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sábado, 8 de maio de 2021

Não podemos ficar anestesiados diante da barbárie!



Em sua página no Facebook, o historiador e professor Leandro Karnal comentou o seguinte acerca de uma imagem revelada no dia do massacre policial na favela do Jacarezinho, na última quinta-feira (06/05):


"A foto é Ricardo Moraes/REUTERS. Mostra uma cena no Jacarezinho (RJ) no dia 6 de maio. Façamos uma leitura da imagem: o agente sobe, arma em punho, concentrado e tenso. Está em território inimigo e pode perder a vida, como, de fato, um policial perdeu. Ao redor dele, seis pessoas, talvez, da própria comunidade. Duas moças estão descontraídas. Os homens estão mais imóveis. Um quinto morador, de vermelho, acabou de passar pelo agente e segue para seu destino. Há uma coisa impactante na foto: quase todos parecem ter tornado aquilo parte do cotidiano, como ocorre em época de guerra. A morte e a violência integram-se ao cotidiano. É difícil avaliar por foto, porém, os moradores parecem quase todos negros. Mais um dado a pensar. Talvez não tivesse começado o tiroteio ainda e eles observassem apenas um agente da lei passando. Todavia, existe uma banalidade da violência que choca bastante. Nós nos acostumamos com a morte e a cada nova manchete (creche em SC, morte de Paulo Gustavo, mais de 400 mil mortos em pandemia) vamos substituindo a dor de ontem pela de hoje a ponto de... deixar de ser tão aguda. É uma foto, é um documento e é um registro do como fomos nos costumando à dureza do mundo. Qual o problema? Gente conformada é mais fácil de controlar. Hoje, não tenho respostas, apenas perguntas. Como chegamos até aqui? A quem serve nosso silêncio resignado?" - https://www.facebook.com/photo?fbid=305561357683944&set=a.269807071259373 


A reflexão feita pelo ilustre pensador vem justamente mostrar o que vem acontecendo não somente nessas zonas de conflito dentro do Rio de Janeiro (e de outras cidades do país) como também em toda a sociedade brasileira quando passamos a nos acostumar com as repetidas notícias sobre assassinatos em comunidades carentes e com os números das novas mortes por COVID-19, esquecendo-nos de que cada vida é única nesse mundo.


Entretanto, pior ainda é quando nos deparamos com as mais absurdas justificativas por quem se considera um "cidadão de bem" em relação à barbárie cometida anteontem, no abandonado bairro do Jacarezinho, poucos dias após a posse do governador bolsonarista Cláudio Castro. Pois há quem entenda ser correto a PM invadir uma área de moradores e executar sumariamente os supostos criminosos, o que significa a expressão de uma cultura miliciana, conforme bem criticou o deputador federal Marcelo Freixo (PSoL/RJ):


"A milícia, que ocupa 58% do território do município do Rio de Janeiro, disseminou uma ideia de uma "sociedade miliciana", na qual a Justiça é trocada pelo justiçamento. Quando um policial leva um tiro e morre no início de uma operação, ela deve ser imediatamente cancelada sob o risco de abandonar a pauta original e se transformar em vingança de seus colegas contra a comunidade em que a morte aconteceu. É essa lógica que vimos na chacina no Jacarezinho. Não há vencedores nesta guerra. Morre morador e morre policial. Precisamos urgentemente de uma política de Segurança Pública com investimento no setor de Inteligência, valorização de seus agentes, com mais estrutura, equipamentos e treinamento apropriado" - https://www.facebook.com/MarceloFreixoPsol/photos/a.397084743665121/5805052696201605 


É preocupante a decadência ética e moral do Rio de Janeiro, não muito diferente da maior parte da sociedade brasileira. Infelizmente, estamos não só banalizando esses acontecimentos cruéis, como de algum modo consentindo com eles. E, ao silenciarmos diante de assassinatos cometidos pelo Estado, estaremos dando legitimidade fática a julgamentos paralelos contrários às leis, correndo o sério risco de sermos as próximas vítimas de tais operações estatais.


Possivelmente muitos não devem se importar tanto com os vinte e oito mortos no Jacarezinho porque se tratam de fatos ocorridos em comunidade carente de ocupação irregular, mas não num bairro nobre da capital estadual, ou em uma área movimentada do Rio de Janeiro onde funciona o comércio. Porém, não podemos de maneira alguma perder a empatia pois devemos nos colocar no lugar daquele que hoje sofre com a perda de um familiar injustamente assassinado pela polícia, ou até mesmo levado a óbito por causa da pandemia.


Nesses tempos tão sombrios pelos quais estamos passando, em que nem o governador e tão pouco o presidente Jair Bolsonaro foram capazes de dar algum acolhimento às mães das vítimas da chacina do Jacarezinho, precisamos perseverar para que valores elevados, como a dignidade da pessoa humana, não sejam esquecidos. Aliás, precisamos unir as nossas vozes aos que hoje protestam contra a chacina de quinta-feira que foi a mais letal da história das operações policiais no Rio de Janeiro.



Que não percamos a sensibilidade nesses dias maus!

Um Salmo que os nossos governantes deveriam ler mais



Nesta semana, eu e Núbia (re)lemos um poema da Bíblia, supostamente atribuído ao rei Davi, que, embora seja pouco comentado, possui grande importância para ilustrar o modelo de governante que deveríamos ter. Trata-se do pequeno Salmo 101, com oito versículos apenas, que assim diz:


"Cantarei a misericórdia e o juízo; a ti, SENHOR, cantarei. Portar-me-ei com inteligência no caminho reto. Quando virás a mim? Andarei em minha casa com um coração sincero. Não porei coisa má diante dos meus olhos. Odeio a obra daqueles que se desviam; não se me pegará a mim. Um coração perverso se apartará de mim; não conhecerei o homem mau. Aquele que murmura do seu próximo às escondidas, eu o destruirei; aquele que tem olhar altivo e coração soberbo, não suportarei. Os meus olhos estarão sobre os fiéis da terra, para que se assentem comigo; o que anda num caminho reto, esse me servirá. O que usa de engano não ficará dentro da minha casa; o que fala mentiras não estará firme perante os meus olhos. Pela manhã destruirei todos os ímpios da terra, para desarraigar da cidade do Senhor todos os que praticam a iniqüidade" (Salmos 101:1-8; versão Almeida Corrigida)


Acredita-se que o texto citado fosse utilizado nas cerimônias de coroação dos antigos monarcas de Israel e que tinha a ver com a cultura de um antigo Estado religioso de uns três mil anos atrás.


Todavia, mesmo com os nossos valores atuais de separação entre Igreja e Estado, há preciosas palavras ali que expressam o nosso ideal de liderança e gestão, a começar pelas palavras "misericórdia" e "juízo", mostrando que o governante deve ser bondoso e compassivo, mas, ao mesmo tempo, um homem justo.


O termo traduzido por "coração sincero" relaciona-se um pouco com a ideia de transparência, mas é algo que tem mais a ver com a personalidade do gestor e a sua atitude interior. Porém, é incompatível com as atitudes falsas e enganadoras tão comuns aos políticos de hoje no Brasil.


Observa-se, na sequência textual, a escolha do escritor bíblico por não se satisfazer com o mal, sendo o direcionamento do seu olhar uma opção também por querer ver as coisas boas e não aceitar uma situação injusta. Até porque se tratava de um rei soberano, na época com poderes absolutos, e que, sendo um homem justo, precisaria manter uma conduta de não ser condescendente com as coisas erradas quando estas chegassem ao seu conhecimento. Daí o salmista manifestar o seu ódio às obras dos que se desviam (dos que praticam a maldade).


Por outro lado, o poema nos leva a entender a opção de Davi por não compor o seu ministério com homens maus, o que constitui um grande desafio para os políticos da atualidade quando fazem os seus equivocados aliançamentos julgando-os como necessários. Porém, ao dizer que o homem perverso se apartará dele, o autor deixa claro que não quer se associar com tais pessoas às quais falta o atributo da integridade.


Outra postura muito importante do salmista é não aceitar os caluniadores covardes. Isto é, aquela gente que, às escondidas, propaga mentiras e fakenews a fim de difamar o próximo. Seu compromisso é com a verdade de modo que ele se propõe a combater esse tipo de atitude destrutiva e corrosiva dentro da sociedade na qual vive.


Também o soberbo e o orgulhoso não terá lugar em seu reino, mas o rei afirma que procurará as pessoas que forem "fiéis" no meio de seu povo. Ou seja, aquelas que são de boa conduta irão servi-lo (ser nomeada para algum cargo público de importância e de autoridade dentro do país).


Assim, o Salmo 101 termina com o compromisso de que o governante levará a justiça ao seu reino combatendo a corrupção e o crime, o que se inclui no vocábulo traduzido por "iniquidade". Isto significa que o rei promete ser incansável na sua luta para a promoção da justiça, numa época em que os Poderes estatais achavam-se ainda reunidos na pessoa do monarca, com exceção do ministério religioso que, segundo a legislação aplicável, deixada por Moisés, era exercido com exclusividade pelos sacerdotes.


Retornando aos tempos atuais, acredito que muitos desses valores precisam ser cultivados pelos nossos políticos/juristas antes mesmo de tomarem posse de qualquer cargo público. E, apesar dessa separação institucional entre Igreja e Estado, formalizada no Brasil desde a Proclamação da República (1889), creio que a aplicação do Salmo 101 permanece adequada aos nossos dias, independentemente de qualquer religião seguida pela autoridade. Pois é questão de ética e de atitude.


Mais do que um juramento recitado perante os homens, as palavras que dão sentido ao texto aqui comentado precisam estar no íntimo de quem pretende liderar uma nação. Logo, a mesma seleção que o salmista faz na escolha dos seus subordinados, devemos lembrar na hora de definirmos o voto porque numa democracia o poder emana é do povo.

sábado, 1 de maio de 2021

O trabalhador dos anos 20 do século XXI e seus desafios



Apesar de não ser tão velhinho assim, vejo o quanto as relações trabalhistas de hoje tornaram-se bem diferentes da época em que era criança lá na década de 80 do século passado. Pois vejo que, em apenas 40 anos, quanta coisa mudou.


Houve reformas nas legislações trabalhistas e previdenciárias, porém antes tivemos a introdução de tecnologias da informação e da comunicação com a internet, além dos avanços da robótica, uma relativa melhora na qualidade de vida fazendo aumentar a longevidade das pessoas, mais conhecimento, etc. Ou seja, já não somos mais o mesmo mundo onde uma fábrica necessitava de um número muito maior de funcionários e os grandes escritórios dependiam de um imenso espaço para arquivos de documentos, com aquelas máquinas de datilografia espalhadas pelas salas, as quais viraram peças de museu de uns anos para cá.


Para surpresa de muitos, veio no final da última década uma (im)prevista pandemia através da propagação de um vírus letal que já matou mais de três milhões e cem mil pessoas no mundo, tendo sido 400 mil óbitos somente no Brasil (12,6%) do total, conforme os dados do consórcio de veículos de imprensa divulgados em 29/04/2021. E, devido a isso, milhões de trabalhadores tiveram que ficar em casa e as empresas precisaram mudar a maneira de desenvolver as suas atividades.


A meu ver, desenvolver políticas voltadas para a adaptação do trabalhador aos novos tempos tornou-se algo fundamental nos dias de hoje sendo que a tendência é que grande parte da população mundial venha a trilhar as vereadas do empreendedorismo e, sempre que for preciso, sobreviver de uma renda mínima digna paga pelo Estado.


No meu entender, foi um grave erro o governo Jair Bolsonaro, já no primeiro mês do seu mandato (janeiro de 2019), ter extinto o Ministério do Trabalho, coisa que nem o regime militar fez nos 21 anos de repressão. Sua retórica de que a gestão eficiente da coisa pública se daria pela diminuição do Estado significou, na verdade, um ataque ideológico ao trabalhador e aos direitos trabalhistas.


Há 90 anos atrás, quando Getúlio Vargas assinou o Decreto nº 19.433 para a criação do Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio, com apenas 23 dias no poder, fez isso dentro da linha do projeto modernizador que defendia, o qual previa a aceleração da industrialização do país, buscando diminuir as tensões sociais causadas pela exploração do trabalhador, especialmente nos centros urbanos. E, para tanto, o seu histórico governo criou e difundiu um projeto político e ideológico de valorização do trabalho, tendo como objetivo principal a criação da figura do "cidadão-trabalhador".


Diferentemente do atual presidente, Vargas considerava essencial que a visão negativa do trabalho e a ideia de inevitabilidade da pobreza se tornassem noções superadas na sociedade brasileira, pelo que buscou criar uma visão positiva do trabalhador, considerado então o motor das mudanças sociais e econômicas que tentava empreender no país. Daí associação da ideia de trabalho à de cidadania.


Nos tempos de hoje, precisamos de um governo que valorize realmente o trabalhador e estude maneiras inteligentes de tornar as pessoas produtivas, quer estejam empregadas ou não. Pois verdade seja dita que ter carteira assinada não é a única maneira de alguém obter o sustento que sua família necessita, sendo o empreendedorismo, com amparo social, o inevitável futuro da humanidade.


Neste sentido, há que se fazer do ócio vivido por muitos na pandemia um momento de criação e reflexão do ser humano, a fim de que as pessoas possam aprender e desenvolver maneiras de ganhar dinheiro (ou de ser úteis a projetos sociais) dentro das atuais condições. Logo, cabe ao governo saber aproveitar esse momento de reinvenção, utilizando a internet como a ferramenta de comunicação adequada para a superação dos efeitos do isolamento.


Ao mesmo tempo, há que se ter grande atenção com a saúde mental do trabalhador. Pois não basta que pessoas recebam uma renda mínima, tenham acesso á internet e aos cursos profissionalizantes, sendo fundamental um acompanhamento terapêutico de quem se encontra hoje isolado já que o afastamento social, o medo, a incerteza com o futuro, o caos econômico e a mudança no ritmo das relações sociais abalam a vida de todo mundo.


Concluo este meu texto dizendo que, apesar de políticos retrógrados como o Bolsonaro, as relações de trabalho tendem a uma inevitável mudança e que, por sua vez, levam a revoluções ou reformas como aquelas que o Brasil experimentou nos anos 30 do século XX com Getúlio Vargas, acompanhando uma tendência mundial da época. Logo, acredito que assistiremos na atual década de 20 um caminhar para esse novo amanhecer.