"
Orar é derramar o coração diante de Deus".
(
Friedrich Heiler)
É muito interessante notar que, em todas as religiões e culturas, a oração é milenarmente praticada ainda que sob diferentes maneiras, expressando os variados sentimentos humanos como a gratidão, a culpa, a alegria, a tristeza, o amor, a raiva e a solidão. Pela oração louvamos, adoramos, desabafamos os nossos problemas, reconhecemos as coisas boas proporcionadas pela vida e também apresentamos as nossas necessidades através de pedidos. Aliás, diga-se de passagem que pedir coisas a Deus é uma das coisas que as pessoas mais costumam fazer nos dias de hoje.
Segundo a
Torah, teria sido Enós (ou
Enosh), o terceiro patriarca pré-diluviano, quem teria começado a invocar o nome de Deus (Gênesis 4.26), muito embora o nome
Iahweh, geralmente grafado como
SENHOR na maioria das traduções bíblicas, parece ter sido conhecido somente a partir da época do êxodo dos israelitas (Ex 3.13-14).
Todavia, não importa como o Eterno foi originalmente chamado pela errante humanidade (
enoshut) ou se o "neto" de Adão, que viveu apenas 905 anos (Gn 5.11), teria sido um personagem histórico. O que se mostra mesmo relevante em tal passagem bíblica é o fato de que, num determinado momento do passado remoto, o homem mortal (consciente de sua vulnerabilidade e necessidade) começou a procurar Deus. E isto se deu, provavelmente, numa época quando não havia ainda igrejas, templos, escrituras sagradas, terços, rosários, seminários teológicos, cantores de música evangélica, nem padres, pastores, rabinos, mulás ou qualquer tipo de cargo sacerdotal. Inclusive, nem havia reis ou classes sociais, mas apenas clãs espalhados pela face da Terra, vivendo ainda como nômades ou tentando se sedentarizar às margens de algum rio e tentando sobreviver no meio de uma natureza ainda selvagem.
Enquanto em algum momento da pré-história surgiu a tendência de orar, muitos dizem que, hoje em dia, tem-se configurado um comportamento contrário e apático. É uma constatação de que, nas atuais sociedades do Ocidente, as pessoas oram muito pouco e até mesmo os que frequentam alguma igreja têm relaxado quanto a esta prática que, de acordo com os evangelhos, jamais foi negligenciada por Jesus.
Mas será que a tendência de invocar a Deus não teria sempre convivido com as dificuldades do homem em orar?
Penso que sim. Pois é daí é que deve ter vindo a figura do sacerdote. Alguém ostentando poderes xamânicos e que se coloca como um intercessor do povo, fazendo contatos com o além. Logo, desde os primórdios, ao tentar invocar a Divindade, o homem cometeu o equívoco de delegar para uma outra pessoa a tarefa de ser o seu mediador, deixando ele mesmo de orar diretamente a Deus, uma profanação do relacionamento de maior intimidade que Adão e seus filhos chegaram a estabelecer numa comunicação que parecia ser um diálogo bem natural e espontâneo, mesmo depois da queda.
Segundo o terceiro Evangelho, os próprios seguidores de Jesus pediram ao Mestre que lhes ensinasse a orar da mesma maneira que João Batista havia feito com os seus discípulos (Lucas 11.1). Assim, o Messias nos deu um modelo de oração que ficou popularmente conhecido como o "Pai-Nosso" (Lc 11.2-4) que costuma ser repetido dominicalmente nas missas católicas conforme a versão mais completa contida no
Sermão da Montanha (Mateus 6.9-13).
Recitar o
Pai-Nosso, os salmos de Davi ou as orações redigidas por alguém, nunca seria demais e até ajuda nos momentos quando nos faltam palavras. Só que não podemos esquecer que Jesus apenas ensinou um modelo, na certa exemplificando e enfatizando os temas nos quais devemos nos basear. E aí, sem tentar fazer um detalhamento prolongado do Pai-Nosso, parece-me que o Senhor desejava que entendêssemos melhor estes pontos: a santidade do caráter divino; o propósito de construção do reino celestial nos corações humanos que é confirmado pela vontade de Deus através de um paralelismo no texto de Mateus; que as petições devem se voltar para o suprimento de necessidades relacionadas a um cotidiano real; o momento em que busco retornar ao caminho certo relembrando os erros praticados (coisa que os judeus fazem com a prática do
Teshuvá) precisa incluir a minha compreensão acerca do comportamento do próximo aceitando as pessoas como elas são; e contar com Deus para perseverarmos no propósito benigno de submissão à sua vontade e construção do reino celestial.
Eu poderia me aprofundar mais no
Pai-Nosso e sei que existem vários livros já escritos a respeito da oração ensinada por Jesus. Prefiro, porém, deixar isto para uma outra ocasião porque considero no momento mais relevante relacionar a oração com a fé. Isto porque se trata de um ato em que o homem desafia e vence aquele tipo de dúvida que, no fundo, quase todos têm e só poucos são corajosos para admitir:
Será que a minha oração foi ouvida por Deus ou estou esquizofrenicamente apenas falando comigo mesmo?
Tenho pra mim que esta angustiosa dúvida será sempre um grande mistério na oração e pode fazer a nossa fé evoluir quando optamos por um comportamento determinado em continuar esperando em Deus e buscando compreender a pedagogia dos acontecimentos da vida. Pois, mesmo que uma tragédia ocorra após eu ter feito as minhas orações, mostro que estou crendo ao continuar nutrindo minhas esperanças através da perseverança e de ações condizentes, coisa que uns fazem com entusiasmo enquanto outros quase desfalecendo em seus ânimos mas que também expressa fé.
Por outro lado, a oração não atendida pode ser motivo para que venhamos a refletir melhor se as petições que fazemos não estão indo contra a orientação do
Pai-Nosso, sendo que, neste sentido, tornam-se bem pertinentes as palavras escritas na sua epístola de Tiago: "
pedis e não recebeis, porque pedis mal para esbanjardes em prazeres" (Tg 4.3; ARA) ou "(...)
gastar para vossos prazeres" (TEB).
Com exceção dos casos em que as pessoas fazem da prática devocional uma desculpa para não enfrentarem os problemas do cotidiano, deixando de assumir as consequências do próprio ato, orar torna-se uma maneira muito saudável de viver um dia de cada vez. Principalmente se a oração estiver em consonância com as ações praticadas em prol de um resultado positivo, como pode ser lido nesta parábola contada pelo padre jesuíta
Anthony de Melo (1931-1987) cuja obra foi postumamente condenada pelo então cardeal reacionário
Joseph Ratzinger (o atual para Bento XVI):
"Certo homem, ao passear pela floresta, viu, admirado, uma raposa sem as patas traseiras. Perguntava-se, em sua mente, como o pobre animal faria para sobreviver, quando um fortíssimo tigre apareceu repentinamente, trazendo entre os dentes, caça nova. A fera comeu o quanto quis, deixando o restante do lado da raposa. Assim o homem compreendeu como a raposinha lograva sobreviver na selva hostil: 'Maravilha! A providência divina nutre a raposa por meio do tigre. Permanecerei também eu, deitado em um caminho da floresta, confiando na bondade do Senhor, o qual há de me enviar o necessário!' Passaram-se vários dias, quando uma equipe de socorro finalmente encontrou o homem desacordado no meio da floresta. Após reanimá-lo, o chefe da equipe quis ouvir dele porque não conseguira voltar para casa, e o homem lhe contou o ocorrido. O outro então lhe respondeu: 'Você é idiota? Não percebe que deveria imitar o tigre, animal autônomo, e não a raposa aleijada?'" (extraído do livro "
Onde a religião termina?" do ex-frei
Marcelo da Luz, pág. 91)
Que Deus nos dê forças para que possamos ao mesmo tempo orar e agirmos com a valentia de um tigre lutador! Afinal, tanto a raposa aleijada quanto uma fera do campo dependem igualmente da Divina Providência. Contudo, algo me diz no íntimo que o Criador alegra-se em contemplar o despertamento do tigre em cada um de seus filhos. É quando o Espírito de Deus age com o nosso espírito.
OBS: A ilustração acima refere-se à obra
Mãos em oração do pintor e desenhista alemão
Albrecht Dürer (1471–1528) e que se encontra na Galeria Albertina, em Viena (Áustria).