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sábado, 31 de agosto de 2013

Um ano morando em Muriqui



Neste mês de agosto, completou um ano que me mudei para Muriqui, o 4º Distrito do Município de Mangaratiba (RJ).

Quando cheguei, estava sofrendo muito. Minha mulher encontrava-se internada numa clínica no Rio de Janeiro, o dinheiro comprometido com o pagamento de dívidas e precisava achar trabalho. No entanto, apesar de todas as lutas, eu me sentia interiormente feliz com Deus e com a oportunidade de viver uns três quarteirões junto à praia num cenário abençoado e rodeado por serras repletas do verde da Mata Atlântica. Acordava bem cedinho e ia logo caminhar pela orla marítima, deixando nas areias minhas pegadas e contemplando as belezas da baía de Sepetiba - um quadro com o azul das águas tendo a Restinga de Marambaia e um pedaço da Ilha Grande no horizonte. Muito show!

A decisão de vir morar aqui surgiu logo após eu ter me perdido na Floresta da Tijuca em junho/2012. Sempre gostei mais dos lugares pequenos e a experiência de quase ter morrido no meio do mato fez-me refletir sobre como poderia viver a nova oportunidade de continuar caminhando aqui nesta Terra. Resolvi então partir do Rio, após ter permanecido menos de um ano depois de deixar a Região Serrana em dezembro de 2011. Dia 21/08 do ano passado, finalmente trouxe a última bagagem pra cá.

Minha esposa Núbia nunca gostou da ideia de vir morar em Muriqui. Porém, pouco antes de se internar, ela acabou concordando. Confesso não ter sido fácil eu me estabelecer profissionalmente no atual destino. Embora formado há mais de oito anos, nunca tive vínculos empregatícios e sempre trabalhei por minha conta. Aí, com a CTPS limpinha, ficou complicado arrumar emprego. De nada adiantou distribuir meu currículo em várias empresas e o jeito foi me virar fazendo comércio na praia, passando a trabalhar com sorvetes, mais precisamente com picolés da marca Moleka. E, com a graça de Deus, tenho sido muito abençoado nas vendas, pelo que consegui pagar todas as dívidas com antecipação, mais o IPTU e a anuidade integral da OAB até o fim de janeiro.

Atualmente, eu e Núbia estamos mais tranquilos, embora ela deva passar por uma cirurgia prevista para o dia 13/09, sendo que todos os exames pré-operatórios já foram feitos. Ela já está gostando mais do lugar embora sinta saudades do bairro Grajaú onde moramos no Rio de Janeiro e mais ainda da cidade de Nova Friburgo, lá na serra. Lamento somente que sua saúde não esteja legal e que ela recuse ir à praia tomar banho de mar, sendo que sua situação me prende muito em casa.

Assim, tenho caminhado dia a dia. Continuo dedicando parte das minhas horas pela manhã ao estudo bíblico sobre o Evangelho de Lucas que vou postando no blogue como é possível acompanhar nos textos aqui apresentados desde junho. Meu objetivo é compartilhar com o público minhas reflexões e, futuramente, se Deus permitir, utilizar o conteúdo produzido na edição de um e-book (livro eletrônico). A principal finalidade será ganhar as consciências para a construção do Reino de Deus.

Quanto à política, não tenho me metido como fiz em outras épocas. Por causa da mudança de domicílio eleitoral de Nova Friburgo para o Rio de Janeiro, feita nos primeiros meses de 2012, só pude transferir meu título para Mangaratiba recentemente. Por conta disto, nem pude votar para prefeito em outubro e continuo sem filiação partidária. Porém, tenho atuado propositivamente como cidadão expondo minhas ideias em relação ao município num outro espaço que criei em maio chamado Propostas para uma Mangaratiba melhor. Confiram!


OBS: Foto acima com a visão panorâmica da orla de Muriqui encontrada no site da Prefeitura de Mangaratiba em http://www.mangaratiba.rj.gov.br/portal/distritos/muriqui.html

sexta-feira, 30 de agosto de 2013

Tenha sabor e faça a diferença!

"O sal é certamente bom; caso, porém, se torne insípido, como restaurar-lhe o sabor? Nem presta para a terra, nem mesmo para o monturo [monte de entulho ou de esterco]; lançam-no fora. Quem tem ouvidos para ouvir, ouça." (Evangelho de Lucas, capítulo 14, versos 34 e 35; versão ARA)

A parábola do sal é muito conhecida. Principalmente no contexto do Sermão da Montanha (Mt 5:13), quando Jesus fala que seus discípulos são o "sal da terra" e "luz do mundo". E, ao que parece, essa mesma metáfora teria sido aplicada em diferentes situações nos evangelhos sinóticos mas com significados bem próximos, como podemos ler também em Marcos 9:50, em que o Senhor exorta os discípulos para terem "sal em vós mesmos e paz uns com os outros". Já em Lucas, o Mestre estava falando à multidões que o seguiam (14:25), explicando-lhes a realidade de seu discipulado que exige abnegação e a necessidade da renúncia. Foi o que estudamos recentemente nos textos Contando o custo ou renunciando? e Abnegação no discipulado de Cristo.

Podemos mencionar duas aplicações básicas no sal: a de dar o sabor ao alimento e a de conservá-lo contra a putrefação. Suponho que a ideia do tempero tenha mais a ver embora ambos os entendimentos consigam caber na nossa análise bíblica. Pois, se ocorresse a lixiviação (a chuva carregasse a salinidade), o cloreto de sódio perderia as suas funções condimentar e de preservação da carne. Não prestaria para mais nada!

Jesus estava dizendo para aquela multidão que o acompanhava que a presença daquelas pessoas no discipulado deveria fazer a diferença. Seguir o Mestre não é brincar de religião de modo que não podemos confundir o trabalho pelo Reino de Deus com a frequência a cultos devocionais ou com o fato de alguém tornar-se  membro de uma determinada congregação eclesiástica formando um grupinho de pessoas que apenas se reúnem para rezar e cantar louvores, mas sem nenhuma atuação transformadora em sua respectiva comunidade.

Infelizmente, as igrejas na atualidade raramente têm algum sabor ainda que muito pregadores midiáticos sejam ótimos para entreterem os telespectadores/ouvintes. Muitas delas estão há décadas num mesmo lugar, tendo ampliado o espaço para os lados e para cima, porém não contribuem em nada para promover mudanças na área. Próximo ao templo, durante à noite, pessoas fumam crack e se picam com drogas injetáveis, prostitutas e travestis fazem por ali seus pontos, torcidas organizadas mascam brigas violentas e moradores de rua dormem debaixo das marquises. Já nas manhãs de domingo, os frequentadores da igreja vão para lá ouvir as pregações e participar da simbólica comunhão no Corpo de Cristo, retornando depois para suas casas sem terem estabelecido qualquer compromisso que resulte em ação prática de mudar a realidade. Aliás, é comum, durante o próprio culto, observarmos pessoas consultando a todo momento seus relógios no celular, crianças inquietas porque acham aquela coisa toda muito chata e a dona de casa até agradece quando tudo termina mais cedo para ela poder preparar o almoço para sua família.

Esse é sistema religioso de inatividade social, hipocrisia, excesso de formalismo e de falta de conexão com o ser humano que podemos chamar de inosso. Um sal que, na prática, não é sal. Algo que não presta nem para virar estrume porque prejudica a fertilidade do solo e, por isso, deve ser descartado.

Sempre que uma congregação estiver nessa condição, ela precisará se reciclar, trazendo sal novo e permitindo que o Espírito Santo renove os corações. Precisa reconhecer a si própria como um inútil vaso quebrado e permitir ao Oleiro que construa um outro recipiente capaz de armazenar a água. Seria retornar ao processo de conversão, ao primeiro amor, fazendo tudo genuinamente.

"Quem tem ouvidos para ouvir, ouça", concluiu Jesus. E a dureza dessas palavras do Salvador deve conduzir a Igreja a assumir sua posição em relação ao mundo. Ainda que a instituição eclesiástica tenha se tornado esse sal insípido e não queira mais mudar, os verdadeiros discípulos do Mestre são chamados para fazer a diferença e devem por em prática os ensinamentos recebidos. São eles a verdadeira Igreja que pode estar tanto dentro quanto fora das igrejas anunciando o Evangelho como precisa ser feito.

Contando o custo ou renunciando?

No último estudo feito aqui sobre o Evangelho de Lucas, não me aprofundei muito sobre a parábola da torre inacabada e a outra metáfora utilizada por Jesus acerca do rei que soube contar o número de seus soldados antes de ir à guerra contra o adversário e buscar um acordo de paz. Torno então a comentar o texto bíblico já analisado, citando novamente do verso 28 em diante:

"Pois qual de vós, pretendendo construir uma torre, não se assenta primeiro para calcular a despesa e verificar se tem os meios para a concluir? Para não suceder que, tendo lançado os alicerces e não a podendo acabar, todos os que a virem zombem dele, dizendo: Este homem começou a construir e não pôde acabar. Ou qual é o rei que, indo para combater outro rei, não se assenta primeiro para calcular se com dez mil homens poderá enfrentar o que vem contra ele com vinte mil? Caso contrário, estando o outro ainda longe, envia-lhe uma embaixada, pedindo condições de paz. Assim, pois, todo aquele que dentre vós não renuncia a tudo quanto tem não pode ser meu discípulo." (Evangelho de Lucas, capítulo 14, versículos 28 a 33; versão ARA)

Por muito tempo eu li esse ensino de Jesus acima citado sem compreender o seu sentido espiritual. Não meditava muito em sua conclusão e devo ter ouvido poucas pregações a respeito da passagem bíblica em análise.

À primeira vista, parece que Jesus estaria dando conselhos de auto-ajuda financeira nos quais o construtor da torre ou o rei comandante de um exército tornam-se exemplos de prudência. Mas o nosso Mestre jamais poderia ser comparado dessa maneira. Menos ainda com um general belicista a exemplo de Sun Tzu, autor da clássica obra A arte da guerra. Então, sem atentar para a mensagem sobre renúncia, eu logo pensava com meus botões: "Um homem precisa refletir antes de agir. Não posso tentar a realização de algo sem antes verificar se tenho condições." Mas essa não deixa de ser um reflexo da lógica mundana que é incompatível com a proposta do Evangelho.

Vejo que Jesus não poderia ter escolhido melhores exemplos do que a construção de uma torre e a numeração de soldados para uma batalha! Ele pode ter se inspirado na memória de seu povo porque as Escrituras hebraicas falam de dois episódios negativos envolvendo, respectivamente, a edificação de uma torre em Babel (Gn 11:1-9) e um censo militar de Davi (2Sm 24:1-9; 1Cr 21:1-6).

Verdade é que ambos os acontecimentos bíblicos foram resultantes da ambição humana, da falta de fé/relacionamento com Deus e do materialismo. Embora a Bíblia não proíba a construção de torres ou a realização de censos militares (Moisés contou os israelitas), eis que, nas duas situações, as pessoas estiveram motivadas por um ânimo errado. Tanto é que, no livro de Crônicas, o autor sagrado chega a dizer que foi Satanás quem teria instigado o rei a querer numerar seu povo afim de saber com quantos soldados poderia declarar novas guerras. Justo Davi que, antes de governar, tinha enfrentado confiantemente o gigante Golias, matado inúmeros filisteus e escapado das astutas emboscadas de Saul contando com a ajuda divina.

Igualmente passamos por situações análogas em nossa caminhada espiritual. Quando a luta é grande e as adversidades estão acima das nossas forças, desenvolvemos uma extraordinária fé. Porém, quando tudo parece calmo, queremos ter o controle da situação para nos sentirmos seguros com os recursos materiais dados pelo Criador, perdendo a consciência da Fonte. Esquecemos facilmente dos projetos divinos para as nossas vidas e começamos a estabelecer metas sem um critério espiritual, raciocinando equivocadamente.

Realmente o ensino de Jesus não exclui o meditar sobre os nossos planos, mas compreendo que ele nos diz para renunciarmos as exigências do ego, deixarmos de lado tudo aquilo que pode ocupar o lugar de Deus nas nossas vidas. Aí, nestas horas, precisamos ser até um pouco radicais e negarmos as coisas desejadas pelo interesse carnal porque é impossível seguir a Cristo buscando uma satisfação egoísta. Não dá para o homem servir a Deus e às riquezas!

Ter bens, diplomas, uma casa, um carro ou um fundo de aposentadoria jamais foi pecado em si mesmo. Porém, como ensinou o apóstolo Paulo, os crentes devem utilizar das coisas desse mundo "como se dele não usassem" (1Co 7:31). Ou seja, não devemos nutrir qualquer tipo de apego à matéria, mas, sim, abraçarmos de coração o projeto celestial para a humanidade que é a causa do Reino de Deus. Aliás, esta é uma das mais preciosas lições do capítulo 12 de Lucas e que se encontra também no Sermão da Montanha de Mateus:

"Buscai, antes de tudo, o seu reino, e estas coisas vos serão acrescentadas." (12:31)

Finalizo esta postagem lembrando que a cada dia precisamos transformar a nossa mentalidade dando prosseguimento ao processo sempre aberto da metanoia. A conversão do homem é algo que exige uma contínua disposição para aprender, reciclar a vida, procurar o aperfeiçoamento ético e cultivar dentro de si a santidade. Trata-se de uma escolha existencial do homem por Deus com as devidas renúncias, incluindo o arrependimento, as retratações para com o próximo e sempre requerendo uma dose de humildade para pegarmos a curva do retorno quando dermos conta de que entramos numa vereda errada. Só assim seremos de fato discípulos do Senhor Jesus.

Cautela diante da situação na Síria



Nesta noite de quinta-feira (29/08), o Parlamento britânico soube rejeitar a proposta do primeiro-ministro David Cameron quanto à invasão militar da Síria. Até governistas votaram contra!

Penso que fizeram bem. Eu venho acompanhando as notícias do que vem acontecendo no Oriente, sobre o uso de armas químicas pelo ditador Bashar al-Assad contra a população civil, e confesso que, em determinados momentos, fiquei favorável a uma intervenção militar estrangeira. Afinal, trata-se de um desrespeito aos direitos humanos e indaguei se o Brasil não deveria integrar uma missão das Nações Unidas junto com os Estados Unidos e outras potências. Afinal, desde a era Lula, temos pleiteado um cargo no Conselho de Segurança da ONU, não é mesmo?!

Contudo, comecei a refletir. Nem sempre as guerras são o caminho para se resolver os problemas. Ainda mais sendo na terra dos outros, em que existe a questão da soberania nacional e a inexistência de uma ordem internacional clara que autorize a instituição de uma polícia global. Então comecei a pensar a respeito de duas questões opostas:

- Num juízo de ponderação, até que ponto é importante manter a soberania de um país se o regime de Assad está cometendo verdadeiras atrocidades contra o próprio povo a ponto de 1.300 pessoas terem morrido dia 21?

- Quais as consequências que uma invasão da Síria causaria lá mesmo e em todo o Oriente Médio?

Há dez anos atrás, o então presidente George W. Bush  invadiu o Iraque fazendo uma hedionda guerra de conquista. Havia nos Estados Unidos um sentimento de histeria por causa do ataque terrorista de 11/09/2001. Muitos norte-americanos foram incapazes de raciocinar que Saddam Hussein (1937-2006) não tinha nada a ver com o episódio da derrubada das Torres Gêmeas e a soberania de um país foi agredida. O pretexto era que os iraquianos estavam produzindo armas de destruição em massa. Como resultado, a situação por lá tornou-se insustentável, principalmente depois da ocupação militar, provocando novos atentados a ponto de mataram milhares de estrangeiros no país. E até hoje não houve uma estabilização política.

Pois bem. Com a Síria não seria diferente? É certo que eles estão vivendo uma guerra civil há cerca de dois anos e o povo encontra-se dividido. Porém, há partidários do governo e, diante de uma invasão estrangeira, os tais passariam a ter apoio mais expressivo de uma parcela da população e de grupos fundamentalistas islâmicos. Deste modo, poderiam vir respostas violentas depois de ganha a guerra e seria o caos.

Concluo que o melhor a ser feito agora é orarmos pela paz no Médio Oriente e pensarmos e soluções pacíficas para o conflito. O uso de armas químicas parece incontestável, mas deve haver outros meios do Ocidente posicionar-se contra tais barbaridades ocorridas em pleno século XXI. E aí torna-se preciso agir com paciência e sabedoria para que uma ação humanitária não provoque a perda de mais vidas além das que já foram ceifadas.

Que Obama não seja precipitado!

quinta-feira, 29 de agosto de 2013

O que você quer?



A Bíblia conta que o rei Salomão, numa certa noite, sendo ainda jovem e inexperiente, teve uma aparição de Deus em seus sonhos. Naquela ocasião, o SENHOR assim falou ao novo monarca de Israel:

"Pede-me o que queres que eu te dê" (1Rs 3:5 e 2Cr 1:7; ARA)

Você já pensou qual seria a sua resposta se algo semelhante acontecesse contigo? Que tipo de coisas pediria a Deus?

Uns certamente pedissem um carro de luxo. Os que tivessem mais cabeça prefeririam a casa própria. Outros, talvez, importariam-se primeiramente com a cura de uma doença grave, com o bem estar de algum parente próximo, ou, quem sabe até, por conhecer uma pessoa para namorar, casar e ter filhos. Recordo que, no começo de minha complicada adolescência, por volta dos 13 anos, meu médico Dr. Pedro Bloch (1914-2004), o qual também era escritor, fez-me semelhante pergunta sobre quais seriam os meus três desejos caso o gênio da lâmpada conto árabe de Aladim aparecesse na minha vida. Então eu lhe disse:

"Eu pediria ao gênio o direito de ter realizado quantos desejos mais eu viesse a ter!"

Que ousadia, não?! Mas o certo foi que o velhinho registrou minha resposta em suas anotações e, na certa, deve ter pensado em usá-la em algum de seus futuros livros. Hoje, quando me lembro daquele momento em seu consultório, situado num antigo prédio de Copacabana, tento analisar a mim mesmo sobre aquilo que meu coração de fato deseja.

Entretanto, quando medito sobre a história bíblica do rei Salomão, percebo ali uma notável adequação de pedidos. Quando respondeu a Deus, o rei tinha total consciência de seu papel como líder da nação israelita. Ele sabia muito bem da responsabilidade colocada sobre seus ombros e do grandioso projeto de construção do Templo elaborado por seu pai Davi. Então, reconhecendo humildemente a sua condição, disse a Deus:

"Agora, pois, ó SENHOR, meu Deus, tu fizeste reinar teu servo em lugar de Davi, meu pai; não passo de uma criança, não sei como conduzir-me. Teu servo está no meio do teu povo que elegeste, povo grande, tão numeroso, que não pode contar. Dá, pois, ao teu servo , coração compreensivo para julgar a teu povo, para que prudentemente discirna entre o bem e o mal; pois quem poderia julgar a este grande povo?" (1Rs 3:7-9)

Aquelas palavras agradaram a Deus que não somente atendeu ao pedido de Salomão como também concedeu-lhe muitas outras coisas:

"Já que pediste esta coisa e não pediste longevidade, nem riquezas, nem a morte de seus inimigos; mas pediste entendimento para discernirdes o que é justo; eis que faço segundo as tuas palavras: dou-te coração sábio e inteligente, de maneira que antes de ti não houve teu igual, nem depois de ti o haverá. Também até do que não me pediste eu te dou, tanto riquezas como glória; que não haja teu igual entre os reis, por todos os teus dias. Se andares nos meus caminhos e guardares os meus estatutos e os meus mandamentos, como andou Davi, teu pai, prolongarei os teus dias." (1Rs 3:11-14)

Felizmente Deus não é um gênio inconsequente dos contos ficcionais que dá ao homem o direito de receber todas as coisas que bem desejasse. O Altíssimo não disse a Salomão para pedir o que bem quisesse que ele atenderia, conforme fizera o rei Herodes à filha de sua amante adúltera quando a jovem dançou para ele na comemoração de seu aniversário. Naquela vez, o monarca estúpido assim falou na sua pecaminosa impulsividade:

"Pede-me o que quiseres, e eu te darei. E jurou-lhe: Se pedires mesmo que seja a metade do meu reino, eu te darei" (Mc 6:22-23)

A todos Deus concede o direito de pedir (e de pedir ilimitadamente), mas reserva para si a possibilidade de conceder ou não as petições dos homens. Como um Pai sempre aberto ao diálogo, o Criador quer que compartilhemos com Ele em oração as coisas guardadas no nosso íntimo. Coisas estas que o Onisciente já pré-conhece antes de falarmos, mas que, ainda assim, devemos comunicá-las. Aliás, o próprio Senhor Jesus teria ensinado em certa ocasião, por meio de duas parábolas, sobre orarmos com persistência (Lc 11:5-13; 18:1-8).

Complementando as parábolas referenciadas do amigo inoportuno e do juiz iníquo, não podemos esquecer de outra lição aprendida no Sermão da Montanha quando o Senhor declarou categoricamente que não usássemos de vãs repetições justamente porque Deus já pré-conhece a nossa necessidade antes do pedido ser formulado:

"E, orando, não useis de vãs repetições, como os gentios; porque presumem que pelo seu muito falar serão ouvidos. Não vos assemelheis, pois, a eles; porque Deus, o vosso Pai, sabe o que tendes necessidade, antes que lhe peçais." (Mt 6:7-8)

Essas sábias colocações do Mestre introduzem a conhecida oração cristã do Pai Nosso até hoje repetida por muitos ao invés de lembrada como um modelo a ser seguido nas petições feitas a Deus. Pois, pelo que se percebe claramente, Jesus propõe que, quando conversamos com o Pai, tenhamos na nossa pauta, o Reino e a vontade divina. Em outras palavras, devemos procurar refletir se aquilo que queremos que Deus nos faça está mesmo de acordo com o seu propósito elevado.

Como já coloquei, Deus não pode ser confundido com o gênio do conto de As Mil e uma Noites. Seu santo Nome nem somos dignos de pronunciar com os nossos lábios impuros! Sendo Ele o Rei e Juiz de toda a Terra, cujo trono de glória está nos Céus, deve ter reconhecida a sua incontestável soberania sobre o Universo. E, como pessoas convertidas, devemos buscar a realização de sua vontade. Quanto às necessidades materiais, estas devem se restringir ao "pão nosso de cada dia" e não para gastarmos com o nosso próprio deleite, conforme ensina Tiago, irmão de Jesus, na sua lição epistolar:

"Cobiçais e nada tendes; matais e invejais, e nada podeis obter; viveis a lutar e a fazer guerras. Nada tendes, porque não pedis; pedis e não recebeis, porque pedis mal, para esbanjardes em vossos prazeres. Infiéis, não compreendeis que a amizade do mundo é inimiga de Deus? Aquele, pois, que quiser ser amigo do mundo constitui-se inimigo de Deus." (Tg 4:2-4)

Com integridade de coração, Salomão não pediu a Deus a satisfação de caprichos vaidosos. O sábio rei desejou ter condições de governar bem o seu povo e conduzir Israel pelas veredas da justiça, satisfazendo assim uma necessidade justa. Ele pensou no próximo e não em si mesmo. Preocupou-se com o bem estar da coletividade e com a realização do Reino de Deus. Teve, naquele momento, uma conduta totalmente contrária a do pecado original (Gn 3:1-7), preferindo depender da orientação divina para discernir entre o bem e o mal ao invés de querer ser auto-suficiente. Por isso, a sua súplica foi atendida e as demais coisas vieram por acréscimo. E aí tenho pra mim que nenhum outro pedido pode ser comparado à sabedoria, algo que Deus concede liberalmente a todos (Tg 1:5).

Para alcançar a sabedoria, Tiago nos orienta a pedir "com fé, em nada duvidando". E não duvidar significa caminhar com decisão no rumo certo, sem estar dividido entre fazer o bem ou praticar o mal, entre a amizade de Deus e a do mundo. Por isso, no final da epístola, ele ensina para sermos como o profeta Elias que orou fervorosamente para não chover e fez o mesmo três anos e meio depois para as águas voltares. Tudo conforme a vontade do Rei do Universo.

Voltando ao texto de Salomão, temos ali a pista para sermos homens e mulheres sábios. Cabia ao jovem monarca guardar os estatutos e os mandamentos de Deus para que seus dias se prolongassem. Implicitamente podemos ver ali o princípio da obediência. Pois, agindo reverentemente para com o seu Criador, o rei receberia toda a iluminação necessária para governar a casa de Israel. Pela experimentação prática, viria a compreender depois o porquê de se fazer ou não fazer certas coisas, pelo que seu entendimento iria clarear e ele conquistaria todas as outras coisas. E assim também ocorre conosco quando resolvemos dar ouvidos à Palavra.

"O temor do SENHOR é o princípio da sabedoria,
e o conhecimento do Santo é prudência." (Pv 9:10)

Que Deus abençoe sua vida e te encha de sabedoria!


OBS: A ilustração acima refere-se ao quadro O Sonho de Salomão do pintor italiano Luca Giordano (1634-1705) da época do Barroco.

Abnegação no discipulado de Cristo


"Grandes multidões o acompanhavam, e ele, voltando-se, lhes disse: Se alguém vem a mim e não aborrece a seu pai, e mãe, e mulher, e filhos, e irmãos, e irmãs e ainda a sua própria vida, não pode ser meu discípulo. E qualquer que não tomar a cruz e vier após mim não pode ser meu discípulo. Pois qual de vós, pretendendo construir uma torre, não se assenta primeiro para calcular a despesa e verificar se tem os meios para a concluir? Para não suceder que, tendo lançado os alicerces e não a podendo acabar, todos os que a virem zombem dele, dizendo: Este homem começou a construir e não pôde acabar. Ou qual é o rei que, indo para combater outro rei, não se assenta primeiro para calcular se com dez mil homens poderá enfrentar o que vem contra ele com vinte mil? Caso contrário, estando o outro ainda longe, envia-lhe uma embaixada, pedindo condições de paz. Assim, pois, todo aquele que dentre vós não renuncia a tudo quanto tem não pode ser meu discípulo." (Evangelho de Lucas 14:25-33; ARA)

Tanto no ministério de Jesus pela Galileia quanto em sua peregrinação a Jerusalém, multidões queriam acompanhar as caminhadas do Senhor por onde quer que ele fosse. Havia um forte interesse das pessoas em procurá-lo e não parece que tenha sido apenas por causa dos milagres operados. Muitos queriam ouvir os seus ensinamentos, provavelmente porque os sermões do Mestre ajudavam na compreensão do sentido da vida preenchendo o vazio existencial de cada um. Os pecadores encontravam nele um acolhimento incomparável, podendo aproximar-se do rabi sem serem condenados por seus erros.

Contudo, já que tais pessoas estavam indo atrás de suas pegadas. Jesus resolveu mais uma vez testá-las acerca do que desejavam realmente. Em Lucas 9:57-62, ele já havia colocado à prova os que queriam segui-lo e agora, no capítulo 14 do 3º Evangelho, o Mestre leva outro papo sério com aquela galera afim de que as pessoas soubessem quais as exigências de um discipulado verdadeiro e revolucionário.

Seguir a Jesus na radicalidade era muito mais do que apenas viajar para Jerusalém e celebrar uma festa religiosa na Cidade Sagrada dos judeus. Aliás, ninguém naquela multidão poderia imaginar como seria a Páscoa que lhes aguardava. Nosso Senhor enfrentaria uma cruz e a sua morte será angustiosamente perturbadora a ponto de muitos virem a praticar uma auto-flagelação (Lc 23:48), como ainda é de costume no Médio Oriente por ocasião da morte de algum político ou religioso carismático. Aliás, recordo muito bem das cenas de fanatismo que assisti pela TV, aos meus 12/13 anos, quando houve o funeral do xiita aiatolá Sayyid Ruhollah Khomeini (1900-1989), líder da Revolução Iraniana  de 1979.

Há duas questões que o Mestre coloca nesta perícope e que podem ser resumidas pela palavra desapego, tendo em vista a conclusão do verso 33. Uma é a relação do discípulo com a família e a outra vem a ser a cruz. A tradução fala em "aborrecer" o pai e há entendimentos de que o correto significado seja "amar menos". Mas a meu ver, o texto quer dizer que o seguidor de Cristo teria que se comprometer mais com a causa do Reino do que com as exigências dos parentes que forem contrárias ao propósito de Deus. No texto A família e a obra missionária do Reino, cheguei a abordar boa parte desse tema estudando ainda o capítulo 9 do Evangelho.

Ora, em nenhuma parte do Novo Testamento é dito que pessoas foram obrigadas por Jesus a romper os laços com o pai, a mãe, os irmãos, os filhos ou o cônjuge. Muito pelo contrário! A proposta do Reino de Deus vem justamente ampliar a ideia de família, incluindo toda a humanidade num superior relacionamento fraternal (Lc 8:21).

Dentro de uma ótica revolucionária, jamais devemos esquecer que a instituição familiar pode se tornar um limitador que contribui para manter as desigualdades sociais e inúmeros preconceitos elitistas. Pessoas costumam colocar os seus em primeiro lugar, praticam atos reprováveis de nepotismo nomeando parentes para ocuparem cargos públicos. E, na Igreja, as coisas não são muito diferentes, de maneira que uma congregação acaba virando um negócio familiar e nunca uma ekklesia da comunidade de convertidos como foram os antigos cristãos primitivos.

No século XIX, o socialista científico Friedrich Engels (1820-1895), grande companheiro de luta de Marx, iria editar seu livro A origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado (1884). Porém, mais de um milênio e meio anos antes do capitalismo moderno, Jesus teria chegado a considerações críticas não tão distantes do filósofo comunista, percebendo o quanto a sociedade familiar é capaz de dificultar a ação de um membro que se propõe a se tornar um agente de transformação do Reino. Por isso, o Senhor propõe um tipo de desapego que, em última análise, deve ser da "própria vida" (verso 26). Não se trata de um abandono do lar, mas de uma postural realmente compromissada com a construção de um novo mundo. Aliás, foi o que o Mestre sempre ousou fazer desde os doze anos quando esteve entre os doutores do Templo, sem romper com a submissão filial (Lc 2:41-51). Mas, quando passou a exercer o seu ministério, foi firme em não permitir que a sua mãe e os seus irmãos afastassem-no do seu chamado para anunciar o Evangelho pelas cidades e aldeias de Israel (ler o artigo O progresso no Reino de Deus e a família).

Mais forte ainda do que o desapego dos aspectos retrógrados do relacionamento familiar, em que nossos entes queridos nem sempre nos compreendem, trata-se, pois, de carregar a cruz. É algo que já estudamos no texto O discípulo e a cruz sobre Lc 9:23-27. Ali, inclusive, antecipei-me em comentar sobre o capítulo 14 a respeito de tomarmos uma posição consciente no ministério missionário da Igreja, sabendo medir o peso da cruz que será carregada. Ou melhor, comprometendo-nos conforme as nossas possibilidades como se lê nas metáforas da construção da torre e da batalha dos reis. Para tanto, é preciso nos conhecermos melhor praticando um auto-exame e, finalmente, concluirmos sobre qual área de nossas vidas requer uma renúncia. Segundo havia escrito lá, jamais podemos nos esquecer que as escolhas poderão iniciar um processo novo ("dia a dia"), com causa e efeito, sendo muitas das vezes irreversível. Logo, as decisões precisam ser sempre conscientes e maduras através das projeções feitas sobre o tempo e o espaço.

Pode-se dizer que todas essas anteriores passagens de Lucas ligam-se ao trecho em estudo do capítulo 14. Em Lc 9:24, vemos ali o sentido existencial de entregarmos nossas vidas à causa do Reino enquanto que, no texto aqui citado, a caminhada de Jesus para Jerusalém, cidade onde irá ser crucificado, mostra ao leitor o que significa acompanhar os passos do Mestre. Coisa que nem sempre estamos suficientemente preparados para fazer agora. Nem mesmo os discípulos mais próximos do Senhor estavam como foi o caso de Pedro que o negou três vezes (Lc 22:54-62) mas que, posteriormente, demonstrou o contrário quando se viu a frente do povo de Deus. Alás, sabe-se pela tradição eclesiástica que ele veio a se tornar mais um mártir e o Livro de Atos vai mostrá-lo depois como um líder corajoso entre os demais apóstolos a ponto de dizer reiteradamente às autoridades religiosas do Sinédrio que mais importava obedecer a Deus do que aos homens (At 5:29; conf. com 4:19 também de Atos).

Somente após o exemplo da morte obediente de Jesus, maior símbolo de fé da Igreja, os discípulos compreenderam sua mensagem e começaram a andar nos mesmos passos. Aliás, o texto em análise foi uma excelente releitura dos ensinamentos do Senhor transmitido pelos apóstolos ocorrida várias décadas depois. Algo que as antigas comunidades cristãs dos primeiros séculos precisavam interiorizar para anunciarem o Evangelho desafiando o poder do Império Romano, o qual era capaz de torturar e de matar os seus opositores obrigando-lhes a carregar a própria cruz num sinal de submissão vergonhosa. Só que o dever do testemunho deve anteceder os direitos do Estado e da autoridade paterna. O Evangelho não podia deixar de ser proclamado por causa de Roma!

Nos dias de hoje, em que as constituições dos países democráticos reconhecem a liberdade religiosa, principalmente onde o Estado é laico, carregar a cruz assume novas simbologias mantendo-se, porém, a mesma essência de todos os tempos. Nossas posições (atitudes) muitas das vezes vão aborrecer familiares, poderão custar um bom emprego, uma promoção, a nomeação para um cargo público e ainda manchar a nossa reputação no meio social. Nossos parentes muitas das vezes nos querem ver ajustados aos sistema, ganhando dinheiro, sem arrumarmos indisposições e nos tornando pessoas conceituadas. Boa parte da sociedade não aceita que nos dediquemos, por exemplo, às causas dos presidiários vistos como lixos humanos pela grande massa alienada. E adianto em dizer que seu chefe não vai gostar nem um pouco quando você, cristão fiel, negar-se a mentir dizendo que ele não se encontra ou recusar a praticar qualquer fraude.

Mais do que isso, a cruz pode levar-os a uma indisposição com a própria congregação religiosa onde nos reunimos. Se o grupo está acomodado, idolatrando pastores, apegado à construção de templos, ou vivendo na hipocrisia legalista, iremos incomodá-los também. Caso não formos excomungados, vão nos dar um tratamento que será de alguma maneira excludente, mesmo que discretamente, tipo diminuir os espaços para o exercício ministerial ou usarmos a palavra nas celebrações do culto. Aliás, a própria organização autoritária e centralizada de muitas igrejas já se presta para o líder negar o acesso de quem o incomoda.

Portanto, desde já precisamos preparar nossas mentes e corações para o verdadeiro discipulado. Nosso compromisso deve ser com Deus e não com os homens. Amemos a todos, mas não deixemos que nada nos afaste da causa do Reino, daquilo que precisa ser feito. Trata-se de uma questão de escolha e o discípulo de Cristo precisa agir com consciência, sabendo que ele é um agente da mudança e da transformação planetária através que ocorre através de um longo processo histórico dialético. Vamos em frente!


OBS: A ilustração acima refere-se à obra do artista grego Doménikos Theotokópoulos (1541-1614), mais conhecido como El Greco. A imagem foi extraída do acervo da Wikipédia em https://pt.wikipedia.org/wiki/Ficheiro:Cristo_abrazado_a_la_cruz_(El_Greco,_Museo_del_Prado).jpg

quarta-feira, 28 de agosto de 2013

O Shabat de Jesus na casa do fariseu



O capítulo 14 do Evangelho de Lucas fala de mais uma refeição que Jesus teria feito com os fariseus a qual ocorre num dia de sábado. Desta vez, o debate não girou em torno das questões de pureza ritual como em Lc 11:37-52. Os temas tratados serão a prática de atos de misericórdia no sétimo dia da semana (versos 1-6), a humildade (vv. 7-11) e a falta de receptividade que os tais religiosos tinham em relação ao convívio com as pessoas excluídas (vv. 12-24), acrescentando ali a Parábola da Grande Ceia.

Como temos visto nestes nossos estudos sequenciais sobre o 3º Evangelho, Jesus havia despertado polêmicas anteriores por curar aos sábados quando esteve pregando pelas sinagogas (6:6-11; 13:10-17). Porém, na reunião ocorrida na casa do fariseu, nenhuma discussão polêmica surge a este respeito. Havia entre eles um homem hidrópico (com fluidos corporais acumulados em suas cavidades internas) e os caras apenas o observavam. É o Mestre quem tenta polemizar, perguntando-lhes se seria lícito ou não fazer curas no dia santo, por conhecer de antemão como deveriam pensar aqueles religiosos, mas ninguém responde (v. 4). Então, após operar o milagre, ele lhes apresenta argumentos não muito diferentes dos que foram dados nos episódios já analisados do homem da mão ressequida e da mulher encurvada, conforme podemos comparar nas transcrições abaixo, segundo a versão revista e atualizada do tradutor João Ferreira de Almeida:

"Que vos parece? É lícito, no sábado, fazer o bem ou o mal? Salvar a vida ou deixá-la perecer?" (6:9)
"Hipócritas, cada um de vós não desprende da manjedoura, no sábado, o seu boi ou o seu jumento, para levá-lo a beber? Por que motivo não se devia livrar deste cativeiro, em dia de sábado, esta filha de Abraão, a quem Satanás trazia presa há dezoito anos?" (13:15-16)
"Qual de vós, se o filho ou o boi cair num poço, não o tirará logo, mesmo em dia de sábado?" (14:5)

O evangelista diz que "a isto nada puderam responder", mas não descarto a hipótese de que o grupo reunido na casa do fariseu tenha optado convenientemente pelo silêncio e as pessoas ali não pretendiam polemizar. Talvez porque fosse um dia de sábado ou não tiveram uma boa argumentação para expor, ou ainda desejassem estabelecer um bom relacionamento no convívio com Jesus já que o Mestre tinha uma personalidade bem forte e apimentada. Contudo, há sempre uma resposta por trás do silêncio e, quando as vozes se calam, pode-se supor uma indisposição no ambiente para que haja a necessária abertura de entendimento quanto a determinadas posições.

Entretanto, Jesus insiste em dialogar com aquele grupo apático. Sendo ele um convidado, não poupa palavras para fazer da ceia uma metáfora para seus belos ensinamentos de vida. Ali ele diz o que tais religiosos precisavam ouvir.

Como podemos acompanhar nas nossas bíblias, o capítulo iniciou dizendo que aquela era a casa de um dos principais dos fariseus, dando a entender que, entre eles, havia líderes e pessoas de destaque. Tanto nas sinagogas como nos banquetes, eles desejavam ocupar os primeiros lugares, certamente buscado ter reconhecimento social pelo que faziam dentro das suas respectivas comunidades onde viviam. Contudo, o Mestre não criticou a honraria em si e nem estava dando um conselho secular sobre escolhermos literalmente os últimos assentos, mas estava se referindo ao reprovável comportamento de alguém pretender exaltar a si próprio:

"Pois todo o que se exalta será humilhado [ou rebaixado]; e o que se humilha será exaltado" (14:11)

Frequentemente encontramos indivíduos querendo se auto-promover. Os políticos então chegam a negociar posições entre si, bajulando quem esteja acima deles ou fazendo jogadas de marketing. Em praticamente todos os lugares, encontramos quem pretenda ser notado para alcançar os primeiros lugares, seja por razões financeiras, de poder ou mesmo de status no grupo ao qual pertence. Ignoram que o reconhecimento é algo que precisa ser consequência decorrente de um trabalho sincero e livre de negociatas, fruto de uma humildade genuína capaz de nos auxiliar em todas as conquistas da vida. Fingi-la ocupando hipocritamente os últimos lugares para ser notado pelos homens também não vale.

A terceira grande lição daquele encontro sabático vai cuidar de uma das principais controvérsias do ministério do Senhor com os fariseus - a falta de receptividade destes em relação aos excluídos moralmente e que nada tinham a oferecer. Não bastava o anfitrião ter convidado para a sua casa a pessoa de Jesus para estar ali presente junto com outros homens considerados santos, como muitas das vezes vemos nas nossas igrejas de hoje por causa da seletividade criada no ambiente. O Mestre percebeu que estavam faltando os pobres, os aleijados, os coxos e os cegos. Gente incapaz de retribuir dando-lhes em troca outro banquete porque não tinham condições de ser doadores.

Verdade é que muitas das nossas relações acabam sendo baseadas numa troca. Até na afetividade do casamento ou do namoro ocorre um pouco de toma-lá-dá-cá. Inconscientemente agimos assim e a Psicologia estuda muito bem esses comportamentos mesmo quando aparentemente mostram-se desvantajosos para alguma das partes. É a velha busca pela recompensa...

Pois bem. Muitos séculos antes da Psicanálise ser inventada por Sigmund Schlomo Freud (1856-1939), Jesus soube compreender profundamente a alma humana. Ele propõe ali um passo evolutivo mais elevado que seria esperar pelas recompensas "na ressurreição dos justos" (v. 14). Aliás, fazer o bem deve se tornar um fim em si mesmo porque tanto a ressurreição quanto o céu são metáforas da vida eterna a qual, por sua vez, corresponde à nossa existência multidimensional diante do Deus Onisciente de todas as consciências. Logo, precisamos ser sinceros perante nosso bom juízo, cuidando do coração onde se passam as intenções e cogitações de cada um.

Às vezes questiono se estamos mesmo dispostos a acolher os verdadeiros necessitados no nosso meio eclesiástico. É certo que a Igreja fez dos pobres e dos deficientes ícones da bondade cristã, mas será que os queremos justo na intimidade dos nossos banquetes domésticos? Até que ponto estamos aceitando o outro com os seus erros e defeitos, admitindo o mendigo mesmo com seus vícios de embriaguez habitual, sem cuidados com a higiene, exalando mal odor, falando alto, dizendo palavrões e se aproximando das nossas crianças? Ou criaremos condições para o morador de rua conviver conosco, admitindo-o apenas se ele primeiramente for enquadrado? Complicado, mas o certo é que nenhum religioso quer mesmo se envolver com os dramas pessoais de quem tanto necessita receber o amor fraternal. Caridade só por alguns instantes...

Após Jesus ter proferido suas duras palavras na casa do fariseu, eis que uma das pessoas assentadas à mesa lhe diz: "Bem-aventurado aquele que comer pão no reino de Deus" (v. 15).  Tal expressão "piedosa e convencional" que, segundo consta nos comentários teológicos da Bíblia de Estudo de Genebra, pode ter sido dita para mudar o rumo da conversa, mas talvez signifique também que o homem não tivesse compreendido o sentido das palavras do Mestre. Isto porque ele parece ligar as coisas que o Senhor havia acabado de falar no versículo anterior, sobre a ressurreição, dando ênfase numa ceia futura. Entretanto, o céu precisa ser também experimentado/vivenciado no aqui e agora, sendo o Reino uma realidade já presente, de modo que Jesus retoma o seu ensino contando-lhes uma parábola:

"Ele, porém, respondeu: Certo homem deu uma grande ceia e convidou muitos. À hora da ceia, enviou o seu servo para avisar aos convidados: Vinde, porque tudo já está preparado. Não obstante, todos, à uma, começaram a escusar-se. Disse o primeiro: Comprei um campo e preciso ir vê-lo; rogo-te que me tenhas por escusado. Outro disse: Comprei cinco juntas de bois e vou experimentá-las; rogo-te que me tenhas por escusado. E outro disse: Casei-me, por isso, não posso ir. Voltando o servo, tudo contou ao seu senhor. Então, irado, o dono da casa disse ao seu servo: Sai depressa para as ruas e becos da cidade e traze para aqui os pobres, os aleijados, os cegos e os coxos. Depois lhe disse o servo: Senhor, feito está como mandaste, e ainda há lugar. Respondeu-lhe o senhor: Sai pelos caminhos e atalhos e obriga todos a entrar, para que fique cheia a minha casa. Porque vos declaro que nenhum daqueles homens que foram convidados provará a minha ceia." (vv. 15-24)

Tal parábola liga-se de certo modo à conclusão do ensino sobre a porta estreita, em que os últimos virão a ser primeiros (13:30). Os que tinham sido inicialmente convidados e, na hora da ceia, apresentaram injustificadas desculpas, ficarão de fora da celebração, enquanto "os pobres, os aleijados, os cegos e os coxos" entrarão na casa participando da festa. E ainda assim sobram lugares de modo que o servo precisa então sair "pelos caminhos e atalhos" convidando mais gente que estava fora da cidade (v. 23).

Como se lê em Lucas, os religiosos consideravam-se santos demais para aceitarem o batismo de arrependimento proposto por João (7:30), como se não tivessem pecados. Já o restante do povo atendeu ao chamado do profeta e deu ouvidos também a Jesus, maravilhando-se com os feitos milagrosos operados pelo Mestre. Os considerados indignos pelos fariseus estavam precedendo-os no Reino. Pobres, aleijados, cegos e coxos tornam-se figuras das pessoas desprezadas que foram acolhidas por Jesus e representam os pecadores em geral (conferir artigo Um messias que se fez amigo dos pecadores).

Esta perícope vai se relacionar com o tema da recepção dos pecadores que é novamente tratado no capítulo 15 em que Jesus contará três parábolas (da ovelha e da dracma perdidas e do filho pródigo) afim de confirmar o seu ensino. Por isso, o Mestre não vai mais perder tempo naquela casa onde os ouvintes mostrava-se desinteressados quanto ao diálogo. Havia multidões lá fora acompanhando-o (14:25) e para elas é que o Senhor vai se voltar. Os religiosos já tinham conhecimento bíblico e teológico suficiente para compreenderem a verdade. Por que ficar alimentando a palhaçada de uma turma que não queria nada com a construção do Reino se, nas ruas, havia gente sedenta por ouvir a Palavra de Deus? Jesus prefere dar sua atenção para quem realmente estava disposto a aprender com a escola da vida! O papo com os fariseus termina e eles vão ficar escandalizados quando virem os publicanos com Jesus. Chegaremos lá.


OBS: A imagem acima trata-se de uma gravura do artista holandês Jan Luyken (1649-1712) utilizada para ilustrar a parábola na Bíblia Bowyer. Foi extraída do acervo virtual da Wikipédia em que a autoria da foto é atribuída a Phillip Medhurst oriunda de Harry Kossuth, conforme consta em http://en.wikipedia.org/wiki/File:Teachings_of_Jesus_28_of_40._invitation_to_the_great_banquet._Jan_Luyken_etching._Bowyer_Bible.gif

segunda-feira, 26 de agosto de 2013

A estreita porta da graça

Dando prosseguimento aos nossos estudos sobre o Evangelho de Lucas, chegamos a um dos discursos de Jesus ainda muito mal interpretado e aplicado de maneiras bem perversas. No contexto da caminhada de peregrinação do Senhor a Jerusalém (Lc 9:51-19:44), o autor sagrado expõe uma versão ampliada sobre o ensino da Porta Estreita que aparece também no Sermão da Montanha de Mateus (7:13-14):

"Passava Jesus por cidades e aldeias, ensinando e caminhando para Jerusalém. E alguém lhe perguntou: Senhor, são poucos os que são salvos? Respondeu-lhes: Esforçai-vos por entrar pela porta estreita, pois eu vos digo que muitos procurarão entrar e não poderão. Quando o dono da casa se tiver levantado e fechado a porta, e vós, do lado de fora, começardes a bater, dizendo: Senhor, abre-nos a porta, ele vos responderá: Não sei donde sois. Então, direis: Comíamos e bebíamos na tua presença, e ensinavas em nossas ruas. Mas ele vos dirá: Não sei donde sois; apartai-vos de mim, vós todos os que praticais iniquidades. Ali haverá choro e ranger de dentes, quando virdes, no reino de Deus, Abraão, Isaque, Jacó e todos os profetas, mas vós, lançados fora. Muitos virão do Oriente e do Ocidente, do Norte e do Sul e tomarão lugares à mesa do reino de Deus. Contudo, há últimos que virão a ser primeiros, e primeiros que serão últimos." (Lucas, capítulo 13, versos de 22 a 30; versão ARA)

Infelizmente, ouço muitos pregadores por aí usando esse trecho da Bíblia para oprimir os destinatários de suas mensagens pseudo-evangelísticas. Tentam impor uma moral religiosa castradora e legalista, como se a salvação precisasse ser barganhada pela troca meritória de boas obras praticadas ou de uma vida de privações. Prestam um ótimo trabalho para as elites reprimindo o trabalhador. Porém, é justamente uma perspectiva oposta a tudo isso que percebo em Jesus tendo em vista as características de seu ministério.

Sobre a pergunta formulada, o Mestre não responde diretamente, mas adverte sobre nos esforçarmos para entrar pela "porta estreita". Ele não só diz que muitos ficarão de fora (verso 24), mas também que muitos "tomarão lugares à mesa no reino de Deus" (v. 29). E, de modo algum, podemos pensar que apenas uns poucos estarão dentro da "casa"!

A questão principal, e que é motivo de angústia para aqueles que não têm certeza do amor divino, seria a definição do que vem a ser essa porta estreita. Aí eu digo que a passagem bíblica em comento jamais pode ser lida fora do seu contexto amplo, ignorando os demais ensinos de Jesus sobre a aceitação incondicional dos pecadores e seus atos de misericórdia inclusiva.

Vejo na porta estreita uma instrução que nos leva muito mais além das aparências de uma vida religiosa hipócrita capaz de valorizar os atos exteriores e uma moral social. Quem atravessa tal passagem precisa espremer a si próprio, confrontar o caráter de sua personalidade, converter-se de verdade e cair nas graças do Pai. Deve reconhecer que não possui méritos em si mesmo para ser salvo.

Nas peregrinações para Jerusalém, muitos faziam aquela viagem mais um ritual externo a ser executado e que tinha a ver com a cultura judaica da época do Segundo Templo para a comemoração das festas nacionais e religiosas. Talvez poucos atentassem para o sentido espiritual da visita ao local sagrado. Era fácil alguém cometer o auto-engano de achar que, por ser um descendente de Abraão e celebrar anualmente a Páscoa, estava tudo bem. Porém, em relação a esse pensamento ilusório, João bem alertou as multidões:

"Dizia ele, pois, às multidões que saíam para serem batizadas: Raça de víboras, quem vos induziu a fugir da ira vindoura? Produzi, pois, frutos dignos de arrependimento e não comeceis a dizer entre vós mesmos: Temos por pai a Abraão; porque eu vos afirmo que destas pedras Deus pode suscitar filhos a Abraão. E também já está posto o machado à raiz das árvores; toda árvore, pois, que não produz bom fruto é cortada e lançada ao fogo." (Lc 3:7-9)

De fato, Deus pode fazer com que das pedras nasçam novos filhos a Abraão e, na mesa do Reino, Jesus fala que "muitos virão do Oriente e do Ocidente, do Norte e do Sul e tomarão lugares", o que significa uma referência do evangelista aos gentios. Nesta provável releitura da Igreja das memórias dos ensinamentos do Senhor, o Mestre estaria dizendo que pessoas estranhas à Aliança do Monte Sinai poderiam ser graciosamente aceitos. Os últimos no lugar dos primeiros!

De modo algum podemos fazer uma leitura anti-semita, endossando aquela teologia preconceituosa de rejeição do povo judeu, culpando-os pela morte de Jesus. Pois aqui Jesus está falando mesmo era dos que tinham um comportamento religioso hipócrita . Até mesmo porque Deus a ninguém rejeita, mas o homem pode vir a recusar o acolhimento misericordioso do Pai, preferindo perecer em sua condição de auto-suficiência moral, afastando a si mesmo e a outros de entrarem na casa.

Parece estranho o portal da graça ser visto aqui como estreito, mas eu diria que a passagem torna-se apertada por causa do nosso coração. Nós nos tornamos pessoas cheias de si, de orgulho, de presunção, de soberba teológica, avareza e alimentamos uma religiosidade enganosa a ponto de praticarmos iniquidades (v. 27). Enquanto achamos que o nosso serviço eclesiástico e o nosso moralismo produzem algum status perante Deus, não estamos permitindo que a sua infinita graça alcance os nossos corações. É preciso ter uma experiência real de conversão mesmo estando na Igreja!

"Naquela mesma hora, alguns fariseus vieram para dizer-lhe: Retira-te e vai-te daqui, porque Herodes quer matar-te. Ele, porém, lhes respondeu: Ide dizer a essa raposa que, hoje e amanhã, expulso demônios e curo enfermos e, no terceiro dia, terminarei. Importa, contudo, caminhar hoje, amanhã e depois, porque não se espera que um profeta morra fora de Jerusalém. Jerusalém, Jerusalém, que matas os profetas e apedrejas os que te foram enviados! Quantas vezes quis eu reunir teus filhos como a galinha ajunta os do seu próprio ninho debaixo das asas, e vós não o quisestes! Eis que a vossa casa vos ficará deserta. E em verdade vos digo que não mais me vereis até que venhais a dizer: Bendito o que vem em nome do Senhor!" (Lc 13:31-35)

Como se vê, um acontecimento marca aquele ensino de Jesus. Chegam então os fariseus comunicando ao Mestre sobre a intenção de Herodes em matá-lo (v. 31), mas aquele recado não afasta o Senhor de seu propósito de visitar as cidades e aldeias enquanto seguia para Jerusalém (v. 20). Possivelmente fosse desejo de tais religiosos causar-lhe algum abalo emocional e há quem suponha que os mesmos desejassem tê-lo no território da Judeia onde teriam maior influência do que nas terras da Galileia ou da Pereia administradas por Herodes. Isto se for levada em consideração a hipótese de que aqueles fariseus estivessem contra Jesus, pois é possível também que muitos dos fariseus admirassem-no e estivessem alertando-o de um perigo iminente.

Entretanto, o Mestre não se abala com a ameaça e com a possível astúcia do tetrarca assassino a quem chama de "raposa", pelo que promete prosseguir com o seu ministério até o limite do "terceiro dia" (v. 32), numa referência à sua ressurreição contada a partir da morte em Jerusalém (v. 33). É certo que tal resposta não seria entendida de imediato pelos fariseus, mas que o leitor original de Lucas saberia compreender melhor assim como já teria visto o cumprimento da profecia sobre a deserção da casa (v. 35), significando a destruição do Templo e/ou da própria cidade pelas tropas do general Tito no ano 70 de nossa era.

Percebe-se, portanto, que, no lamento sobre Jerusalém, encontra-se implícita salvação graciosamente oferecida e que foi recusada. Trata-se do comportamento da geração de Jesus por esta ter rejeitado a sua proposta de construção do Reino mas que tornou a se repetir por muitas vezes dentro da Igreja. Aliás, é para nós cristãos, e para um tempo posterior à destruição de Jerusalém, que o autor sagrado escreve.

Finalmente, vale lembrar que Jesus não falou que a casa de Jerusalém ficaria para sempre deserta, mas, sim, que a cidade não mais o veria até que dissessem: "Bendito o que vem em nome do Senhor!" E isto significa uma crítica anti-clerical para todos os tempos pois o Templo, na maioria das vezes, não soube receber os que foram enviados por Deus. Assim foi com os antigos profetas bíblicos, com o nosso Senhor Jesus Cristo no seu ministério e continua sendo nos dia atuais. Quem realmente assume o compromisso de pregar as boas novas do Reino jamais será bem aceito pelo apodrecido sistema religioso. Pode uma ou outra congregação abrir as suas portas para o evangelista, mas como a sua mensagem irá denunciar as injustiças praticadas ali, causar perplexidades, escandalizar os santinhos e despir os ouvintes de seus trapos moralistas, tirando deles o chão da auto-justificação meritória, não interessa aos falsos pastores lhes conceder espaço. Afinal, os hipócritas não suportam saber que, na lógica de Deus, os primeiros poderão se tornar os últimos.

domingo, 25 de agosto de 2013

Um começo bem pequenininho...



"E dizia: A que é semelhante o reino de Deus, e a que o compararei? É semelhante a um grão de mostarda que um homem plantou na sua horta; e cresceu e fez-se árvore; e as aves do céu aninharam-se nos seus ramos. Disse mais: A que compararei o reino de Deus? É semelhante ao fermento que uma mulher tomou e escondeu em três medidas de farinha, até ficar tudo levedado" (Palavras de Jesus de Nazaré no Evangelho de Lucas, capítulo 13, versículos de 18 a 21; versão ARA)

É frequente na Bíblia Sagrada o uso da figura de uma árvore, ou de um ramo, para simbolizar o poder real (Dn 4:1-12,19-22; Ez 17:22-23) e o mesmo se pode dizer acerca da referência ao abrigo das aves em tais plantas (Dn 4:12,21; Ez 17:24). A citação do Evangelho feita acima, além de apontar para um autêntico ensino de nosso Senhor, foi uma das mais encorajadoras parábolas para motivar o trabalho da Igreja nos difíceis primeiros séculos quando os cristãos primitivos precisaram enfrentar com fé o poder de Roma.

No entanto, Jesus foi de certo modo inovador ao escolher uma simples mostarda para representar o Reino de Deus. Pois, geralmente, os profetas costumavam falar de oliveiras, figueiras, videiras e cedros, mas, aqui, o Senhor dá relevância à qualidade de uma planta cuja semente sabia-se ser minúscula e tida, no dizer judaico, como o menor volume ou quantidade. Só que, quando cresce, pode vir a se tornar um arbusto de seus três metros a ponto de ser popularmente chamado de "árvore". Tanto é que Simeão ben Halafta, mestre tanaítico que viveu no século II, referiu-se certa vez a uma mostarda que se tornou tão alta quanto um pé de figos (yPeah20b).

A parábola do grão de mostarda se faz presente na tríplice tradição dos sinóticos (conf. com Mc 4:30-32; Mt 13:31-32) e aparece também na sentença de número 20 do gnóstico Evangelho de Tomé. Contudo, no texto original de Marcos, a metáfora dá continuidade ao tema da transformação da semente pela terra (Mc 4:26-29). E, deste modo, não podemos esquecer que a semente de mostarda, assim como o fermento, devem ter surgido como imagens para a caracterização dessa metamorfose do Reino, sendo que o mesmo verifica-se em Mateus, embora o autor do 1º Evangelho faça ali uma menção à parábola do joio e do trigo.

Suponho que Jesus deva ter usado repetidas vezes essas figuras nas suas pregações e aqui o ensino é lembrado no contexto da peregrinação do Mestre a Jerusalém. Era preciso motivar aquela iniciante comunidade de discípulos afim de que os primeiros seguidores se entusiasmassem com a transformação planetária e lutassem pelas necessárias mudanças sociais e espirituais. Era preciso ter fé para não desanimarem, cientes de que o propósito elevado que tinham estava sendo gestado ocultamente. Logo, ainda que não vissem a plena realização do Reino, isto é, não colhessem os resultados do trabalho investido em seus dias, permaneceriam lutando pela causa do Evangelho

Interessante observarmos que Jesus compara o Reino com a semente e com o fermento, mas não com a árvore crescida ou com a massa de pães pronta. Todo o seu potencial encontra-se concentrado naquele grão minúsculo, do tamanho da cabeça de um alfinete. Porém, tal pequenez não se relaciona apenas com o comecinho da história da Igreja e tem a ver também com os gestos singelos de uma autêntica evangelização cotidiana. É trabalhando nas casas, investindo na vida das pessoas humildes e cuidando de quem parece moralmente irrecuperável que a obra de Deus vai sendo realizada com fé. O princípio (origens) torna-se um princípio (norma) para os seguidores de Cristo de todas as eras.

Igualmente relevante parece-me o acolhimento do Reino que, nas duas parábolas, consta como implícito. Não há acepção de aves (leia-se pessoas), as quais podem construir seus ninhos nos ramos da planta. Quanto à conhecida imagem do fermento, em geral empregada para designar corrupção de comportamento e/ou de doutrina (Lc 12:1; 1Co 5:5), conforme o contexto da Páscoa judaica (ler o artigo Cuidado com o "fermento" da hipocrisia), aqui assume uma qualidade curiosamente positiva. Para fazer a revolução de Deus, que é amorosa, deve-se aceitar qualquer tipo de pessoas, curar aos sábados e romper com as falsas ideias de santidade. Assim, pode-se afirmar que o Reino desvincula-se da lógica de "pureza" dos fariseus e religiosos em geral, a qual chega a ser seletiva e perversamente excludente como temos acompanhado nos estudos bíblicos feitos neste blogue acerca do 3º Evangelho.

Vale lembrar que os personagens de cada parábola são pessoas comuns. Não se tratam de rabis ou teólogos! Jesus fala primeiro de um homem do campo que encontra um espaço ma sua horta para semear o grão de mostarda e, depois, menciona uma dona de casa. Com isto, no exemplo do fermento, temos uma versão doméstica do ensino anterior, valorizando, portanto, a participação da mulher na construção do Reino. E a este respeito, muito bem comenta o teólogo italiano Sandro Gallazzi em um de seus livros:

"Um homem e uma mulher são sujeitos operativos deste Reino. Homem e mulher, assim, simplesmente. Nem sacerdotes ou governantes, nem escribas ou mestres: os 'fazedores' do Reino são um homem e uma mulher. Em nenhum momento, uma mulher entrou no imaginário apocalíptico como fazedora do Reino. Tudo que era messiânico sempre foi coisa de homem, só de homem. Na história, pelo contrário, a mão da mulher sempre teve e terá um lugar essencial" (O Evangelho de Mateus - uma leitura a partir dos pequeninos. Comentário Bíblico Latinoamericano. São Paulo: Fonte Editorial, 2012, pág. 268)

Não dá para entender como que, entre católicos romanos e vários grupos evangélicos conservadores, a mulher ainda seja excluída da hierarquia eclesiástica. Mas, se pensarmos bem, a hierarquização não condiz com o propósito Reino assim como podemos falar dos templos e dos palácios. A nova realidade que os verdadeiros discípulos de Jesus devem construir é feita com gente comum e não por clérigos.

Ainda meditando sobre a parábola do fermento, vale a pena repararmos na grande quantidade de farinha que será levedada (verso 20). O texto grego fala de três satas que seriam o equivalente à quantidade usada pela matriarca Sara em Gênesis 18:6, quando Abraão recebeu a visita de três anjos em sua tenda. E três seahs de farinha dão 66 litros. Era massa suficiente para preparar um almoço coletivo numa aldeia. Quem sabe até a celebração de uma grande festa?!

Tendo a manifestação/vivência do Reino como um resultado feliz, nós, servos de Deus e discípulos de Jesus, precisamos caminhar com fé apesar das contradições da História. As duas parábolas devem alimentar a nossa luta diária por um mundo melhor e pela inclusão do ser humano livre de qualquer preconceito. Tal como fora no Shabat estudado na postagem anterior, em que Jesus havia curado uma mulher encurvada na sinagoga por onde andou, proporcionado uma alegre comemoração do acontecimento milagroso (verso 17), o Reino corresponde a um grande banquete comunitário. É uma festa preparada sem acepção: homens, mulheres, crianças, idosos, doentes, presidiários, prostitutas, homossexuais, pobreas, desempregados, trabalhadores sem-terra, negros, brancos, índios, pessoas portadoras de necessidades especiais, etc. Indistintamente, todos poderão sentar-se à mesa e degustar esse pão assado com muito amor e carinho.


OBS: As duas imagens acima tratam-se de gravuras do artista holandês Jan Luyken (1649-1712) utilizada para ilustrar as parábolas do Grão de Mostarda e do Fermento na Bíblia Bowyer. Foi extraída do acervo virtual da Wikipédia em que a autoria da foto é atribuída a Phillip Medhurst oriunda de Harry Kossuth

sexta-feira, 23 de agosto de 2013

Cure-se da curvatura do legalismo religioso!



O capítulo 13 do livro de Lucas relata um milagre de Jesus nos seus versículos de 10 a 17. Trata-se da cura de uma mulher que, há dezoito anos, vivia encurvada devido à opressão de um espírito maligno, o qual era o causador daquela enfermidade (verso 11).

No entanto, o acontecimento se passa numa sinagoga, quando alguns judeus estavam reunidos em dia de sábado cumprindo ali o 4º mandamento da Lei de Deus. Jesus ensinava naquela congregação e suponho que deva ter sido convidado por algum dos líderes locais, talvez por ocasião de sua passagem pela respectiva cidade durante a longa viagem de peregrinação a Jerusalém (Lc 9:51-19:44). Mesmo sendo perseguido pelos religiosos de sua época, parece que o Mestre ainda deveria ser aceito e estimado por alguns deles. Porém, ao ver aquela mulher sofrendo e, sem conseguir firmar-se numa postura correta, tomou a iniciativa de curá-la impondo-lhe as mãos. Ela se endireitou imediatamente e começou a dar glórias a Deus (Lc 13:13).

Apesar de tudo, nem todos ali foram capazes de dar louvores por causa daquela maravilhosa libertação de uma irmã que havia passado boa parte de sua vida doente e oprimida pelo diabo. O presidente da sinagoga sente-se então "indignado" porque Jesus havia operado uma cura em dia de sábado (v. 14). Só que, por algum motivo, ele evita enfrentar o Mestre diretamente e resolve repreender a multidão indicando que as pessoas devessem vir nos outros dias da semana para serem curadas. Não no repouso sabático.

- "Hipócrita", disse Jesus.

Embora algumas versões do texto bíblico constem no plural, o Salvador não deixou de repreender claramente a atitude daquele chefe religioso. Se este ainda pretendia fazer a velha política da boa vizinhança, evitando os confrontos, nosso Senhor não ficou medindo palavras. O fato de ter respondido ao invés de se calar demonstra como o Mestre tinha uma personalidade marcante e incapaz de se adequar ao comportamento de sujeição aos homens, não importando onde estivesse. Aliás, Jesus viu ali uma ótima oportunidade para continuar o seu ensino e, talvez, tenha sido a melhor lição daquele dia fazendo os ouvintes refletirem já que nenhum deles deixava o próprio rebanho morrendo de sede só porque era sábado:

"cada um de vós não desprende da manjedoura, no sábado, o seu boi ou o seu jumento para levá-los a beber? Por que motivo não se devia livrar desse cativeiro, em dia de sábado, esta filha de Abraão, a quem Satanás trazia presa há dezoito anos?" (v.v 15-16)

Como temos lido em Lucas, houve várias controvérsias de Jesus com os religiosos por causa do uso do sábado (ler o artigo A transgressão dos falsos valores em favor da vida). Jamais o Senhor pretendeu revogar o 4º mandamento do Decálogo, nem abolir o descanso semanal, ou muito menos transferi-lo para o domingo. No capítulo 6, versos de 6 a 11, os escribas e fariseus desejaram que o homem da mão ressequida fosse curado pelo Mestre no dia santo para terem motivo de acusá-lo por violação da Lei e a resposta que receberam foi esta:

"Que vos parece? É lícito, no sábado, fazer o bem ou o mal? Salvar a vida ou deixá-la perecer? (6:9)

Ao censurar os fariseus e os intérpretes da Lei no capítulo 11, Jesus disse que estes religiosos sobrecarregavam os homens "com fardos superiores às suas forças" (11:46) e que, tomando eles a "chave da ciência", não entravam na vida e ainda impediam os que estavam entrando (11:52). Assim, no episódio em comento, sobre a cura da mulher encurvada, temos uma representação do que muitas das vezes sucede com as pessoas sufocadas pelo legalismo.

Lamentavelmente, muitos se tornam encurvados e sem poder se endireitar por causa das regrinhas de homens elaboradas a partir de uma má interpretação dos mandamentos constantes nas Escrituras. Em diversas igrejas da nossa atualidade, impõe-se uma teologia cega em relação à própria vida e que faz as pessoas adoecerem espiritualmente. As orientações pastorais passam a conflitar até mesmo com a real vontade de Deus diante de cada caso concreto e a doutrina torna-se um peso nas costas impedindo o indivíduo de contemplar o lindo horizonte em sua frente e passando a olhar só para o chão da letra.

Nesta sinagoga desconhecida onde Jesus teria pregado, seus adversários ali presentes ficaram envergonhados enquanto o povo se alegrou pelos atos gloriosos realizados (v. 17). Compreendemos assim que o Senhor não veio só para curar as pessoas de suas enfermidades físicas mas também as espirituais. Falo daquelas doenças capazes de oprimir as mentes e o interior do nosso ser em que muitos padres, pastores, rabinos, teólogos, professores de escola bíblica e mestres fechados de qualquer religião cerceiam a liberdade nos mais diversos aspectos impedindo o homem de viver com plenitude e de guardar a Lei de Deus na espontaneidade do amor.

Por que razão aquela comunidade iria celebrar o deleitoso Shabat com uma pessoa da congregação doente se a mesma poderia receber de uma vez o milagre e curtir o resto daquele dia santo de adoração totalmente curada?

Que justificativas ainda podem existir para alguns pastores de igreja quererem proibir suas ovelhas de tomarem banho de mar com decência numa praia, irem a um culto vestidas de bermuda, beberem moderadamente uma cervejinha se não sofrerem de alcoolismo, ouvirem músicas seculares edificantes ou mesmo terem um sadio relacionamento sexual com fidelidade dentro do namoro sem ainda estarem casadas no papel? Ora, já vi gente honesta vivendo em união estável há anos serem boicotadas de ir a retiros de casais. Não duvido que essa truculência neo-farisaica chegue a abranger também um patrulhamento na participação da Ceia do Senhor a ponto desses hipócritas de hoje ignorarem uma situação fática incontestável. Aliás, certa vez um casal que virou evangélico foi induzido a pensar que ambos deveriam abster-se da intimidade matrimonial até formalizarem o relacionamento. Absurdo!

Faço deste texto a minha oração para que as libertadoras palavras de Jesus não permaneçam encobertas para o coração da Igreja neste século XXI de decisivas mudanças. Seguir a Cristo implica em nos livrarmos dos fardos pesados da religiosidade abraçando a causa do Evangelho com o devido esclarecimento, atitudes de fé e amor. Nossa caminhada espiritual para Jerusalém precisa ser uma festiva celebração da vida, sem qualquer regramento inútil criado por alguns homens para oprimirem os demais.


OBS: A ilustração acima refere-e ao quadro Cristo curando uma mulher enferma no sábado do artista francês James Tissot (1836-1902), correspondendo ao texto estudado. A obra encontra-se atualmente no Museu do Brooklyn, em Nova York, e foi extraída do acervo virtual da Wikipédia em http://en.wikipedia.org/wiki/File:HealWomanSabbath.jpg

quinta-feira, 22 de agosto de 2013

A indispensabilidade do arrependimento


"Naquela mesma ocasião, chegando alguns, falavam a Jesus a respeito dos galileus cujo sangue Pilatos misturara com os sacrifícios que os mesmos realizavam. Ele, porém, lhes disse: Pensais que esses galileus eram mais pecadores do que os outros galileus, por terem padecido estas coisas? Não eram, eu vo-lo afirmo; se, porém, não vos arrependerdes, todos igualmente perecereis. Ou cuidais que aqueles dezoito sobre os quais desabou a torre de Siloé e os matou eram mais culpados que todos os outros habitantes de Jerusalém? Não eram, eu vo-lo afirmo; mas, se não vos arrependerdes, todos igualmente perecereis. Então, Jesus proferiu a seguinte parábola: Certo homem tinha uma figueira plantada na sua vinha e, vindo procurar fruto nela, não achou. Pelo que disse ao viticultor: Há três anos venho procurar fruto nesta figueira e não acho; podes cortá-la; para que está ela ainda ocupando inutilmente a terra? Ele, porém, respondeu: Senhor, deixa-a ainda este ano, até que eu escave ao redor dela e lhe ponha estrume. Se vier a dar fruto, bem está; se não, mandas cortá-la." (Evangelho de Lucas, capítulo 13, versículos de 1 a 9; versão ARA)

Como visto no estudo bíblico anterior sobre o 3º Evangelho, ainda no capítulo 12, Jesus havia dito às multidões que era preciso aprender a discernir os tempos (12:54-59). Não em relação ao clima, se vai chover ou fazer sol, mas sobre o que Deus tem feito no nosso meio. Seus ouvintes ainda não estavam percebendo o propósito desse momento presente da chegada do Reino que é o de chamar a humanidade inteira para reconciliar-se com o seu Criador e também com as demais criaturas (homens, animais e a natureza). Já não cabe mais alimentarmos demandas entre nós e o ciclo geracional da ação/reação tem que ser quebrado pela via do amor e do perdão.

Para tão importante mudança há um pré-requisito chamado arrependimento. Era o que João Batista tanto pregava (3:3,7-14). E, com Jesus, a mensagem é confirmada sendo que, no texto citado acima, o Mestre passa a desconstruir a ideia preconceituosa de que a repressão das autoridades, o infortúnio e a calamidade fossem necessariamente resultados de um castigo específico dos pecadores. Isto porque, tal como se observa no Livro de Jó, quanto às posturas injustas dos amigos destes, era ainda assim nos tempos do ministério nosso Senhor.

Recordo que, quando ainda morava na cidade serrana de Nova Friburgo (RJ) e houve ali a maior tragédia climática da história brasileira (janeiro/2011), não demorou muito para surgirem pessoas ligando os lamentáveis acontecimentos aos pecados individuais dos cidadãos. Falavam como se as centenas de vidas ceifadas, que perderam seus familiares, ou ficaram desabrigadas, tivessem sido divinamente penalizadas.

Entretanto, o que há de pior nesses comentários inapropriados é a ausência de uma auto-crítica caracterizada pelo não reconhecimento da necessidade de arrependimento pessoal. Temos grande facilidade de apontar para os outros vendo os seus defeitos, mas falhamos quando nos consideramos homens e mulheres bons. E os que geralmente têm maiores dificuldades para compreender isto são os mais religiosos, os ricos e os mais cultos porque se acham santos, abençoados por Deus ou confiam demais no próprio entendimento. E tal engano pode ocorrer até com quem se encontra numa igreja como membro atuante ou ainda na qualidade de liderança.

Assim, Jesus é bem claro em explicar às multidões sobre a condição pecadora de todos os mortais e chama seus ouvintes ao arrependimento por duas vezes repetidas (versos 3 e 5). No ensino do Mestre não há exceção para ninguém. Ele mesmo deu seu notável exemplo quando se dispôs a ser batizado nas águas por João junto com todo o povo, recebendo o devido louvor do Pai (3:21-22), enquanto que os fariseus e os intérpretes da Lei teriam se recusado (7:30).

Com a Parábola da Figueira Estéril transcrita acima (versos 6 a 9), o dono da vinha concedeu mais uma oportunidade para que a planta produzisse fruto após ouvir a sugestão amorosa do seu trabalhador agrícola para adubar o solo. Deste modo aprendemos que Deus pode mostrar-se paciente e misericordioso com os pecadores, o que não significa que aprove os nossos erros. Logo, muitos têm recebido tempo para refletir sobre suas condutas más e buscarem arrependimento, passando a produzir frutos condizentes com uma vida realmente transformada pelo Espírito Santo.

A leitura da passagem bíblica em comento, por si só, não nos autoriza ligar a ideia do perecimento à teologia da condenação ao inferno. O resultado da ausência de arrependimento é comparado com o fim dos galileus assassinados por Pilatos e as dezoito pessoas mortas com o desabamento da torre de Siloé na Cidade Sagrada. Ou seja, se permanecermos impenitentes, enganando a nós mesmos e brincando de religião, não há como colher vida. O pecado trará consigo suas consequências.

Portanto, meus amigos, não deixemos para mudar amanhã. O quanto antes a humanidade arrepender-se será melhor para ela sair da sua condição atual de perecimento. Pode-se dizer que até hoje muitos de nós têm perecido porque insistimos em continuar no erro. Cometemos injustiças e estas de alguma maneira nos atingem perpetuando um longo ciclo geracional a ponto de contaminar o meio social onde nascemos, nos criamos e evoluímos. Só que, com Jesus, somos chamados para construir uma nova realidade amorosa que é o Reino de Deus, cabendo a cada qual tomar essa consciência mudando o próprio rumo.

Finalmente, quero chamar a atenção para a conduta do viticultor na parábola. Muitas vezes precisamos colocar fertilizantes nas vidas das pessoas que não têm produzido frutos. Ao invés de torcermos para o fracasso espiritual do próximo, devemos cooperar com Deus para que não haja esterilidade na Casa do Senhor. Afinal, o Pai Celestial que contar conosco nessa tarefa de semearmos arrependimento e transformação de caráter nos corações dos homens. Tanto é que o dono da vinha aprovou a sua atitude misericordiosa para com a figueira. Façamos, pois, o mesmo.


OBS: A imagem acima trata-se de uma gravura do artista holandês Jan Luyken (1649-1712) utilizada para ilustrar a parábola na Bíblia Bowyer. Foi extraída do acervo virtual da Wikipédia em que a autoria da foto é atribuída a Phillip Medhurst oriunda de Harry Kossuth, conforme consta em http://en.wikipedia.org/wiki/File:Teachings_of_Jesus_36_of_40._parable_of_the_fig_tree._Jan_Luyken_etching._Bowyer_Bible.gif

O batismo da Terra


"Eu vim para lançar fogo sobre a terra e bem quisera que já estivesse a arder. Tenho, porém, um batismo com o qual hei de ser batizado; e quanto me angustio até que o mesmo se realize! Supondes que vim para dar paz à terra? Não, eu vo-lo afirmo; antes, divisão. Porque, daqui em diante, estarão cinco divididos numa casa; três contra dois, e dois contra três. Estarão divididos: pai contra filho, filho contra pai; mãe contra filha, filha contra mãe; sogra contra nora, e nora contra sogra." (Palavras atribuídas a Jesus de Nazaré em Lucas, capítulo 12, versículos de 49 a 53; versão ARA)

Assustador o Senhor Jesus dizer que deseja botar fogo no planeta, não? Mas acho importante primeiramente compreendermos o que estas palavras enigmáticas e polêmicas têm a nos dizer.

No capítulo 3 do Evangelho, quando João testemunhou acerca da vinda do Cristo, disse que ele traria um batismo "com Espírito Santo e com fogo", figura esta que simboliza juízo (3:16). Porém, como escrevi no artigo Um messias que se fez amigo de pecadores, aquele grande profeta pode não ter compreendido na totalidade o ministério de Jesus (7:18-19). Provavelmente por esperar que o Mestre trouxesse um julgamento imediato à Terra punindo os pecadores impenitentes.

O termo batizar tem a ver com morte e destruição. A crucificação do Senhor é referida por ele no texto citado como um batismo (verso 50). E, na simbologia do ritual aplicado pela Igreja primitiva, significava o fim de um estilo de vida e a inauguração de algo novo.

Assim, podemos entender o que seria "lançar fogo sobre a terra" e pensarmos nos motivos pelos quais Jesus queria ver um incêndio ardente. Ou seja, o Salvador estava profetizando a morte do sistema político e religioso que governa as mentes e os corações. Algo que ocorreria antes da plena realização do Reino de Deus.

Os versos 51 a 53, os quais falam sobre trazer divisão à Terra, pode ter a ver também com o que João dissera anteriormente sobre o julgamento do Messias em recolher o trigo no celeiro e queimar a palha como se lê em Lc 3:17.

É certo que a inauguração do novo não vai suceder pacificamente sem enfrentar uma resistência conflituosa do mal instalado na sociedade, passando de geração a geração, motivo pelo qual as pessoas ainda permaneceriam divididas entre si durante algum tempo. Inclusive dentro de uma mesma casa já que a revolução do Reino é algo de raiz porque de nada adianta mudarmos governos, ou lideranças, ou normas jurídicas, ou modos de produção econômica, se nossos valores éticos e espirituais ainda são os mesmos de antes a ponto de não fazerem diferença nos relacionamentos mais próximos.

Já vi pessoas fazendo menção a esses versículos do Evangelho para mascararem o mau comportamento que elas têm dentro do lar. Usam as palavras de Jesus como desculpa esfarrapada para tentarem justificar os desajustes familiares sendo que, na verdade, elas são as próprias causadoras dos conflitos. Não raramente estes ultra-religiosos alegam uma "perseguição" do parente, por supostas razões espirituais, mas, na prática, a situação nada tem a ver com aquilo que dizem. Só quem pode explicar talvez seja o senhor Sigmund Freud.

Evidente que o ensino do Mestre não pode confundir-se com picuinhas e implicâncias domésticas. Aliás, um comportamento deste tipo não está nem um pouco de acordo com a vida no Reino de Deus. Um cristão que fica procurando motivos para arrumar confusão em casa ainda não compreendeu a mensagem de Jesus, quer chamar a atenção do familiar para si e agir com injustificável intransigência, sendo incapaz de discernir os sinais do tempo. E isto é o que o Senhor vai dizer em seguida para as multidões (toda a humanidade):

"Quando vedes aparecer uma nuvem no poente, logo dizeis que vem chuva, e assim haverá calor, e assim acontece. Hipócritas, sabeis interpretar o aspecto da terra e do céu e, entretanto, não sabeis discernir esta época? Por que não julgais também por vós mesmos o que é justo? Quando fores com o teu adversário ao magistrado, esforça-te para te livrares desse adversário no caminho; para que não suceda que ele te arraste ao juiz, o juiz te entregue ao meirinho e o meirinho te recolha à prisão. Digo-te que não sairás dali enquanto não pagares o último centavo." (Lc 12:54-59)

Ora, a época em que vivemos é de mudança de atitude e produção de frutos de justiça. Trata-se de um momento para a humanidade reconciliar-se com o seu Criador. Até porque ninguém tem uma boa causa capaz de dar sustentação ao litígio no conflito com seu próximo. Se nossas demandas vierem a ser sentenciadas pelo Juiz Onisciente que é Deus, serão sempre julgadas improcedentes em sua ótica elevada porque somos todos pecadores. Por isso Jesus recomenda nos livrarmos do adversário "no caminho" (verso 58), significando, na certa, a liberação do perdão e a renúncia da lide.

Vale observar que, junto com a justiça do Reino opera a graça salvadora. Deus zera a dívida de todo o mundo e espera que façamos o mesmo uns para com os outros. Num mundo onde os problemas resultam de sucessivas ações e reações ocorridas há gerações, jamais os relacionamentos serão restaurados pelo convencimento de quem afinal de contas encontra-se com a razão. Insistir nisto é perpetuar a situação conflituosa sendo que uma nova oportunidade hoje nos é liberalmente concedida pelo Pai Celestial e Senhor de todo o Universo afim de tentarmos nos harmonizar.

Certamente que esse batismo de fogo de Jesus não implica na destruição Terra, da natureza criada ou de seus habitantes como muitos pregadores costumam dizer por aí. Trata-se mais da transformação sócio-espiritual planetária, com repercussão nos planos político e econômico, sendo que, até a sua consolidação, vai requerer de nós uma disposição para superarmos pacientemente o período crítico usando a fé. Nos tempos do ministério Senhor, o Reino foi apenas uma fogueirinha que ele acendeu, mas agra está bem que ardendo em chamas e inspirando grandiosas mudanças humanizadoras omo já vem acontecendo até nas constituições democráticas dos países e nas famílias modernas onde um aceita o modo de ser do outro. E a evolução vai continuar.

Bendito fogo! Que venha o Reino!


OBS: A foto usada acima refere-se à imagem obtida pela NASA durante a missão da Apollo 17 (1972) que foi a última viagem tripulada à Lua feita pelos norte-americanos. Foi extraída a partir do acervo virtual da Wikipédia em http://pt.wikipedia.org/wiki/Ficheiro:The_Earth_seen_from_Apollo_17.jpg

quarta-feira, 21 de agosto de 2013

Corpos cingidos e candeias acesas



Diferentemente do livro de Mateus, em que os ensinamentos escatológicos concentram-se mais no Sermão Profético do Monte das Oliveiras (capítulos 24 e 25), eis que, no Evangelho de Lucas, constatamos uma abordagem mais transversal de Jesus durante sua viagem de peregrinação a Jerusalém (9:51-19:44). Importante esclarecer que as coisas que o Mestre fala sobre os "últimos tempos" não se prendem a uma revelação do futuro, mas se relacionam também com a realidade presente de todas as eras. Isto porque, em seu ministério, o Reino já é chegado, sendo um processo histórico em curso.

Quando criticou a hipocrisia religiosa, falando contra o "fermento dos fariseus", Jesus estava prevenindo seus discípulos (a futura Igreja) acerca desse comportamento capaz de corromper a nova "massa". Após ter sido interrompido por um homem que desejava ter a herança paterna com ele repartida pelo irmão e tratado particularmente da ansiosa solicitude com os seus discípulos (Lc 12:22), nosso Senhor parece retornar no versículo 35 do capítulo 12 à instrução anteriormente dada através da Parábola do servo vigilante. Não custa abrirmos nossas bíblias (ou uma janela no Windows) para acompanharmos os comentários ao texto lendo até o verso 48.

Nos tempos antigos, em que as pessoas cobriam-se com longas túnicas, estas roupas atrapalhavam o movimento do corpo durante a atividade laboral. Era preciso muitas das vezes segurar as vestes acima dos joelhos por meio de um cinto. Logo, numa visão metafórica de estudo bíblico, deve-se entender que o termo "cingido" significa nos prontificarmos para o serviço de Deus, mais precisamente trabalhando pelo outro ao invés de sermos servidos.

Sobre as candeias, não podemos jamais esquecer que, na época de Jesus, inexistia a luz elétrica. À noite, as pessoas iluminavam o ambiente de suas residências e os seus caminhos no meio externo com lâmpadas de azeite. Pode-se dizer que até hoje, mesmo com os países da OPEP produzindo milhões de barris de petróleo diariamente, existem ainda beduínos do deserto orientando-se como no primeiro século. Era impossível andar sem aquelas formas antigas de lanternas! Ainda mais se fosse uma noite sem lua.

Em resumo, o texto em análise fala de um poderoso senhor que, ao se ausentar de sua propriedade, delega funções administrativas aos servos e não marca uma hora certa para retornar. Quando volta, quer encontrá-los todos vigilantes, ocupando-se amorosamente com o serviço da casa, conscientes da responsabilidade que têm e não apenas trabalhando às vistas do dono. Ele não é um explorador da mão-de-obra utilizada na fazenda. Antes é capaz de igualmente cingir-se, permitir que seus empregados tomem assento em sua mesa e os servem (verso 37). Também não tolera que mordomos cometam injustiças contra os seus conservos (vv. 45-46).

Desde o versículo 22, como Jesus estava falando com os discípulos e não com as multidões, Pedro então pergunta se a parábola se aplicaria somente a eles "ou também para todos" (v. 41). O Mestre não lhe responde diretamente, mas, pelo que se percebe nas palavras posteriores, o papo aqui é com a Igreja. Nosso Senhor mostra que a obra de Deus não é brinquedo e haverá julgamento severo para o ministro eclesiástico que se vale das prerrogativas de sua função para agir em benefício próprio aproveitando-se dos demais companheiros.

Todo o trabalho de Jesus foi contra as injustiças de todos os tipos. Ele desafiou os sistemas excludentes dos palácios dos governadores e dos templos religiosos. Tinha consciência da má inclinação do comportamento humano para a hipocrisia e de modo algum desejava que a Igreja virasse um sacerdócio corrompido. Era sua intenção que o Evangelho do Reino se tornasse mais ou menos aquilo que, séculos posteriores, o bolchevique Leon Trótski (1879-1940) chamaria de "revolução permanente", no sentido de não sofrer solução de continuidade.

É claro que as  percepções das ideias dos ouvintes de Jesus estava sujeita aos valores da época e daí o Mestre ter usado a metáfora de um "servo". Ou melhor dizendo, de um escravo, tendo em vista que, por motivo de endividamento ou de conquista militar, as pessoas poderiam ser rebaixadas a tal condição conforme as leis de Roma. Assim, não se pode julgar com o olhar de hoje a forma como as boas-novas foram apresentadas às primeiras comunidades cristãs pelo autor sagrado, mas devemos extrair a essência da parábola, considerando que, no seu devido contexto, havia senhores bons e justos. Por ouro lado, não podemos nos esquecer que o Salvador estava fazendo uma verdadeira inversão de papéis já que, como escrevi, os servos vigilantes serão servidos na volta do dono da casa.

Conforme disse antes, a revolução de Jesus seria mais ou menos parecida com a de Trótski. Eu diria até que mais evoluída, apesar de anteriormente anunciada, por ser pacífica e não autorizar a estupidez da luta armada. Isto porque a guerra travada pela causa do Reino se dá no nível consciencial das pessoas, fazendo com que, no tempo certo, a hedionda exploração da mão-de-obra do trabalhador perca a sua força não restando nenhum efeito mais no fermento. Portanto, maior do que lutar pelo abolicionismo, o fim da propriedade privada, ou outras questões, seria a transformação ética do ser humano.

Curioso que, na parábola de Jesus, os criados e criadas são espancados pelo "mordomo", o qual era também um escravo nomeado pelo seu senhor para gerir todos os negócios da casa. Devido ao seu cargo administrativo, este servo recebia grande autoridade sobre os demais podendo até castigá-los e vivia melhor que muitos homens livres. Somente o dono da casa, que estava ausente, poderia demiti-lo da função.

Ora, não é isso que vem ocorrendo até hoje nas revoluções dos povos? Quem passa a governar o país muitas das vezes não comete delitos até piores do que o rei ou o ditador deposto?

Em relação à Igreja, Jesus estaria prevendo situação idêntica e que abrange o plano religioso. Com o aumento no número de seguidores e de pessoas sendo assistidas pela caridade, líderes tentariam fazer das futuras comunidades cristãs uma via para o poder. E esta prática aconteceu com a oficialização do cristianismo e ainda ocorre até hoje. Inclusive nesses envolvimentos eleitorais promíscuos entre pastores evangélicos e seus candidatos através do recorrente argumento de se colocar em Brasília um "homem de Deus".

Mas as palavras de Jesus não voltarão vazias!

Creio plenamente, irmãos, de que, no tempo certo de Deus, haverá uma mudança visível da realidade e os falsos líderes serão desmascarados. Deverão prestar contas do que fizeram usando o nome do Senhor em proveito pessoal, o que significará o recebimento das simbólicas penas de "açoites" (vv. 47-48). Só que até lá cabe a nós tornarmos permanente a revolução do Reino, denunciando claramente as obras desses pastores maus. Nem que para tanto sejamos excomungados das paróquias, chamados de apóstatas e tenhamos o nosso prestígio afetado no meio eclesiástico. Afinal, o nosso compromisso é com Deus e com o seu Cristo, não com os homens. Portanto, mantenhamos cingidos os corpos e acesas as candeias afim de servirmos de coração os irmãos na fé, cientes de que o nosso Senhor está voltando. Aleluia!


OBS: A imagem acima trata-se de uma gravura do artista holandês Jan Luyken (1649-1712) utilizada para ilustrar a parábola na Bíblia Bowyer. Foi extraída do acervo virtual da Wikipédia em que a autoria da foto é atribuída a Phillip Medhurst oriunda de Harry Kossuth, conforme consta em http://pt.wikipedia.org/wiki/Ficheiro:Teachings_of_Jesus_32_of_40._the_faithful_and_wise_steward._Jan_Luyken_etching._Bowyer_Bible.gif