que a Federal deve ter várias provas contra ele que não sabemos.

Vendedor: Tem que mudar é o sistema! O certo seria haver novas eleições como acontece num país parlamentarista. Imagina se caem a Dilma, o Temer, o Cunha e o presidente do senado? Quem fica no lugar do Renan será o Tiririca!

O homem cai na gargalhada e responde:

Senhor: Aí pior não fica. 

Vendedor: Acho que fica bem pior, mas vai mostrar a piada que é a politica desse país.

Senhor: As Forças Armadas tinham que intervir, botar o PT pra correr e fechar logo esse Congresso que não serve para nada. Não foi o Figueiredo quem falou "vocês ainda terão saudades de mim"?

Vendedor: Eu não tenho nem um pouco de saudades dos generais e nem de FHC. Prefiro ver os milicos no quartel.

Nisso aproximou-se uma criança sozinha perguntando o preço do picolé:

Criança: Quanto tá o sorvete?

Vendedor: Um é quatro, três são dez. Tem que chamar o papai ou a mamãe.

Criança: Vem comigo.

Senhor: Vai lá! Mais tarde me liga pois trouxe o noni e umas ervas medicinais para você lá do sítio. Aparece!

Vendedor: Valeu! Amanhã eu passo na sua casa.

Sentado num quiosque com um copo de cerveja na mão, o pai fez um sinal negativo com o dedo para que Artur não vendesse o picolé para o seu filho, causando-lhe o sentimento de frustração por não ter concretizado a venda. Naquele momento, passou caminhando pelo calçadão da praia o colega de profissão Reinaldo, o qual precisava que alguém trocasse sua nota de vinte reais por dinheiro miúdo:

Colega: Artur, você tem bastante notas de dois reais e moedas?

Vendedor: O suficiente.

Colega: Não pode trocar para mim esses vinte reais?

Vendedor: Seis notas de dois e oito de um alivia?

Colega: Tá ótimo! Me diz uma coisa. A renovação da sua licença já saiu?

Vendedor: Paguei a taxa na lotérica semana passada e apresentei o comprovante lá na Prefeitura. A carteirinha de ambulante de 2016 ainda não ficou pronta. No meu caso, tive que pedir à minha advogada que consignasse o pagamento na Justiça assim que terminou o recesso do Fórum porque não queriam emitir o boleto alegando problemas de sistema. Felizmente o juiz concedeu a liminar e resolvi o problema. Só não arrumei o carrinho.

Colega: Até agora não deram a minha carteirinha também. Todo ano é assim e a Prefeitura só libera pra fazer pagamento mesmo depois do Carnaval.

Vendedor: Eles fazem isso porque querem que paguemos o agrado do fiscal

Colega: Quando trabalhava na outra praia, resolvemos não pagar mais a propina e todo sábado tínhamos que fugir do fiscal para não levarem a mercadoria. Foi então que, depois de uma covardia do prefeito, fizemos um protesto e a TV foi lá. Em retaliação, o fiscal não fez mais nada, o lugar encheu de camelôs piratas e ninguém mais conseguia ganhar dinheiro. Saí, vim pra cá e agora soube que os vendedores voltaram a contribuir semanalmente com os agentes da Prefeitura. Inclusive os legalizados.

Vendedor: Isso tinha que ser gravado e denunciado! Mais do que nunca precisamos criar a nossa associação de ambulantes a fim de lutarmos contra esses abusos. Depois da Semana Santa vamos nos reunir?

Colega: Pode contar comigo, Artur. Mas você sabe que o pessoal é desunido, né?

Vendedor: Essas convocações temos que fazer fora da temporada e chamarmos só aqueles que trabalham o ano todo. Precisamos nos organizar antes da campanha eleitoral para não falarem que estamos trabalhando pra algum candidato.

Colega: E você não vem com ninguém?

Vendedor: Fique certo de que este ano não voto em nenhum vereador apoiado pelo prefeito. É hora de renovarmos a política nessa cidade! Chega de figurinha marcada!

Colega: Se um deles me der uma moral, faço campanha pro sujeito.

Vendedor: Aí você vende o seu voto e acaba pagando muito mais caro quando, por exemplo, precisar do hospital e não conseguir atendimento.

Colega: Deixa eu ir. São todos eles safados. Vamos trabalhar! 

Escutando a conversa aproximou-se um homem de uns sessenta anos e se dirigiu a Reinaldo:

Cliente: Quanto está o teu picolé?

Vendedor: Um é quatro, três são dez.

Cliente: Quero um de leite condensado.

Vendedor: Aqui.

Cliente: Me diz uma coisa. Quantos picolés você costuma vender num dia?

Vendedor: Depende de como está a praia e da época. Agora é verão, mas houve vezes, no inverno, que não fiz nem vinte. Se chover, pára tudo.

Cliente: E você anda a praia toda?

Vendedor: Sim.

Cliente: Que saúde você tem! Pretendo ficar tomando sol até às duas da tarde. Se interessar, volta e passa o resto do dia comigo. Pago seu almoço, chupo todos os picolés que estiverem sobrando e ainda deixo uns duzentos reais de caixinha.

Vendedor: Com licença, senhor. Tenha um bom dia.

Deu onze horas e Artur já tinha conseguido vender quase todos os picolés restando na caixa apenas cinco, sendo dois de flocos, um de goiaba, um de limão e outro de chocolate. Uma senhora então resolveu abordá-lo para lhe trazer uma mensagem religiosa:

Senhora: A paz do Senhor, meu rapaz.

Vendedor: Bom dia! Em que posso ajudá-la? No momento eu tenho flocos, goiaba, limão e...

Senhora: Não vou querer picolé, não, pois estou fazendo jejum de consagração. Porém, tenho um recado de Jesus para você, filho. Leve contigo esse folheto!

Vendedor: Obrigado. Com licença.

Senhora: Espere! Hoje, na minha igreja, teremos um culto evangelístico. Aparece lá! Jesus ama você e a sua vida vai prosperar.

Vendedor: Mais uma vez agradeço. Um bom dia pra senhora.

Senhora: Ei! Acabo de ter uma visão! Um anjo está me dizendo que fizeram um trabalho de macumbaria para destruir sua família.

Vendedor: Já tenho a minha fé. Agora preciso voltar ao trabalho.

Apesar dos clientes chatos e outros legais, dos assédios sexuais (tanto de mulheres como de homens), das inconvenientes abordagens, dos maus colegas e da picaretagem dos agentes da Prefeitura, Artur mantinha o bom humor quase sempre. Pouco antes de sair da praia, tendo vendido só mais três palitos, uma adolescente gordinha junto com sua turma de banhistas resolveu pará-lo estando todas elas bêbadas:

Cliente: Moço, você tem picolé de cerveja?

Vendedor: Não tenho permissão de vender nada alcoólico para as crianças ou então a fiscalização me pega. Além de tudo, se for feito de Skol, não vai descer redondo e aí a fábrica pode ser processada no Procon por motivo de propaganda enganosa.

Cliente: Então me arruma um picolé de cachaça.

Vendedor: Eu tenho de caipirinha. Só que é sem álcool...

Cliente: Sério, moço? Que picolé é esse?

Vendedor: É o de limão. Já vem com todos os ingredientes para misturar na cachaça e fazer a caipirinha. Ou, se preferir, mergulha na vodka.

Cliente: Eu fico com esse mesmo! Kátia, você vai querer o de morango?

Vendedor: No momento, só vou ter um de limão e outro de flocos.

Cliente: Pode ser. Ela não quer, mas eu chupo os dois. Preciso de glicose senão vou passar mal. Volta aqui depois. Toma esses dez reais e fica com o troco.

Assim que retornou ao fornecedor, trovejou e não demorou a pingar.

Fornecedor: E então? Vai voltar pra praia?

Vendedor: Por hoje chega. Vai chover. Aqui sua placa.

Fornecedor: Sobrou quantos aí?

Vendedor: Nenhum.

Fornecedor: Se resolver voltar, lembre-se de que hoje fecho às duas.

Vendedor: Ok! Mas acho que hoje vou almoçar com a minha família, coisa que não faço há vários domingos porque tem feito tempo bom. Bendita chuva!

Fornecedor: Como é que é?! Não acredito que ouvi isso de um vendedor de picolé! Vê se pára de acender vela pra São Pedro e se concentra no trabalho porque, no próximo mês, precisarei aumentar o preço do produto para um real e quinze.

Vendedor: Caramba! No início do ano passado eu pagava oitenta e oito centavos.

Fornecedor: É a inflação... Você votou na Dilma, não foi?

Vendedor: Só no segundo turno e não me arrependo. Era a menos pior das opções.

Fornecedor: Então reclame com ela agora. O próximo da fila venha cá.

Debaixo da chuva, Artur foi para casa descansar. Sabia que, naquela semana, precisaria compensar o que esperava vender no domingo. Ainda assim, suas contas de janeiro já estavam pagas graças ao que juntou com o início da temporada de verão. Com a renda do picolé, ele não ficava rico. Porém, conseguia sustentar sua família sem dever nada a ninguém. De modo algum deixaria de ser camelô para trabalhar formalmente de carteira assinada por um salário mínimo ou dois. Até no brando inverno tropical do Rio de Janeiro a praia rendia mais dinheiro do que ficar sentado na portaria de um edifício. Era formado em Geografia, não exercia mais o magistério e poucos sabiam disso. Aliás, nem precisavam saber.

O respeito ao comércio numa localidade turística




Desde o dia 20 de novembro de 2012 que venho me dedicando ao comércio em Muriqui, trabalhando com a venda de sorvetes na praia. Não se que seja esta a minha vocação, mas, sim, por uma circunstancial questão de necessidade.

Nesses 38 meses de contínuo labor, tenho aprendido muita coisa e passado a compreender o outro lado de uma profissão. Senti na pele e no bolso o que é depender de uma economia sazonal bem como de um público que nem sempre sabe reconhecer os serviços prestados pelo comércio local. As pessoas que vêm curtir o feriado numa cidade praiana trazem de casa quase tudo o que consomem e ainda reclamam dos preços, achando que devemos entregar a nossa mercadoria pelos mesmos valores massificados da região metropolitana.

Num lugar pequeno e sem outro aparelho produtivo que não seja o turismo, nem sempre se aplica a lógica de que, com a redução da margem de lucro, o comerciante ganhará mais aumentando o volume de suas vendas. Pois, se o consumidor fica satisfeito comprando uma certa quantidade de mercadorias baratinhas (geralmente produtos de alimentação), tendo condições de pagar um preço um pouquinho mais elevado, obviamente que ele não precisará momentaneamente do mesmo tipo de produto. E ainda assim reclamará dos preços porque estes dificilmente serão competitivos em relação a uma grande loja nos centros urbanos. 

O fato é que qualquer comerciante tem os seus custos operacionais, além do direito ao ganho do próprio trabalho. Desde o dono de uma barraca de cachorro-quente até o proprietário de um super mercado, todos pagam algo para abrir as portas. E, num lugar essencialmente turístico como é Mangaratiba, o empresário necessita ganhar num dia movimentado aquilo que irá manter o seu negócio funcionando na maior parte do ano, quando então só será possível contar com a diminuta população residente cujo poder aquisitivo costuma ser baixo.

Penso que o visitante deve sempre ser bem tratado, receber produtos/serviços de qualidade, mas também precisa ter responsabilidade eco-social quando viaja para uma zona turística. Trata-se, pois, de uma questão de ética porque tem a ver com o sustento e a dignidade da população do lugar. Daí impactar o modo de vida dos moradores locais e explorar o trabalho alheio acaba se tornando uma atitude vil capaz de perpetuar a pobreza nas comunidades ao invés de contribuir para melhorar as condições de vida do ser humano.

Acredito que esse deva ser um dos motivos pelo qual o turismo não se desenvolve tanto em Mangaratiba quanto na maior parte do país. Pois, juntamente com a inércia do Poder Público, temos a má educação do brasileiro durante as suas viagens. Porém, se as pessoas passarem a ser instruídas e conscientizadas para respeitarem os direitos do comerciante/morador de uma localidade visitada, pode ser que, em algum dia, a situação mude. E, neste sentido, os governos federal, dos estados e dos municípios podem contribuir decisivamente por meio de campanhas comunicativas nas épocas de temporada.

Portanto, fica aí minha sugestão para que, na nossa querida Mangaratiba, tenhamos uma campanha de valorização do comércio local a fim de que a qualidade dos serviços prestados melhorem e estes sejam satisfatoriamente remunerados.

Um ótimo final de semana a todos!


OBS: Esse texto foi originalmente postado no blogue Propostas para uma Mangaratiba melhor no dia 22/01 do corrente ano, sendo que ilustração acima trata-se de uma foto da Praia de Muriqui, a qual encontrei no portal da Prefeitura de Mangaratiba.

domingo, 24 de janeiro de 2016

O pão de cada dia




Esperar por um pão quente e fresquinho pela manhã (ou à tarde) tem sido um hábito até hoje mantido por boa parte dos brasileiros. Vejo frequentemente essas cenas quando vou às compras no supermercado Costa Verde em Muriqui.

Enquanto eu prefiro levar para casa um pão integral industrializados, a maioria dos clientes do mercado resolve se espremer na fila enquanto o alimento assa no forno. Para abrir as portas de vidro da geladeira na qual ficam estocados os iogurtes, preciso pedir licença aos consumidores ali instalados, todos à espera do desejável produto que a minha sogra Nelma apelidou de "pão venenoso".

Nos últimos 17 anos, aprendi a gostar de variedades. Além do pão integral comum, aprecio aqueles que levam sementes, ervas ou castanhas misturadas na massa. Vez ou outra, substituo o alimento à base de trigo pelas deliciosas tapiocas, as quais ficam ótimas quando acompanhadas por queijo mais aquela xícara de café fresquinho. E, se descascar raízes não desse tanto trabalho, confesso que comeria muito mais aipim, inhame ou cará pela manhã.

Apesar disso, dizer que deixei de me interessar pelo tradicional pãozinho de sal seria uma inverdade. Pois, nas oportunidades que tenho para degustar esse alimento ainda popular, faço uma festança de lamber os beiços. Mesmo se o produto estiver frio ou "dormido".

Quando criança, o meu cafe da manhã era quase sempre com o pão francês. Também nas casas de meus avós era assim, embora o vovô Sylvio costumasse comprar também o pãozinho de milho para diversificar os gostos. Só que, naquela época, por ser uma criança enjoada, ficava removendo a erva-doce sismando que fossem bichos. Hoje, porém, de modo algum dispenso uma delícia dessas se a colocam na minha frente.

Se me perguntarem por que não como mais o pão de sal com a mesma frequência dos tempos de infância, digo que tenho razões variadas. Um dos motivos seria o gosto por variedades como já expus. Outro para cuidar da saúde (principalmente por causa da dieta de minha esposa Núbia que fez sua cirurgia bariátrica no ano passado). Mas a maior razão deve-se ao fato de que detesto as filas. Pois, como sou um cara muito prático, não quero perder tempo indo todas as manhãs à padaria, esperar o produto sair quentinho do forno para somente então tomar o café. Até porque tem dias que acordo antes das seis e o comércio daqui ainda se encontra fechado. 

Com toda sinceridade, prefiro levantar da cama e comer logo a primeira refeição do dia. E aí vai o que tiver em casa. Mesmo se forem só aqueles velhos biscoitos de água e sal com alguma coisa quente para beber.


OBS: Ilustração acima extraída de uma página da EBC com atribuição de autoria a Roosewelt Pinheiro da Agência Brasil, conforme consta em http://www.ebc.com.br/infantil/voce-sabia/2016/01/conheca-historia-do-pao

Desespero




Alguma palavra definiria melhor o cotidiano da maioria dos brasileiros do que o vocábulo desespero? Duvido!

Quando assisto nos telejornais as frequentes matérias sobre o caos na saúde pública, as más condições dos meios de transporte, a violência nas preferias das grandes cidades, a precariedade dos serviços de saneamento básico e o abandono das escolas pela idolatrada e gentil "pátria educadora" (só aqui no meu município de apenas 40 mil habitantes existem centenas de mães aguardando vaga na creche para o filho), percebo o quanto é desesperadora a vida do pobre. Trata-se de um sofrimento que pouca gente das classes média e rica percebe na mesma dimensão. Uma realidade da qual só conseguimos dar conta quando passamos a vivenciá-la também em seus variados detalhes e condicionamentos.

Alguém tem ideia do que vem a ser o chamado ciclo de pobreza?

Se pensarmos nas condições em que as pessoas muito pobres vivem, veremos o quanto é difícil para elas terem alguma mobilidade social. Suponho que, se não fossem os programas assistenciais, a exemplo do Bolsa Família, diversas regiões do país teriam até hoje os seus bolsões de miséria em dimensões mais profundas, com a exploração do trabalho infantil em proporção ainda maior e agricultores recebendo uma renda mensal inferior a meio salário mínimo, conforme era bem frequente nas décadas do século XX.

Todavia, falta muito para quebrarmos esse maldito ciclo! 

São diversas as condicionantes e as políticas públicas permanecem deficientes. Pois, se até para o pobre desfrutar de uma vida razoavelmente digna está difícil, mais distante ele se encontra da tão sonhada mobilidade social. E os poucos que a alcançam acabam passando por sacrifícios e privações consideráveis que marcarão irreversivelmente suas vidas nesta sofrida terra.

Apesar da acessibilidade em relação à escola básica, um longo deserto precisa ser cruzado para o pobre entrar numa faculdade, conseguir sair dela com diploma e, finalmente, colocar-se profissionalmente no mercado de mão-de-obra qualificada. Ao se formar, um aluno de condição humilde já não costuma ser tão jovem quanto o filho de papai e isso conta muito para o sujeito ficar empregado e se aperfeiçoar.

Como se não bastassem as condicionantes materiais, o pobre também enfrenta desafios no campo das emoções. Um deles seria quanto à auto-estima muitas vezes rebaixada. Trata-se de uma dificuldade surgida desde a infância da pessoa mas que pode ser novamente retroalimentada por outros problemas que vão surgindo, os quais envolvem a vida pessoal e a família. Basta um parente adoecer, um irmão ser preso ou ocorrer uma perda considerável para as coisas ficarem abaladas a ponto de comprometerem o sucesso das metas traçadas.

Penso que não será fácil a superação coletiva dessa crônica situação desesperadora do Brasil sem haver um esforço coletivo e solidário dos membros da nossa sociedade. Junto com as políticas públicas, as pessoas precisam se apoiar mutuamente criando assim um ambiente propício para que construamos um futuro melhor dentro de duas ou três gerações. E aí o primeiro passo consiste em alargarmos a nossa compreensão, colocando-nos no lugar do outro, e evitando os julgamentos morais improdutivos.


OBS: A ilustração acima refere-se ao quadro O Grito, pintura em óleo sobre tela feita em 1893 pelo artista norueguês Edvard Munch (1863 - 1944). Extraí a imagem do acervo virtual da Wikipédia