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segunda-feira, 28 de novembro de 2011

A ideia de Deus como um “pastor”

O salmo 23 é um dos mais conhecidos da Bíblia pela fé que suas palavras transmitem ao leitor, proporcionando conforto e segurança para quem espera em Deus. Em seus seus versículos, o poeta descreve a solicitude divina para com os justos através de duas imagens, apresentando o Eterno como um pastor (versos 1 a 4) e também como um anfitrião que oferece um banquete a um convidado de honra (versos 5 a 6).

A princípio, para que possamos melhor compreender a ideia de Deus como um pastor, é importante nos familiarizarmos mentalmente com o meio ambiente seco da Palestina onde o salmista teria composto o seu belo poema no idioma hebraico. Pois, aqui no Brasil, em quase todas as nossas religiões onde a vegetação e a água costumam ser abundantes para a agropecuária (exceto o sertão nordestino), pode-se dizer que as ovelhas cuidam de si mesmas ficando soltas no pasto. Porém, em lugares semiáridos como são a nossa Caatinga e mais ainda o Oriente Médio, a presença do pastor é indispensável já que, por diversas vezes, é preciso conduzir o rebanho por horas pelas paisagens desérticas até encontrar água e pasto verde para os animais.

Sem dúvida que, nestes locais secos e de criação extensiva, as ovelhas acabam desenvolvendo uma relação de confiança em relação ao pastor, passando até a reconhecer a voz de quem lhes guia e protege. Pois, sem o pastor, as dóceis e domesticadas ovelhas simplesmente vagariam sem rumo pela hostilidade do ambiente desértico até morrerem de fome, sede, frio ou serem atacadas por um predador. Por isto, esses animais indefesos não seguem a nenhum outro que não seja o verdadeiro cuidador.

Para a história do povo israelita, guiado pelo deserto do Sinai após o êxodo egípcio, a imagem de Deus como pastor torna-se algo de fácil identificação cultural. De acordo com a Torá, os filhos de Israel viveram 40 anos sob a proteção do Eterno num ambiente. Foram milagrosamente protegidos do sol forte através de uma nuvem (durante o dia) e aquecidos por uma coluna de fogo (à noite), além de receberem o maná como alimento de domingo à sexta-feira com porção dobrada neste dia da semana para que não laborassem no Shabat. É como relata poeticamente o livro de Neemias num re-exame pós-exílico da lei mosaica:

“Todavia, tu, pela multidão das tuas misericórdias, não os deixaste no deserto. A coluna de nuvem nunca se apartou deles de dia, para os guiar pelo caminho, nem a coluna de fogo de noite, para lhes alumiar o caminho por onde haviam de ir. E lhes concedeste o teu bom Espírito, para os ensinar; não lhes negaste para a boca o teu maná; e água lhes deste na sua sede. Desse modo os sustentaste quarenta anos no deserto, e nada lhes faltou; as suas vestes não envelheceram, e os seus pés não se incharam.” (Ne 9.19-21; ARA)

Ora, ninguém precisa acreditar literalmente na ocorrência desses fenômenos. Toda a jornada de travessia dos israelitas pelo deserto é uma imagem da orientação do homem pela Torá em sua caminhada. Significa sermos guiados e cuidados por Deus na trajetória de vida através de uma experimentação mística, relacionando-se também com o aspecto coletivo e não se restringindo somente ao individual.

Voltando ao Salmo, cuja autoria é atribuída ao rei Davi, tem-se logo no começo o incentivo á confiança de que Deus irá suprir totalmente o seu “rebanho”, conhecendo as necessidades fundamentais das “ovelhas” melhor até do que elas mesmas. Então, tudo o que elas realmente precisam o Pastor irá lhes proporcionar ainda que nada Lhe seja pedido. E, como se vê, a grama não é seca, mas fresca, adequada para o animal deitar e repousar. Também as águas, ao invés de serem agitadas, são tranquilas e seguras, permitindo a ovelha saciar sua sede.

Tal cenário bíblico dos versos 1 e 2 parecem até a habitação celestial descrita no Apocalipse sobre a Nova Jerusalém. Porém, não é propriamente sobre o futuro que o salmista está falando, mas sim do conforto recebido no presente, capaz de levantar seus ânimos em meio às lutas do cotidiano. Assim, quando o versículo 3 fala em refrigério para a alma, certamente podemos entender isto como uma restauração das nossas forças espirituais em Deus. Isto porque é o Eterno quem sustenta a nossa vida pela sua Torá (orientação), dando-nos mais do que pão para o estômago.

A Palavra de Deus, a qual também podemos entender por “instrução” (vocábulo mais adequado do que “lei” para traduzir Torá no nosso idioma), é também o caminho de justiça pelo qual a ovelha é guiada. Ou seja, quando permitimos que o Eterno nos dirija, podemos alcançar a verdadeira paz através de uma tranquilidade e de uma serenidade no nosso interior.

A esse respeito, a Bíblia é riquíssima em exortações. Os mandamentos divinos são orientações dadas aos homens para que todos possam viver bem e em harmonia com o Universo. Isso encontra-se explícito nos cinco livros da Lei de Moisés, no Salmo 1º que fala dos caminhos do justo e do ímpio, além de inúmeros outros poemas, provérbios e advertência dos profetas:

“Filho meu, não te esqueças dos meus ensinos e o teu coração guarde os meus mandamentos; porque eles aumentarão os teus dias e te acrescentarão anos de vida e paz. Não te desemparem a benignidade e a fidelidade, ata-as ao pescoço; escreve-as na tábua do teu coração e acharás graça e boa compreensão diante de Deus e dos homens. Com fia no SENHOR de todo o teu coração e não te estribes no teu próprio entendimento. Reconhece-o em todos os teus caminhos, e ele endireitará as tuas veredas. Não sejas sábio aos teus próprios olhos; teme ao SENHOR e aparta-te do mal; será isto saúde para o teu corpo e refrigério, para os teus ossos.” (Pv 3.1-8; ARA)

Assim como um homem honrado cumpre com a sua palavra, mais ainda a instrução do Eterno não pode falhar e Ele nos conduzirá em paz pelos caminhos da vida. Tal como a gravidade atrai o corpo ao chão, os mandamentos divinos são leis que regem metafisicamente o Universo. E aí, reverenciar a instrução torna-se o primeiro passo para alcançarmos a sabedoria interior.

Na sequência, o salmista fala sobre a ausência de receio ou de temor do mal caso viesse a andar “pelo vale da sombra da morte”, o que traduz o apoio de Deus nos nossos momentos de adversidade. Segundo o teólogo congolês Nupanga Weanzana, doutor em estudos do Antigo Testamento pela Universidade de Pretória, África do Sul, a referida expressão poderia ser um local de perigo onde as ovelhas fossem vítimas de animais selvagens “ou um vale íngreme que o rebanho precisava escalar ao se deslocar de um pasto para outro” (Comentário Bíblico Africano, pág. 639). Para ele, esta imagem também lembra a experiência de Israel em sua jornada espiritual pelo deserto do Sinai fazendo uma referência a um trecho do verso 6 do capítulo 2 do livro de Jeremias que assim diz: “e sem perguntarem: Onde está o SENHOR, que vos fez subir da terra do Egito? Que nos guiou através do deserto, por uma terra de ermos e de covas, por uma terra de sequidão e sombra de morte, por uma terra em que ninguém transitava e na qual não morava homem algum?”

Aduza-se que o “vale da sombra da morte” poderia significar também uma descrição negativa do reino dos mortos que os antigos hebreus construíram em seu imaginário coletivo. Tanto é que Jó, no auge do seu desespero, chegou a pedir para Deus deixá-lo em paz antes de partir “para a terra das trevas e de sombra da morte” (ver Jó 10.20-22). Só que para o salmista não importaria por onde ele caminhasse porque a presença envolvente do Eterno seria suficiente para protegê-lo e ampará-lo nas diversas situações.

Sinceramente, eu não vejo outra maneira de viver plenamente saudável senão através da fé.

Quando colocamos a nossa confiança em Deus, sem reservas, nenhuma situação vai nos amedrontar. É claro que não estamos isentos de sofrer com as más notícias, perdas e acontecimentos ruins porque somos humanos, não de ferro. Contudo, no momento em que tomarmos consciência da Divina Providência operando a nosso favor, passamos a desfrutar da doce paz do Eterno em nossos corações mesmo que tudo esteja desabando ao nosso redor.

Nessas horas precisamos nos lembrar bem do “bordão” e do “cajado” de Deus, instrumentos com os quais os pastores traziam de volta a ovelha desgarrada e protegiam o rebanho do ataque das feras do campo. Pois, caso um lobo surgisse repentinamente, o cajado seria capaz de afugentar o predador e até mesmo evitar uma aproximação.

Bendito cajado!

Quer nos desviemos ou passemos por dificuldades, certamente o Eterno não nos abandonará porque Ele ama o seu povo. A sua proteção e a sua provisão jamais nos faltarão. Logo, devemos prosseguir confiantes, sabendo que um banquete espiritual aqui e agora nos aguarda. E que bondade e misericórdia vão nos acompanhar todos os dias de nossas vidas, tendo em Deus o nosso lar eterno, com quem estaremos para sempre unidos.

Uma boa semana e que possamos deixar Deus nos conduzir e nos saciar completamente. Segue aí um excelente vídeo encontrado no Youtube com o Salmo 23 cantado na língua hebraica:

OBS: A imagem acima trata-se da obra "O Bom Pastor", mosaico no Mausoléu de Galla Placidia, Ravenna, datado da primeira metade do século V da era comum. Já a segunda ilustração seria uma retratação do Salmo 23 da versão King James de 1880 em que o provável autor talvez seja Edward Evans (1826-1905).

OBS 2: Este texto foi inicialmente postado no blogue Confraria Teológica em http://logosemithos.blogspot.com/2011/11/ideia-de-deus-como-um-pastor.html

sexta-feira, 25 de novembro de 2011

Pedro e Cornélio: afinal quem evangelizou quem?

Então, falou Pedro, dizendo: Reconheço, por verdade, que Deus não faz acepção de pessoas; pelo contrário, em qualquer nação, aquele que o teme e faz o que é justo lhe é aceitável.” (Atos dos Apóstolos 10.34-35; ARA)


É curioso como que muitos dos que se autoproclamam evangelistas arrogam-se em querer converter as outras pessoas não seguidoras de suas doutrinas ou costumes religiosos.

Posso fazer essa crítica porque já fui um cara assim. Um tremendo “mala”! E sei muito bem o que significa ter esta pretensão, alguém achando-se o dono da verdade e da razão, como se fosse o proprietário das “chaves do reino dos céus”.

Na passagem bíblica que fala sobre Pedro e Cornélio (cap. 10 de Atos dos Apóstolos), encontramos um belo exemplo de que o anúncio das Boas Novas do Reino não são propriedade de nenhum homem, seita, grupo étnico ou povo exclusivo. O Evangelho é nada mais do que a pura revelação da mensagem de Deus à humanidade, indicando o Caminho rumo ao conhecimento da Verdade e à promoção da Paz, tratando-se de algo acessível a todos. Um conhecimento que qualquer um é capaz de produzir.

Deus sempre nos leva mais além do nosso cotidiano para que possamos romper com as nossas limitações pessoais. E o episódio de Pedro e Cornélio mostra que aquela comunidade dos discípulos de Jesus, em Jerusalém, precisava vencer alguns preconceitos, afastando o etnocentrismo judaico e, assim, entender qual a dimensão da obra de Deus que fora profetizada há muitos séculos pelos profetas de Israel.

Segundo o livro de Atos, nesta época, Pedro permanecia firme no contexto do seu dia a dia, visitando as comunidades dos irmãos, curando e até ressuscitando pessoas. Contudo, Pedro necessitava de uma outra experiência para ir mais além das suas limitações e, deste modo, cumprir o glorioso chamado de Deus em sua vida.

O texto diz que, enquanto Pedro estava na cidade portuária de Jope (atual Haifa), eis que, em Cesareia, sede do governo provincial na região da Palestina, também marítima, morava um alto oficial do Império Romano chamado Cornélio.

Embora fosse estrangeiro, Cornélio residia entre os judeus e tinha um comportamento íntegro diante de Deus juntamente com toda a sua família. Pois, ao invés de oprimir o povo em nome do dominador romano, ele preferia praticar a caridade e, frequentemente, orava a Deus. Porém, por ser estrangeiro, Cornélio só deveria ser respeitado pelos moradores locais em razão de sua alta posição como autoridade e das boas ações que praticava. Isto porque, naquela época, os estrangeiros eram vistos como invasores, sendo que havia uma histórica briga entre judeus e gregos.

Apesar de sofrer todo este preconceito, Cornélio teve uma experiência sobrenatural numa certa tarde quando viu um anjo. Este, ao lhe aparecer, mandou que Cornélio enviasse mensageiros até Jope onde estava Pedro e conduzisse o apóstolo para Cesareia (At 10.5-6). Temente a Deus, Cornélio dispôs-se a obedecer prontamente a ordem transmitida pelo mensageiro.

Ocorreu que, no dia seguinte, por volta do meio dia, quando os homens enviados por Cornélio estavam a caminho de Jope, Deus falou com Pedro através de uma visão. Nosso irmão vê descer do céu, num lençol, vários animais considerados pela Lei de Moisés como impuros para a alimentação e para o sacrifício. Pedro, então, ouviu uma voz com uma ordem expressa para que ele comesse a carne de vários bichos considerados dieteticamente impuros para a alimentação de acordo com a lei mosaica (Levítico 11). Porém, por três vezes, o apóstolo recusou-se a obedecer o que lhe estava sendo falado na visão, mesmo advertido para que não considerasse como coisa comum aquilo que Deus purificou.

Sem ainda entender o significado daquela experiência, eis que chegaram os homens enviados por Cornélio à casa onde Pedro estava hospedado, quando então o apóstolo recebeu uma direção do Espírito Santo para acompanhá-los (At 10.19-20). Pedro, desta vez, obedeceu à ordem de Deus e, no dia seguinte, partiu com aqueles homens (At 10.23).

Ora, Cornélio estava com o coração totalmente aberto para compreender a Palavra de Deus e convidou seus parentes e amigos para ouvirem o que Pedro teria para compartilhar. E, embora fosse ele um homem piedoso que, continuamente, orava a Deus, não sabemos se de fato Cornélio tinha a concepção sobre a existência de uma única divindade ou se deveria adorar somente a Deus, visto que dificilmente deveria recitar a confissão monoteísta do Shema (Deuteronômio 6.4). Por ignorância, ele chegou a se prostrar diante de Pedro a fim de adorá-lo, tão logo o nosso irmão chegou (At 10.5).

Entretanto, erros ingênuos como esses jamais seriam imputados por Deus aos homens, visto que Cornélio estava com o seu coração completamente aberto para ouvir o Evangelho, aguardando apenas que alguém lhe anunciasse uma mensagem que lhe acrescentaria bastante coisa pra a sua experiência de vida.

Quebrando um forte preconceito existentes entre os judeus comuns daquela época, na região da Palestina, Pedro entrou na casa de um estrangeiro e faz ali um breve discurso sobre Jesus, mas que foi suficiente para salvar a vida daquelas pessoas que estavam presentes e com os seus ouvidos atentos para qualquer ação de Deus, a ponto de todas elas receberem instantaneamente o dom do Espírito Santo como os primeiros discípulos no dia de Pentecostes (At 10.44-46, conferir com Atos 2).

Lendo os versos 36 a 43 do capítulo 10 de Atos, percebe-se que Pedro fez menção do ministério de Jesus ocorrido entre os judeus alguns anos antes, pois se tratava ainda de um fato ainda recente na memória do povo e, na certa, conhecido por Cornélio bem como pelos demais ouvintes (At 10.37-38). Prosseguindo, Pedro falou da morte de Jesus (At 10.39), sua ressurreição (At 10.40-41), da missão recebida para pregar ao povo (At 10.42) e do perdão dos pecados (At 10.43).

Sem que fosse necessário Pedro fazer alguma citação das Escrituras hebraicas, diz o texto que o Espírito Santo foi derramado sobre aqueles receptivos ouvintes enquanto o apóstolo ainda discursava. E, mesmo sem os receptores terem ainda experimentado o ritual do batismo em águas, começaram a falar em línguas e a glorificar a Deus, confirmando que, realmente, estavam experimentando a conversão.

Reparem que não foram necessárias muitas palavras (nem “apelos pastorais”, ida numa igreja evangélica, curso pra “novos convertidos” ou imposição de mãos) para que Cornélio e aquelas pessoas experimentassem Deus. Seus corações estavam verdadeiramente abertos na expectativa de compreenderem a Palavra de Deus. E, quando receberam o dom do Espírito Santo, estava mais do que confirmado que aqueles homens, mesmo estrangeiros, poderiam ter acesso ao sagrado da mesma maneira que os primeiros discípulos, Jesus ou os antigos profetas de Israel. E, inclusive, tinham também um a mensagem para evangelizar Pedro e a Igreja.

Acredito que, com isto, Deus estava quebrando todo e qualquer preconceito étnico ou racial que pudesse existir naquela época dentro da Igreja, a qual foi formada a princípio por judeus, considerados como guardiões de uma tradição milenar dada por Moisés. Até então, é possível que muitos pensassem que a salvação fosse apenas para os israelitas que aceitassem a Cristo (At 11.18), não visualizando ainda a extensão ilimitada do plano de Deus.

Pode-se dizer que Pedro experimentou um considerável crescimento na sua vida espiritual como apóstolo e pregador da Palavra de Deus. Uma experiência que, assim como as anteriores em sua vida, levou-o a romper com suas limitações pessoais, sendo conduzido pelo Espírito Santo para alcançar um grau superior de maturidade espiritual para aperfeiçoamento seu e da Igreja. Aliás, nesta altura de sua caminhada, Pedro já não era mais aquele homem inconstante descrito nos Evangelhos. Agora, além da coragem para enfrentar multidões e autoridades, Pedro estava se tornando mais compreensivo quanto aos propósitos de Deus para a humanidade.

Ora, esta história da Bíblia nos ensina que precisamos remover de nossas mentes o preconceito, seja ele qual for. Evangelizar é, antes de mais nada, um compartilhar de ideias e de experiências. Pois, quando comunicamos ao outro o nosso aprendizado de vida, não podemos ter ouvidos de mercador para os relatos das outras pessoas, pensando de maneira pretensiosa que só nós estamos anunciando as Boas Novas.

Para quebrar mais um paradigma ainda forte na Igreja do século 21, digo que muito nós podemos aprender com pessoas de outras religiões ou que não sigam a nenhum credo. Pois certamente que o budista, o taoísta, o hinduísta, o judeu e até o muçulmano dispõem de valiosos ensinos sapiençais provenientes de suas respectivas culturas e que nos acrescentarão bastante. Mesmo as religiões de origem mais tribal como as tradições afro e indígena muito presentes na sincrética umbanda, além do candomblé que é 100% de origem negra.

Quanto aos não religiosos, nós, os seguidores de Jesus, devemos igualmente estar atentos para dialogar com aqueles que nos trazem um discurso mais científico. Precisamos neste ponto abrir nossas mentes e percebermos que Deus também fala através dos físicos, médicos, historiadores, filósofos, sociólogos, filólogos, biólogos e até sexólogos, mesmo que estes pesquisadores não frequentem igrejas e uns até se declarem ateus. Pois, nestas horas, precisamos ter humildade para recebermos através deles orientações e esclarecimentos, considerando suas experiências de vida tão importantes quanto as nossas.

Para completar, quero incluir neste rol de evangelistas os poetas, os cantores, os atores de TV (mesmo os que trabalham na Globo), os escritores e todos aqueles que se aventuram no campo das artes seculares explorando o subjetivismo. E ainda menciono os desconhecidos, as pessoas simples, o homem do campo, a dona de casa, o catador de material reciclável, a pessoa portadora de necessidades especiais e até os animais. Pois todos já têm dentro de si uma percepção do Evangelho e uma riqueza de experiências, de modo que aquilo que precisamos fazer é contribuir para que o outro também some conosco na construção de um mundo melhor. Ou seja, serem participantes da construção ou vivência do Reino de Deus aqui na Terra, conforme Jesus Cristo muito pregou.

Um abraço a todos e tenham um excelente final de semana com muita paz e descanso!


OBS: A primeira imagem acima trata-se do quadro "Pedro batizando o centurião Cornélio" (1709) do artista italiano Francesco Trevisani que viveu entre os séculos XVI e XVII. Já a segunda cuida-se de uma obra anônima da arte bizantina que mostra "Pedro e o galo", lembrando a experiência da negação do discípulo.

quarta-feira, 23 de novembro de 2011

O que você entende por salvação?

Olá, amigos! Gostaria de compartilhar uns pensamentos meus aqui.

Acredito em salvação num amplo e talvez num "duplo" sentido. Tanto no "presente" quanto em relação ao "futuro", se é que o tempo de fato existe.

Somos ensinados por Jesus a sermos salvos das doenças, das emoções negativas e de todo comportamento vil, assim como somos salvos da morte física através da percepção da vida que é eterna. E, sob certo aspecto, somos salvos das nossas ficções também.

Por outro lado, esta salvação se dá tanto individualmente quanto no aspecto coletivo. Pois eu entendo que o Reino de Deus não seria numa segunda Terra e muito menos num novo Universo visível, mas sim neste mesmo planeta transformado. Ou seja, imagino a humanidade com o seu modo de pensar modificado, aprendendo a lidar melhor com o seu lado mau.

Pra mim, um fim de mundo tal como ocorre nas sensacionalistas interpretações do Apocalipse, a exemplo do livro "Deixados para trás", com arrebatamentos de pessoas, vinda do anticristo, marcação das mãos e testas dos incrédulos com o 666 e perseguição aos crentes que restarem por um governo mundial até que Jesus volte sobre as nuvens montado num cavalo branco parecem mais paranoias humanas integrantes de uma absurda teologia do medo e que ajuda a movimentar uma rentável indústria literária nos meios eclesiástico e secular.

Cada vez mais tenho percebido que a manifestação do Reino de Deus se dará imperceptivelmente aos olhos humanos até que o mundo realmente compreenda o amor ensinado pelo Messias que eu creio ser Jesus e também todos os que alcançam a consciência messiânica. E, quando houver um número bem representativo de pessoas praticando o amor, nossa atmosfera espiritual vai mudar, o que não significa perfeição total. Talvez, neste tempo, o homem estará respeitando melhor a natureza, o seu próximo e compreendendo que a sua sobrevivência e bem estar dependem também da felicidade de todos, bem como de se liberar graciosamente o perdão.

Todavia, o Reino não se restringe à fisicalidade ou à chegada desta era de amor e paz. Pois, como fica o destino das pessoas "mortas" e que continuarão a "morrer"? É aí que entra a inteligência espiritual em que aprendemos a lidar com a nossa inevitável dessoma e com a ausência dos entes queridos, coisa que o materialismo é incapaz de proporcionar.

É possível que, no futuro glorioso da humanidade, a concepção de morte (não a desencarnação) deixe de existir e ninguém fique mais excessivamente preocupado com o amanhã. Porém, quem deixar o mundo físico, continuará amparado por Deus e participando da comunidade dos justos, conforme acredito que sempre ocorreu. E daí a importância da mensagem do Evangelho ser aplicada aos que estão nesta vida, para sermos salvos do presente século e da concepção equivocada sobre a morte, não de uma fictícia ameaça de castigo para quem não concordar com o pacote de crenças oferecido pelas empresas religiosas que se autodenominam "igrejas".

Paz!


OBS: A imagem acima trata-se de uma obra do pintor alemão Hans Memling, que viveu no século XV, sendo bem de domínio público e foi extraída da Wikipédia em http://en.wikipedia.org/wiki/File:MemlingJudgmentCenter-crop.jpg

terça-feira, 22 de novembro de 2011

Como combater a violência no trânsito?

Neste domingo, dia 20/11, houve uma passeata diferente em São Paulo. Pessoas reuniram-se no Parque do Ibirapuera, zona sul da capital paulista, afim de protestarem contra a violência no trânsito.

A manifestação foi organizada pelo movimento União em Defesa das Vítimas de Violência (UDVV), através de uma caminhada, contando com a participação das vítimas e de seus familiares. E, conforme pude assistir ontem pela manhã, no programa Mais Você da Ana Maria Braga, na TV GLOBO, havia um recolhimento de assinaturas com a finalidade de tornar as leis mais duras para os casos de morte no trânsito, aumentando a pena do homicídio culposo para 5 a 8 anos, além da proposta de que o teste do bafômetro seja substituído por um exame clínico.

Na verdade, trata-se de um projeto de lei de iniciativa popular que propõe as seguintes alterações na Lei nº 9.503/97 (o Código de Trânsito Brasileiro, conforme o texto do abaixo-assinado virtual:

A revogação da infração administrativa prevista no artigo 165 e seguintes (A embriaguez ao volante passa a ser somente ilícito penal e não mais ilícito administrativo); A revogação dos artigos 276 e 277 dos procedimentos administrativos previstos (O procedimento administrativo foi incorporado às infrações penais); A revogação da parte final do artigo 291, caput, bem como do parágrafo primeiro e do inciso primeiro do artigo 291 (Eliminação do enquadramento à lesão corporal culposa); Propõe a alteração do artigo 302, acrescentando os §§ 2º, 3º e 4º (Aumento da pena, a obrigatoriedade da submissão ao exame clínico e a formalização de obtenção de provas de embriaguez); Propõe a alteração da redação do caput do artigo 306, e acrescentando ainda os §§ 1º e 2º (Eliminação do mínimo de concentração de 6 (seis) decigramas, a obrigatoriedade da submissão ao exame clínico, o aumento da pena e a formalização de obtenção de provas de embriaguez. (extraído do site http://www.naofoiacidente.org/)

Em relação ao exame clínico eu concordo totalmente. Afinal, muitos condutores pegos pela polícia dirigindo embriagados simplesmente recusam-se a fazer o teste do bafômetro bem como o exame de sangue já que ninguém é obrigado a produzir provas contra si mesmo em virtude do princípio basilar do devido processo legal. Então, se acabar a relativa obrigatoriedade do bafômetro, substituindo-o pelo exame clínico, em que profissionais de saúde farão uma observação do indivíduo detido pela polícia, a sociedade estará melhor protegida contra pessoas inconsequentes que jamais deveriam tocar no volante de um carro.

Contudo, tenho reservas em relação ao aumento de pena, visto que se trata de grande ilusão da sociedade acreditar que uma punição mais severa seja capaz de influenciar a conduta das pessoas.

Atualmente, a pena máxima para o homicídio culposo, quando o agente não tem a intenção de matar, é de no máximo quatro anos. De acordo com a proposta do grupo, a pena para quem matar no trânsito estando embriagado seria elevada para cinco a oito anos. Ou seja, impediria que, neste caso, o juiz condene a uma pena alternativa. Senão vejamos a proposta do grupo que acrescenta dispositivos ao art. 302 do CTB:

§ 2º. No homicídio culposo cometido na direção de veículo automotor, a pena será de cinco a oito anos, se o agente dirigir veículo automotor em via pública e estiver sob a influência de qualquer concentração de álcool ou substância tóxica ou entorpecente de efeitos análogos.
§ 3º. No caso da infração prevista no paragrafo anterior, todo condutor de veículo automotor, envolvido em acidente de trânsito ou que for alvo de fiscalização de trânsito, sob suspeita de dirigir sob a influência de álcool ou substância tóxica ou entorpecente de efeitos análogos, será submetido a exame clínico ou perícia médico legal que, por meio técnico, permita ao médico legista certificar seu estado.
§ 4º. A embriaguez a que se refere o artigo 302, § 2º deste Código poderá ainda ser constatada pelo agente de trânsito mediante a obtenção de outras provas em direito admitidas, acerca dos notórios sinais de embriaguez, excitação ou torpor apresentados pelo condutor que será encaminhado para a realização do exame clínico.

De acordo com esta reportagem da Folha de São Paulo, eis que um dos manifestantes, entrevistado pelos jornalistas, assim se manifestou:

"Só existem duas formas de mudar um comportamento: pela conscientização ou pela punição. A conscientização vai acontecer, mas ela é muito lenta, demorada. E eu não posso fechar os olhos para o que vejo no dia a dia (...) Hoje todo mundo usa o cinto, não por estarem todos conscientizados, mas porque é lei e obrigatório. Precisamos fazer a mesma coisa com a bebida, com uma lei mais rígida, e esperando que daqui a 50 anos as pessoas se conscientizem (...) Hoje a pessoa que comete homicídio culposo, ou seja, sem intenção de matar, vai pegar no máximo quatro anos de cadeia. No Brasil, com até quatro anos [de prisão], ela paga uma pena alternativa. Queremos que essa pena seja alterada para cinco a oito anos, ou seja, que se agrave pelo fato de ela estar embriagada." (extraído de http://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/1009352-caminhada-no-ibirapuera-lembra-vitimas-de-acidentes-em-sp.shtml)

Respeito a opinião dele, mas, sinceramente, não acho que este seja o caminho!

Se por um lado a vida não pode ser banalizada, não se pode achar que lotar as cadeias seja solução para tornar a convivência social mais segura e preventiva. Ainda mais no sistema carcerário brasileiro em que os estabelecimentos penitenciários são verdadeiras escolas do crime e que muito pioram a condição do indivíduo, tornando-o ainda mais revoltado e com sérias dificuldades de se reintegrar profissionalmente depois quando deixa o presídio.

Não podemos nos esquecer que a necessidade deve ser o fundamento para que seja aplicada a pena restritiva de liberdade. É o que nos ensina Cesare Bonesana, o Marquês de Beccaria (1738-1794) em sua clássica obra Dei Delitti e delle Pene (1766):

"Não bastava, porém, ter formado esse depósito; era preciso protegê-lo contra as usurpações de cada particular, pois tal é a tendência do homem para o despotismo, que ele procura, sem cessar, não só retirar da massa comum sua porção de liberdade, mas ainda usurpar a dos outros (...) Por conseguinte, só a necessidade constrange os homens a ceder uma parte de sua liberdade; daí resulta que cada indivíduo só consente em pôr no depósito comum a menor porção possível dela, isto é, precisamente o que era necessário para empenhar os outros a mantê-lo na posse do resto." (Dos delitos e das penas. Tradução de Flório de Angelis. São Paulo: EDIPRO, 1993, pág. 17) - destacou-se

Ora, a prisão de alguém apenas é justificável se for uma medida indispensável para assegurar a vida, a integridade física e a liberdade das demais pessoas dentro da sociedade. É algo que não pode ter nenhum caráter retributivo ou punitivo, mas tão somente o objetivo de impedir pessoas potencialmente perigosas de incidirem novamente em suas agressões, sendo óbvio que, em regra, não há nada de pedagógico numa cadeia.

Assim, entendo que aumentar a pena para mais de quatro anos é até válido. Porém, o mínimo para os casos em questão não pode ser de cinco anos! Pois é preciso que o magistrado, analisando cada caso particularmente, possa decidir se o fato é hipótese de conceder pena alternativa ou de tomar a medida extrema que seria mandar o sujeito pra uma cadeia.

Lamentavelmente, a prisão tem sido um meio de segregar as camadas mais pobres da população brasileira com menos renda e deficiência educacional. Porém, desde o século XIX, em seu livro A finalidade do direito, o jurista alemão Rudolf von Ihering (1818-1892) já considerava como irresponsável aplicar penas quando houvesse meios suficiente para a concretização do direito. Pois, do contrário, a própria sociedade viria a sofrer as consequências de estar se privando de uma parcela da sua liberdade.

Tal raciocínio de Ihering eu relaciono a outra proposta defendida pelo grupo paulista. De acordo com a ideia do abaixo-assinado, o artigo 306 do CTB passaria a ter a seguinte redação:

Art. 306. Conduzir veículo automotor, na via pública, sob a influência de álcool ou sob a influência de qualquer outra substância psicoativa que determine dependência.
Penas - reclusão, de um a três anos, multa e suspensão ou proibição de se obter a permissão ou a habilitação para dirigir veículo automotor.
§ 1º. No caso da infração prevista no artigo 306, todo condutor de veículo automotor, envolvido em acidente de trânsito ou que for alvo de fiscalização de trânsito, sob suspeita de dirigir sob a influência de álcool ou substância tóxica ou entorpecente de efeitos análogos, será submetido a exame clínico ou perícia médico legal que, por meio técnico, permita ao médico legista certificar seu estado.
§ 2º. A embriaguez a que se refere o artigo 306 deste Código poderá ainda ser constatada pelo agente de trânsito mediante a obtenção de outras provas em direito admitidas, acerca dos notórios sinais de embriaguez, excitação ou torpor apresentados pelo condutor que será encaminhado para a realização do exame clínico.

Embora não possamos abrandar a gravidade do caso quanto à conduta de alguém dirigir bêbado, penso que tudo se revolveria muito bem pelas
vias administrativas se as medidas adequadas fossem bem aplicadas. Deste modo, basta que se imponha a proibição do motorista infrator obter a permissão ou a habilitação para dirigir veículo novamente. E, somente nos casos de reincidência, e se o condutor embriagado estiver inabilitado, é que se aplicaria a restrição da liberdade da pessoa porque aí sim ela se torna uma ameaça em potencial para a vida, a integridade física dos outros, bem como para o convívio social.

Precisamos aprender a encarar esses problemas com maturidade, sem transportarmos as nossas dores emocionais para o debate político e muito menos nos deixarmos levar pelos inflamados discursos em favor do recrudescimento das penas. Sei que é difícil para alguém que, por exemplo, tenha perdido num acidente de trânsito a mãe, o pai, um irmão ou até um filho conseguir raciocinar de um modo multidimensional, colocando-se mesmo que por uns instantes na situação do lesionador. Só que, se não formos capazes de alargar a nossa visão, poderemos estar contribuindo para a criação de uma armadilha contra nós mesmo, abrindo mais espaços para o desenvolvimento de uma inescrupulosa indústria que muito se aproveita do Direito Penal, envolvendo autoridades corruptas, advogados criminalistas e a mídia sensacionalista.

Esta é a minha opinião, mesmo respeitando profundamente as iniciativas da União em Defesa das Vítimas de Violência e apoiando outras propostas do grupo.

OBS: A imagem acima foi extraída do blogue da UDVV em http://www.keikoota.com.br/blog/?p=461

sábado, 19 de novembro de 2011

O que você diria às mães de Chico Xavier?

Este mês, eu e Núbia alugamos o filme “As mães de Chico Xavier”, o qual foi assistido por mais de meio milhão de pessoas nos cinemas brasileiros.

Inspirado no livro “Por trás do véu de Ísis”, do jornalista Marcel Souto Maior, que trata da biografia do médium mineiro, o filme fala sobre as dores de duas mulheres, Ruth (Via Negromonte) e Elisa (Vanessa Garbelli), que perderam tragicamente seus filhos. E conta também sobre o drama de uma outra mãe, a professora Lara (Tainá Muller) que, encontrando-se grávida, pensavam em cometer um aborto. Todas, por uma razão particular, resolvem procurar o auxílio de Chico Xavier que, na obra, é representando pelo ator Nelson Xavier, de modo que elas vêm a ser consoladas pelas supostas mensagens do além psicografadas pelo médium.

Embora eu me posicione contra qualquer tentativa de comunicação com espíritos de pessoas mortas, por motivo de reverência à orientação texto bíblico da lei mosaica, seria um ignorante caso negasse o conforto recebido pelas pessoas quando elas procuram os “poderes” de um médium e ouvem palavras que tranquilizam suas consciências. Afinal, escutar uma uma mensagem de que o parente desencarnado encontra-se bem “do outro lado” pode proporcionar algum alívio para problemas emocionais relacionados à culpa, à saudade e o inconformismo gerados pela maneira imatura como lidamos com as nossas perdas.

Contudo, fico a indagar sobre até que ponto essa tarefa consoladora, praticada por décadas por Chico Xavier e outros médiuns, não se tornaram uma muleta psicológica?

Será que faz bem pra saúde mental uma pessoa ficar atrás de tais mensagens e depois guardar as cartas psicografadas como relíquias, prendendo-se ainda mais às lembranças do passado?

Em 1959, assim que Francisco de Paula Cândido Xavier (1910-2002) passou a viver em Uberaba, a convite do médico Waldo Vieira, a cidade tornou-se a “Meca” do espiritismo brasileiro. Vários empreendimentos espíritas surgiram em função da atividade do médium, passando a movimentar uma inegável indústria da literatura psicográfica com mais de 400 livros publicados, tendo sido escritas mais de 20 mil cartas atribuídas aos espíritos. Em torno da sua casa, multidões aglomeravam-se na expectativa de obterem um lenitivo por intermédio daquele santo popular, atraindo para o Triângulo Mineiro um novo tipo de turismo religioso.

“No mesmo período, Chico Xavier conheceu o jovem médico e médium Waldo Vieira, em parceria com quem psicografou diversas obras em comum, até à ruptura de ambos, alguns anos depois. Em 1959, estabeleceu residência em Uberaba, onde viveu até ao fim de seus dias. Continuou a psicografar inúmeras obras, passando a abordar os temas que marcam a década de 1960, como o sexo, as drogas, a questão da juventude, a tecnologia, as viagens espaciais e outros. Uberaba, por sua vez, tornou-se centro de peregrinação informal, com caravanas a chegar diariamente, de pessoas com esperança de um contato com parentes falecidos. Nesse período, popularizam-se os livros de "mensagens": cartas ditadas a familiares por espíritos de pessoas comuns. Prosseguem também as campanhas de distribuição de alimentos e roupas para os pobres da cidade.” (extraído do artigo sobre a biografia do Chico Xavier na Wikipédia)

Certamente que este trabalho consolatório tem um enorme potencial para manter dependências e repressões no sujeito assistido pelo médium. Isto porque, na maioria das vezes, as pessoas não estão dispostas a encarar certos tipos de confrontos que as levarão a experimentar crises e, consequentemente, um crescimento espiritual ou consciencial. Psicografar cartas aos parentes do falecido acaba tornando-se muitas das vezes mais uma forma de exploração da emotividade, da passividade e das carências alheias.

Na Bíblia, há uma interessante passagem em que o rei Saul procurou secretamente os serviços de uma mulher necromante para consultar-se com o espírito do profeta Samuel. Ele estava enfrentando uma guerra contra os filisteus (nação vizinha a Israel situada em Gaza) e, ao invés de concentrar-se na solução do problema e encarar a si mesmo a respeito de suas escolhas erradas, desejou buscar uma resposta imediata para aquela situação deixando vencer-se pelo medo do exército adversário. Ele até procurou obter resposta através dos profetas de seu povo, mas o texto conta que Deus nada lhe falou pois, ao que parece, tudo o que o obstinado governante precisava saber já lhe tinha sido dito anteriormente por intermédio de Samuel (quando este ainda vivia) e pelos acontecimentos experimentados.

Curiosamente, desta vez, Deus permitiu que Samuel falasse com Saul através de um método que era proibido em Israel pela Lei de Moisés – a consulta aos mortos, conforme as orientações dadas pela Torá (Deuteronômio 18.10-12). E, assim que o espírito de Samuel foi invocado, o rei prostrou-se com o rosto no chão e teve uma surpresa:

“Samuel disse a Saul: Por que me inquietaste, fazendo-me subir? Então, disse Saul: Mui angustiado estou, por que os filisteus guerreiam contra mim, e Deus se desviou de mim e já não me responde, nem pelo ministério dos profetas, nem por sonhos; por isso, te chamei para que me reveles o que devo fazer. Então, disse Samuel: Por que, pois, a mim me perguntas, visto que o SENHOR te desemparou e se fez teu inimigo? Por que o SENHOR fez para contigo como, por meu intermédio, ele te dissera; tirou o reino da tua mão e o deu ao teu companheiro Davi. Como tu não deste ouvidos à voz do SENHOR e não executaste o que ele, no furor da sua ira, ordenou contra Amaleque, por isso, o SENHOR te fez, hoje, isto. O SENHOR entregará também a Israel contigo nas mãos dos filisteus, e, amanhã, tu e teus filhos estareis comigo; e o acampamento de Israel o SENHOR entregará nas mãos dos filisteus.” (1 Samuel 28.15-19; ARA)

A verdade é algo do qual não podemos fugir e nem negar. Saul perdeu o reino, a vida e a vida dos seus filhos porque se recusava a aceitar aquilo que sempre estivera diante de seus olhos, resistindo rebeldemente à vontade divina. Para ele não houve jeito. Mesmo tentando se iludir a vida inteira, o monarca deparou-se com a dura realidade e foi alcançado pelo poder soberano de Deus mesmo num campo escuro em que a religião israelita não admitia a sua prática. E o texto bíblico deixa bem claro que a experiência não se baseou em charlatanice ou que se tratou de uma intervenção demoníaca, mas que foi um fenômeno ocorrido debaixo da soberania divina e que não permitiu a prestação de nenhum consolo a Saul (lembra um pouco o episódio de Balaão quando este foi impedido pelo anjo de amaldiçoar Israel).

Há uma célebre frase no Evangelho de João 8.32 que admiro muito. Cuida-se deste conhecido dito que é atribuído a Jesus e muito citado nas pregações: “e conhecereis a verdade, e a verdade vos libertará”.

Ainda que o ministério de Jesus tivesse tido um aspecto consolador, no sentido de proporcionar curas e alívios para as pessoas, ele também confrontava os seus ouvintes, levando-os ao esclarecimento. E, quanto a isto, Jesus pagou um preço muito caro porque vários discípulos deixaram de segui-lo. Pois para o Mestre não bastava que alguém ficasse estagnado com uma emocionada gratidão por ter recebido alguma bênção ou ter presenciado milagres, visto que o seu desejo sempre foi o de levar os seus seguidores a uma experiência real de conversão. Um processo que inclui o autoconhecimento, a re-significação dos valores existenciais e a análise sistemática de nossa consciência, estimulando a responsabilidade pessoal e a maturidade ética.

Sem dúvida que o trabalho de Jesus também era bem diferente de muitos líderes religiosos de hoje, isto é, da tarefa consoladora que se vê frequentemente nos confessionários católicos e gabinetes pastorais das igrejas evangélicas. Pois, o que geralmente padres e pastores fazem é trocar o esparadrapo da ferida para que o paciente sempre retorne, ao invés de curarem com o medicamento capaz de cicatrizar ainda que provocando dores e ardências. Aliás, a este respeito o gênio universal da literatura russa, Leão Tolstoi (1828-1910), retrata muito bem em seu festejado conto “A morte de Ivan Ilitch” descrevendo a ineficaz extrema unção recebida pelo personagem de seu livro:

“Veio o padre e ouviu a confissão. Ivan Ilitch relaxou-se, sentiu como que um atenuamento das suas dúvidas e, consequentemente, dos seus sofrimentos. Baixou sobre ele um pequenino raio de esperança e entrou a pensar no ceco e nos meios de curá-lo. Comungou com os olhos cheios de lágrimas. Quando de novo o deitaram, após a comunhão, mostrou-se aliviado por uns instantes e reacendeu-se nele a pequena chama da esperança (…) Seu vestido, seu porte, sua fisionomia, o tom da sua voz, tudo lhe dizia: 'Não é nada disto. Tudo aquilo que você viveu, e ainda vive, é falsidade, empulhação, que esconde de você a vida e a morte'. E apenas pensou isto, reanimou-se nele o seu ódio e, com o ódio, os sofrimentos físicos e, a par deles, a certeza do fim próximo e inevitável. E uma nova sensação verrumava-o, transpassava-o, sufocava-o.” (tradução de Marques Rebêlo)

Voltando à pergunta do texto, o que você diria às mães que procuraram o Chico Xavier?

Que mensagem podemos dar a uma mulher que perdeu prematuramente o seu filho por causa do envolvimento deste com as drogas?

Como ajudar a outra mãe, que perdeu o seu filho ainda criança, a vencer todo aquele sofrimento?

Confesso que não disponho de fórmulas para ajudar os outros a vencerem o sofrimento, mas tenho aprendido a lidar com as minhas perdas através da consciência do amor e da graça de Deus, o que me leva a buscar uma percepção multidimensional da existência. Mas para isto é necessário fé, crermos nAquele que é o começo e o fim de tudo, de Quem viemos e para Quem retornaremos.

Certamente que o desenvolvimento desta fé não pode basear-se em concepções doutrinárias já criadas pelos homens acerca da Divindade. Ela deve nascer da nossa própria experimentação e do conhecimento relacional com o Eterno. Não se baseia em provas ou em mágicas, mas na resposta que damos com sensibilidade aos acenos que a vida faz.

Em sua clássica obra, “O Santo”, Rudolf Otto (1869-1937) descobriu por trás de todas as religiões do planeta uma experiência primária que ele chamou de “numinosa” (derivada do latim numem), a qual não pode ser reduzida a nenhuma outra categoria. A palavra numem seria não só um antigo vocábulo para a Divindade como significa “acenar com a cabeça”.

Quando nos tornamos atentos para a Realidade Divina presente em todas as coisas e em todas as pessoas, as quais, ocasionalmente, “acenam para nós com a cabeça”, percebemos o Mistério Sagrado, podendo dele participar. E um dos resultados dessa experimentação de Deus é a convicção íntima de que o Eterno encontra-se em tudo e em todos. Assim, quer morramos ou vivamos, estamos sempre Nele. Não há um “lado de lá” como se fossem dois mundos pois o que existe é só uma Realidade na qual todos estamos inseridos de maneira bondosa e graciosa, chamados para sermos participantes de uma única Vida manifestada de diversas formas. Só que a nossa percepção muitas das vezes é restritas e, em inúmeros momentos, recusamo-nos a ver ou aceitar.

Tudo o que buscamos e necessitamos já está em Deus que é Eterno, não em sombras de um passado ou de projeções futurísticas. Ao adorarmos o nosso Criador, em contato direto e verdadeiro com Ele, sem dependermos de quaisquer intermediários, recebemos algo muito mais completo do que os efeitos lenitivos e compensatórios de uma consulta com mestres, pastores, padres ou médiuns. Pois somos renovados diretamente pelo Autor de toda a vida, o Pai das Luzes, a Inteligência Superior que, com sua elevada sabedoria, estabeleceu amorosamente o Universo com suas leis, tendo aprovado toda a obra criada confirmando que “tudo era bom”.

Que possamos viver livres desse sacrum commercium que vende fórmulas fajutas para amenizar o sofrimento humano. Precisamos a cada dia buscar a elevação da nossa consciência e vislumbrarmos experimentalmente a nossa unidade com o Deus Eterno. E assim, seremos nutridos unicamente pelo Verbo Divino, pela Luz que emana do Criador e pela presença do seu Espírito Santo. Pois, como disse o salmista, “em Ti está o manancial da vida; na tua luz, vemos a luz”. (Sl 36.9; ARA)

A seguir, compartilho um interessante vídeo em que o ex-companheiro de Chico Xavier, o médico Waldo Vieira, fala acerca das mensagens psicografadas supostamente recebidas pelo médium mineiro:

quinta-feira, 17 de novembro de 2011

Petição contra a hidrelétrica de Belo Monte

A sociedade brasileira deveria participar mais desta luta e se opor à construção da usina de Belo Monte e outras que devem surgir na Amazônia nos próximos anos. Chega de jogar fora o dinheiro público! Vamos investir em energias alternativas que é o que o país tanto precisa. Por isto, estou divulgando este vídeo do Movimento Gota D'água muito bem elaborado pelos artistas das telenovelas e incentivando as pessoas a participarem assinando esta petição eletrônica: http://www.movimentogotadagua.com.br/assinatura

terça-feira, 15 de novembro de 2011

A divisão do Pará em três estados: será que não existe outra alternativa?

Em 11 de dezembro, os 4,8 milhões de eleitores paraenses serão obrigados a comparecer às urnas (ou justificarem a ausência) para dizerem se concordam ou não com a divisão do território do estado em duas novas unidades da federação: Tapajós e Carajás.

Desde sexta-feira (11/11), iniciou-se a propaganda eleitoral lá, com 40 minutos diários nas emissoras de rádio e de TV, proporcionando o direito de voz às frentes favorável e contrária ao desmembramento. E, no dia do plebiscito, os paraenses terão que responder às seguintes perguntas: "Você é a favor da divisão do estado do Pará para a criação do estado de Carajás?" e "Você é a favor da divisão do estado do Pará para a criação do estado do Tapajós?". O número 77 vai corresponder à resposta "sim" para qualquer uma das perguntas. E, por sua vez, o número 55 será usado para o "não".

Com apenas 144 municípios, o Pará é o segundo maior estado do país e dispõe de uma enorme área de 1.248.042,515 km², sendo pouco maior que Angola. Sua população é superior a 7,3 milhões de habitantes, dentre os quais 2,1 milhões vivem na região metropolitana de Belém. Logo, existe alguma possibilidade de que a maioria do eleitorado decida pelo "sim", ainda que, no momento, as pesquisas demonstrem que a população entrevistada seja contrária à separação.

Um dos fortes argumentos a favor da separação é que os governos paraenses têm sido incapazes de promover uma assistência satisfatória aos lugares da região oeste do estado. Questões importantes relacionadas à saúde, educação, infraestrutura e meio ambiente não são adequadamente tratadas. E aí, uma das expectativas dos separatistas é que, havendo um aumento dos recursos do Fundo de Participação dos Municípios (FPM), hipoteticamente ficará mais fácil combater tais problemas que, como bem sabemos, são estruturais.

Embora a divisão do Pará possa abrir espaço para novas oportunidades, entendo que é preciso que cada eleitor tenha os dois pés no chão quando for votar. Caso o "sim" ganhe, sabe-se que o maior estado em termos territoriais (Tapajós) terá o menor PIB (estima-se uns R$ 6,4 bilhões). Sabe-se que, atualmente, as principais forças da economia do Pará são a extração de minério e de madeira, além da agricultura, pecuária, indústria e turismo. Então, se Tapajós for transformado em nova unidade federativa, vai ter que sobreviver basicamente da Mineração Rio do Norte, da futura Usina de Belo Monte e do desmatamento da floresta amazônica. E diga-se de passagem que nessas áreas a serem separadas estão alguns dos municípios com maiores índices desmatamento na Amazônia Legal, dentre os quais podemos citar Altamira, Pacajá, Novo Progresso, Novo Repartimento e São Félix do Xingu. Todos integram uma lista prioritária para o combate à devastação florestal montada pelo Ministério do Meio Ambiente.

Há quem diga que "dinheiro chama dinheiro" e que "miséria atrai miséria". Eu, mesmo não absolutizando estes conceitos, concordo que um problema pode muito bem provocar outros e, neste sentido, visualizo um quadro muito negativo para a região oeste do Pará, caso ocorra a divisão. Tanto para a questão ambiental quanto em relação à segurança. Pois já que faltará um aparelho produtivo a Tapajós, a sua dependência econômica da extração madeireira e do avanço predatório das pastagens sobre a floresta se tornará cada vez maior, assim como haverá mais apoio em favor da destrutiva construção de Belo Monte. Já em termos de segurança, fica a indagação se o novo estado não se tornará por muitos anos um paraíso para traficantes de drogas e de animais silvestres que contrabandearão as nossas riquezas pelas fronteiras internacionais.

Penso que as demandas sociais e as reivindicações autonomistas das comunidades são justas e devem ser verdadeiramente contempladas. Acredito que, através de uma efetiva participação do cidadão, com consciência, ética e união das pessoas, a região do oeste paraense pode dar enfrentamento aos seus problemas e prosseguir rumo a um desenvolvimento sustentável compatível com o ecossistema amazônico.

Certamente que o tema da divisão do Pará tem a ver com a realidade do Brasil inteiro e este debate abre portas para encontrarmos uma solução jurídica que talvez ponha fim aos movimentos emancipacionistas. Proponho, por exemplo, uma descentralização administrativa do Pará através de autarquias territoriais.

De acordo com a Constituição Federal em seu artigo 25, parágrafo 3º, os estados podem, mediante lei complementar, instituir tanto regiões metropolitanas quanto as microrregiões. Estas, segundo define o Texto Maior, seriam circunscrições "constituídas por agrupamentos de municípios limítrofes, para integrar a organização, o planejamento e a execução de funções públicas de interesse comum". Em outras palavras, seriam grupos de municípios limítrofes que apresentam certa homogeneidade e problemas administrativos comuns.

Até aí, não haveria nenhuma novidade. Pois, se entrarmos na página do governo paraense na internet, encontraremos lá um mapa interativo com várias regiões administrativas que, em razão de suas respectivas dimensões territoriais, deveriam ser chamadas de macrorregiões, não de micro. E as maiores delas são justamente as que estão no centro-oeste: Xingu, Tapajós e Baixo Amazonas. Já no Sudeste, tem-se Araguaia e Carajás.

Ora, e se as regiões administrativas pudessem ser tratadas como autarquias territoriais, dando aos cidadãos mais autonomia e democracia para decidir? Pois, assim como a União pode criar os seus territórios, os estados também poderiam buscar uma descentralização geográfica em que as suas unidades regionais passariam a ter um órgão colegiado com poderes deliberativos compostos por representantes eleitos diretamente pelo povo, conforme lei estadual. Seriam as Câmaras Regionais.

Assim como o Território Federal não é um ente federativo, as Regiões Administrativas Estaduais, quando forem dotadas de personalidade jurídica pelo legislador constitucional (através de uma emenda à Carta Magna), passariam a ser regidas por uma Lei Orgânica, cujo projeto seria aprovado pela Câmara Regional e promulgado pela Assembleia Legislativa. O administrador regional poderia ser eleito diretamente ou indicado pelo governador, neste caso com aprovação da Câmara Regional. Já o Poder Judiciário continuaria estadual, assim como os serviços da Defensoria Pública, do Ministério Público e das polícias civil e militar.

Certamente que esta ideia não resolveria os conflitos pelos recursos financeiros. Daí, vejo como solução o Brasil adotar o voto distrital ou então permitir que as constituições dos estados opcionalmente o façam, bem como criar um Poder Legislativo bicameral. Nesta hipótese, o Pará poderia ter um "senado estadual", o que seria condizente para um estado que tem um território maior do que muitos países do mundo, além de uma população de certo modo representativa.

De qualquer modo, não me iludo nem com o plebiscito ou com as ideias que estou propondo. A verdade é que os problemas do Pará, assim como do Brasil inteiro, têm raízes éticas, educacionais, estruturais, econômicas e culturais. Não basta apenas desmembrarmos estados ou reformularmos os sistemas se as pessoas continuam sendo a causa da própria infelicidade. O cidadão precisa adotar uma nova postura em relação à política. Novos valores de riqueza precisam ser idealizados. Precisamos ser mais participativos quanto à administração do dinheiro público. E, acima de tudo, aprendermos a agir honestamente deixando de lado o individualismo e dando lugar à consciência coletiva.

Como alguém que analisa o Pará de fora e que já esteve lá andando pela Transamazônica e navegando pelos rios Xingu e Amazonas, sei o quanto o interior paraense é pobre. Ainda assim, se pudesse votar no dia 11 de dezembro, optaria pelo "não", sabendo que. E, se fosse um parlamentar no Congresso Nacional, teria rejeitado esta ideia radical de plebiscito cuja proposta nada mais é tapar o sol com a peneira. Porque melhor para os cidadãos paraenses que jamais houvesse esta cara consulta popular porque, mesmo se a divisão do Pará não for aprovada, ficará ainda mais difícil propor uma solução alternativa por causa da arrogância dos políticos vencedores que não desejarão mudanças.

Que haja mais esclarecimento, sensibilidade e consciência na nossa República que hoje completa 122 anos!


OBS: A primeira imagem (da bandeira do Pará) foi extraída da página do governo paraense. Já a segunda, encontrada na Wikipédia, foi originalmente extraída da Agência Brasil e sua autoria é atribuída a Wilson Dias. Já a terceira ilustração trata-se de uma foto tirada na viagem que eu e Núbia fizemos à Amazônia, salvo engano fotografada em Gurupá (PA).

domingo, 13 de novembro de 2011

"Se Deus está conosco, por que tanto sofrimento?"

Certamente você já se deparou com pessoas formulando abertamente tais perguntas e até mesmo possa ter se questionado e jamais exposto aquilo que pensou. Mas saiba que, milênios antes dos ateus da era contemporânea fazerem indagações deste tipo, a Bíblia relata que um homem chamado Gideão teve a coragem de jogar este sentimento na cara do Anjo do SENHOR.

"Respondeu-lhe Gideão: Ai, senhor meu! Se o SENHOR é conosco, por que nos sobreveio tudo isto? E que é feito de todas as suas maravilhas que nossos pais nos contaram dizendo: Não nos fez o SENHOR subir do Egito? Porém, agora, o SENHOR nos desamparou e nos entregou nas mãos dos midianitas." (Juízes 6.13; ARA)

Em outras traduções do Texto Massorético, estas mesmas palavras atribuídas a Gideão mostram-se ainda mais rudes do que na versão revista e atualizada de João Ferreira de Almeida:

"e Guidon disse-lhe: 'Por favor, meu senhor, se o Eterno está conosco, por que nos sobreveio tudo isto? Onde estão todos os Seus milagres, que nossos pais nos contaram, dizendo: Não nos fez o Eterno subir do Egito? Pois agora o Eterno nos abandonou e nos deu na mão dos midianitas'" (Sêfer)

"Gedeão lhe respondeu: "Eu te peço, meu Senhor! Se Iahweh está conosco, donde vem tudo quanto nos acontece? Onde estão todos os prodígios que os nossos pais nos contavam dizendo: 'Não nos fez Iahweh subir do Egito?' E agora Iahweh nos abandonou e nos deixou cair sob o poder de Madiã..." (Bíblia de Jerusalém)

Embora o Anjo do SENHOR não responda a Gideão, a resposta parece ter sido dada pelo redator de Juízes nos versos de 7 a 10 do capítulo 6. De acordo com a narrativa bíblica, os israelitas tinham se afastado de Deus e, por consequência da prática de coisas más "aos olhos" do Eterno, passaram a ser subjugados pelos midianitas e outros povos nômades que pareciam viver do saque das nações sedentarizadas.

Dentro do contexto religioso dos povos sedentários do antigo Oriente Próximo, os quais viviam da agropecuária, havia o costume idolátrico de cultuar Baal. Debaixo de árvores consideradas sagradas, como o carvalho onde o Anjo do SENHOR apareceu a Gideão, eram oferecidos sacrifícios para as divindades cananeias na vã expectativa de se obter resultados melhores nas próximas colheitas.

Além disso, a narrativa relata que a opressão dos midianitas, embora tenha durado sete anos, parece ter sido mais dura que as anteriores. Tanto é que, temendo os seus adversários, os israelitas precisavam esconder nas grutas os estoques de alimentos para não serem totalmente roubados pelos adversários. E ninguém ousava tomar uma providência prática, de modo que as tribos de Israel andavam desunidas e cada vez mais se alienando dentro da emburrecida adoração baalista.

Ora, a pior opressão não é aquela que está fora de nós, mas sim dentro. E, neste caso, Gideão foi um homem inconformado com a realidade em que vivia. Ele, sendo pobre e explorado pelos estrangeiros em sua própria terra, demonstrou não gostar muito daquela conversinha mole dos religiosos e foi até capaz de duvidar da aparição sobrenatural do Anjo do SENHOR, considerada como uma teofania por muitos teólogos.

Num interessante paralelo com Moisés, Gideão é convocado para uma missão humanamente impossível. De modo algum ele é censurado por Deus por agir com sua maneira rude de manifestar as suas dúvidas quanto à Divina Providência. E, em todas as vezes que fala com o Eterno, o maior dos juízes de Israel é encorajado a lutar numa guerra santa contra os inimigos do seu povo:

"Então, se virou o SENHOR para ele e disse: Vai nessa tua força e livra Israel da mão dos midianitas; porventura não te enviei eu?" (Jz 6.14; ARA)

Num precioso relacionamento de intimidade entre Gideão e Deus, um coloca o outro a prova. Depois de pedir o sinal do velo e o orvalho, afim de que a sua missão fosse autenticada por um milagre (Jz 6.36-40), Deus então reduz o número do exército de Gideão para atacar o inimigo com tão somente 300 homens (Jz 7.1-8). E o êxito de sua campanha militar ocorre de maneira surpreendente. Depois que Gideão soube do temor infundido no adversário (Jz 7.9-15), os midianitas foram vencidos sem que ocorresse a princípio nenhum combate físico, pelo que foram tomados pelo pânico do Deus de Israel (Jz 7.19-22).

Por mais que um relato sobre guerra santa venha chocar a moral de um leitor do século XXI, não se pode ignorar a essência espiritual que se encontra ali. A Bíblia é um ótimo livro para expor com riqueza de detalhes o comportamento humano, sem nada a esconder sobre as falhas de caráter de seus personagens, mesmo em relação aos líderes de Israel. E, por sua vez, a guerra santa, necessária para a sobrevivência dos povos antigos, torna-se hoje uma ilustração da batalha que travamos dentro de nós mesmos e nos nossos relacionamentos com a sociedade em busca da justiça.

Pode-se dizer que a realização da justiça é algo inseparável do Reino de Deus, a respeito do qual Jesus muito pregou. E o estabelecimento deste Reino se faz tanto através da intervenção milagrosa de Deus como também guarda uma relação com o agir do seu povo aqui na Terra, executando-se através de nós a missão apostólica de anunciar ao mundo as boas novas da graça. Se bem que a vinda dessa nova realidade não vem com aparência exterior e já foi começada há muito tempo (Lucas 17.20-21).

Certamente que, nesta luta sagrada contra o mal, Deus não quer que sejamos covardia. Mesmo dentro do refinamento ético que a evolução dos tempos nos impõe, afim de nos abstermos atualmente de qualquer tipo de derramamento de sangue, é preciso ter a mesma disposição de Gideão para enfrentarmos os problemas pessoais e da coletividade.

Como podemos ler nos capítulos 6, 7 e 8 de Juízes, Gideão evoluiu em relação ao argumento de que a nação de Israel tinha sido abandonada por Deus. Após libertar-se interiormente do ópio da idolatria religiosa, ele partiu para o enfrentamento da realidade e mobilizou a sua comunidade para enfrentar os invasores.

Igualmente, também precisamos da mesma atitude de Gideão. Temos que romper com o viciante conformismo no qual o Brasil hoje se encontra, "deitado eternamente em berço esplêndido". Pois, afinal, conforme está lá em Mateus 11.12, o Reino "é tomado por esforço, e os que se esforçam se apoderam dele" (ARA). Ou, numa versão sem eufemismo, o Reino "é assaltado com violência; são violentos os que o arrebatam" (TEB).


OBS: A ilustração acima refere-se à pintura do artista sacro holandês Maarten van Heemskerck que viveu entre 1498 e outubro 1574. O quadro, pintado por volta de 1550, retrata o personagem bíblico Gideão agradecendo a Deus pelo milagre do orvalho (passagem de Juízes 6.36-40) e se encontra no Museu de Belas Artes de Estrasburgo, localizado na Alsácia francesa. Já a imagem à esquerda cuida-se de um auto-retrato que, originalmente, foi pintado junto com o Coliseu. Maarten van Heemskerck ficou conhecido por suas representações das Sete Maravilhas do Mundo, tendo sido ele filho de uma família de pequenos agricultores em Heemskerk, norte da Holanda.

terça-feira, 8 de novembro de 2011

Uma Igreja que se reúne dentro de um bar!

"Veio o Filho do homem, comendo e bebendo, e dizeis: Eis aí um glutão e bebedor de vinho, amigo de publicanos e pecadores!" (Lucas 7.34; ARA)

Para o escândalo dos legalistas e daqueles que se apegam a um culto tradicional, ou a templos construídos por mãos humanas, eis que, numa cidade da Califórnia, no oeste dos Estados Unidos, pessoas têm se reunido em um bar afim de estudarem a Bíblia e depois celebrarem o encontro com grande liberdade. Uma liberdade que talvez cause inveja a muitos religiosos reprimidos de hoje.

Descobri sobre esta espontânea Igreja lendo uma matéria jornalística na internet a partir do debate suscitado numa radical comunidade de evangélicos no Facebook em que o asunto tem despertado críticas não só aqui quanto lá na América do Norte:

"O pastor Bill Jenkins é o responsável por essa igreja-bar chamada Urbanlife (Vida Urbana), que utiliza as dependências do bar Loft e Bistro. Os encontros ocorrem todos os domingos às 9h30 da manhã. Jenkins nasceu na Inglaterra, mas vive há muitos anos nos EUA. Ele explica que sua intenção era criar 'um ambiente seguro para uma mensagem perigosa'. Seu argumento principal é que cerca de 90% dos moradores da região não tem o hábito de frequentar a igreja. Essas pessoas, segundo ele, têm rejeitado as formas tradicionais de apresentação do evangelho. Além disso, ele entende que a Bíblia fala sobre Jesus dando vinho às pessoas e sendo criticado por suas companhias." (extraído da matéria "Igreja oferece cerveja para atrair novos fiéis")

Sinceramente, não vejo nada de mais. Eles dispensam um templo, reúnem-se com espontaneidade em locais públicos, leem a Bíblia no ambiente em que se encontram, tomam a cervejinha ou o vinho deles e fazem daquele momento um maravilhoso culto. Eu, se vivesse na Califórnia, teria um enorme prazer de me aproximar desta turma e adorar a Deus com eles. Seria uma bênção!

Na boa, tenho certeza de que Jesus ficaria tranquilamente lá no meio da galera bebendo sua cervejinha também. Por que não?

Ora, o que são os templos senão meros pontos de encontro?!

Eu entendo que a Igreja é o Corpo, não o prédio. E compreendo também que Igreja tem que ter propósito e, mesmo sem uma base física, sem um endereço e sem o CNPJ, o que vale de verdade é eles terem, além da adoração, um propósito de influenciar a sociedade onde estão. E, com toda sinceridade, ninguém pode julgá-los por viverem com esta liberdade. Pois foi para sermos livres que Cristo nos chamou!

Sem dúvida que é melhor ter um bar como ponto de encontro do que as pessoas se submeterem a reuniões massacrantes e chatas nos templos. Hoje eu não suporto mais os cultos dos tradicionais e nem a barulheira louca dos pentecostais. Missa católica então, nem pensar! Vez ou outra, posso até ir compartilhar uma mensagem num templo, se me convidarem. Porém, não é assim que eu trabalho.

Atualmente, já não me sinto consumidor de produtos religiosos. Considero que devo por em prática um trabalho ministerial e, neste sentido é que tenho defendido a ideia de reunião de círculos informais, nos quais se torna possível o estabelecimento de uma relação de intimidade entre os participantes. E, com o tempo, o grupo passa a construir os seus propósitos de influenciar a sociedade com os valores do Reino, indo mais além do objetivo se reunir.

Este é o meu evangelismo e o ministério no qual eu acredito! Não me interesso por construir templos, inventar cargos de pastores, enumerar pessoas, ou ter funcionários do sagrado. Também nem quero que o pessoal fique centralizado em torno de um líder. Desejo discipular e enviar os seguidores do Evangelho ao mundo pra compartilharem as boas novas como pessoas normais que vivem em sociedade.

Talvez algum cristão legalista irá dizer que os frequentadores dessas reuniões em bares estão assentando na "roda dos escarnecedores". Porém, o assentar na roda dos escarnecedores, conforme diz o Salmo 1º, seria você tornar-se partícipe dos planos malignos das pessoas más. Não é conviver com quem seja diferente de você ou ter uma vida secular. Aliás, um bom exemplo de alguém sentar na roda dos escarnecedores seria, por exemplo, um deputado da bancada (in)vangélica participar da roubalheira do dinheiro público e depois ainda ter a cara de pau de entrar nas igrejas pedindo voto para as próximas eleições.

Deus nos quer adorando-O com liberdade e espontaneidade. E o adorar a Deus "em espírito e em verdade" certamente inclui atos de sinceridade. Assim, deste modo, precisamos celebrar com liberdade, do nosso jeito e, principalmente, com graça.

OBS: Foto e trechos da matéria extraídos do site "NOTÍCIAS CRISTÃS": http://news.noticiascristas.com/2011/11/igreja-oferece-cerveja-para-atrair.html#ixzz1d5CcHGcr

sábado, 5 de novembro de 2011

Reverência pelo tempo que nos foi determinado

A transitoriedade das coisas leva-nos a um respeito reverente pelo tempo e pela existência. Temos um anseio pela eternidade, sem que possamos descobrir o início e o fim de tudo. Então aprendemos que devemos nos alegrar com as coisas boas que hoje a vida nos oferece, celebrando cada momento intensamente. E, por termos em nós este anseio de eternidade, podemos ter a certeza de que somos eternos apenas na Existência de tudo. Sem que A consideremos como um todo, somos pó no vento como diz esta velha canção do grupo Kansas, composta nos anos 70: Dust in the Wind

quinta-feira, 3 de novembro de 2011

O que estão fazendo com a democracia dos gregos?!

Berço da democracia mundial, a Grécia foi o primeiro lugar do mundo onde os homens puderam decidir diretamente o destino das suas Cidades-Estado. Pelo menos entre os que se enquadravam no conceito de eupátridas ("homens livres"), os quais tinham direito de participação nas assembleias populares - as ekklesias.

Pode-se dizer que foi durante o governo de Clístenes (510 a.E.C. - 500 a.E.C.) que Atenas tornou-se realmente uma democracia. Através de sua atuação, a participação dos cidadãos atenienses nas questões administrativas veio a ser consideravelmente ampliada. A aristocracia foi substituída por uma isonomia entre os eupátridas, embora, na concepção política dos gregos, nem as mulheres, nem os escravos e nem os estrangeiros tinham assento nas assembleias do povo. Segundo ensina Ronaldo Leite Pedrosa, Clístenes

"idealizou aumentar a participação popular nas decisões, elevando de 400 para 500 o número de componentes da boulé e dividindo a população em demos. Certo número de demos formava uma trítia e três trítias formavam uma tribo, compondo, ao todo, dez tribos (...) pela primeira vez, o povo de uma cidade grega, dividido em circunscrições chamadas demos, podia participar ativamente de seus destinos, mesmo pagando um preço altíssimo pela sua imaturidade política, tal como se deu com a condenação injusta daquele que foi o mais sábio dos homens e o pai da filosofia ocidental, SÓCRATES, a pretexto de impiedade e de corrupção da juventude ateniense, em razão de seus excelsos ensinamentos." (Direito em História. 6ª edição. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010, págs. 115 e 116)

Verdade é que Sócrates foi um opositor da democracia. Ele defendia a aristocracia como sendo o melhor regime por duvidar que as decisões coletivas, partindo de muitas ideias individuais na democracia, seriam as mais acertadas. Segundo ele, não importava a quantidade de pessoas participando, mas sim a qualidade. E, por conta disto, o sábio filósofo veio a ser acusado de traidor, mas a sua condenação à morte teve como fundamento imputações de corrupção da juventude pela prática do homossexualismo e da ridicularização dos deuses.

Embora o governo democrático não seja uma perfeição, é o que a meu ver melhor se aplica às necessidades sociais dos menos favorecidos, funcionando como um obstáculo à timocracia, à oligarquia e à tirania. Mesmo sendo vulnerável à corrupção e à mediocridade, a democracia abre portas para que a sociedade consiga evoluir com o tempo através do aprendizado com os resultados das suas próprias escolhas. Pois, do contrário, jamais experimentaremos um amadurecimento coletivo.

Ontem (02/11/2011), enquanto assistia ao Jornal Nacional, fiquei perplexo com uma notícia sobre a Grécia. Depois de enfrentar inúmeros protestos, o primeiro ministro grego George Papandreou tomou a sábia decisão de submeter a um referendo popular a ajuda internacional oferecida ao país. De acordo com a proposta da União Europeia, o empréstimo de 130 bilhões de euros condiciona a Grécia a adotar duras medidas de austeridade econômica que importarão em aumento de impostos, mais pobreza, desemprego e na perda da qualidade de vida de seus cidadãos.

Contudo, o que mais me espantou foi que os cabeças da UE, isto é, os primeiros ministros Nicolas Sarkozy e Angela Merkel, respectivamente líderes da França e da Alemanha, posicionaram-se contrariamente à consulta popular. Para eles, os cidadãos gregos têm que engolir goela abaixo as restrições econômicas pouco importando se as pessoas daquele país estarão satisfeitas ou não.

Um episódio desses leva-me a indagar para que tem servido a democracia hoje no mundo senão para os poderosos amansarem as massas?

Ora, quando o direito de escolha dos cidadãos começa a incomodar, aqueles que se encontram no poder tratam logo de restringir as oportunidades de decisão coletiva. Nós, aqui na América Latina, já vimos este filme durante as terríveis ditaduras em décadas não muito distantes de hoje em que os militares receberam o apoio incontroverso dos Estados Unidos da América, país tido como um defensor da democracia.

Em qualquer país do mundo, o povo ainda é tratado como gado. Quem manda na prática é o poder econômico junto com o corporativismo dos grupos políticos que se instalam pela via da demagogia no período eleitoral. Mesmo nos Estados que ainda preservam o totalitarismo socialista implantado nas revoluções do século XX, tem-se o controle das decisões através de uma classe burocrática da qual procedem os seus ditadores. E todos os governos de hoje, inclusive os de Cuba e Coreia do Norte, submetem-se a modelos de economia perversos e insustentáveis. Tanto é que a poderosíssima China de Hu Jintao tem se mostrado contrária ao referendo dos gregos.

Na heroica resistência dos movimentos sociais contra este sistema de desigualdades, em que o sofrimento dos povos é fruto das escolhas de seus governantes, resta-nos a alternativa de brigarmos pela ampliação da democracia. Pois cabe ao cidadão decidir não só quem serão os seus futuros representantes, ou se as pessoas podem possuir armas de fogo em suas residências, mas também se o atual modelo de economia de mercado deve ou não continuar.

quarta-feira, 2 de novembro de 2011

Celebremos a eternidade da Vida!

"Não queremos, porém, irmãos, que sejais ignorantes com respeito aos que dormem, para não vos entristecerdes como os demais, que não têm esperança. Pois, se cremos que Jesus morreu e ressuscitou, assim também Deus, mediante Jesus, trará, em sua companhia, os que dormem". (1 Tessalonicenses 4.13-14; ARA)


Não há como agente apagar da memória a imagem de alguém que partiu. Emocionar-se e lamentar num enterro é algo muito natural. Segundo a Bíblia, assim que Jacó morreu, seu amado filho José "lançou-se sobre o rosto de seu pai, e chorou sobre ele, e o beijou" (Gn 50.1; ARA).

Entretanto, não devemos passar a vida inteira nos entristecendo sem termos esperança. Paulo, em sua carta à igreja em Tessalônica, na Grécia, referiu-se eufemicamente às pessoas mortas como alguém que "dorme". E, com isto, o autor da epístola exorta seus leitores a não se preocuparem com o destino daqueles que já tinham morrido.

Cada cultura e cada indivíduo respondem à morte de uma maneira. Entre diversos povos da África, por exemplo, o morto é considerado alguém que continua a fazer parte da família. Sendo as tribos africanas animistas, é muito comum as pessoas desses países acreditarem que o espírito desencarnado do falecido prosseguirá zelando pelo bem de seus descendentes e cônjuges. E, se não re-encarnarem, receberão uma espécie de "promoção" para um plano superior, passando a viver junto ao Ser supremo, identificado em certas tradições pelos nomes de Olodumaré ou Olorun na língua dos iorubás (um dos maiores grupos étno-linguístico na África Ocidental, composto por 30 milhões de pessoas em toda a região).

Contudo, o importante é que as pessoas consigam se recobrar do trauma da perda, aprendendo a lidar com a ausência e vivendo com uma esperança motivadora. Assim, neste sentido, as palavras de Paulo tornam-se bem confortadoras. Pois, além de compreender a morte como um descanso transitório, deve o seguidor de Jesus ansiar pelo momento em que todos estarão reunidos para sempre com Deus. E a este respeito o apóstolo expõe muito bem o mistério da existência conforme a imagística e o conhecimento de sua época:

"Ora, ainda vos declaramos, por palavra do Senhor, isto: nós, os vivos, os que ficarmos até à vinda do Senhor, de modo algum precederemos os que dormem. Porquanto o Senhor mesmo, dada a sua palavra de ordem, ouvida a voz do arcanjo, e ressoada a trombeta de Deus, descerá dos céus, e os mortos em Cristo ressuscitarão primeiro; depois nós, os vivos, os que ficarmos, seremos arrebatados juntamente com ele, entre as nuvens, para o encontro do Senhor nos ares, e, assim, estaremos para sempre com o Senhor. Consolai-vos, pois, uns aos outros com estas palavras." (1Ts 4.15-18; ARA)

Em cima destes escritos, a Igreja criou inúmeras doutrinas posteriores e muitas delas tornaram-se até alienantes quanto à vida em comunidade. Os padres começaram a abusar desta consolação, projetando a felicidade do homem no céu, ao invés de incentivarem o encontro com a Vida no aqui e agora. Explorado pelos seus patrões e pelos governantes, com amplo apoio dos líderes eclesiásticos, nada mais restou ao trabalhador exceto sonhar com um paraíso após a morte. E para limitar qualquer ação revolucionária dos pobres, ainda criaram as terríveis ameaças acerca da condenação no inferno.

Numa época mais moderna, em que desastres de grandes proporções têm ocorrido juntamente com o desenvolvimento de armas de destruição em massa e mais as profundas mudanças sociais, não há nada mais alienante do que as paranoias apocalípticas. Os discursos sobre a segunda vinda de Jesus têm se tornado verdadeiras sessões de terror como se a qualquer momento o fim do mundo pudesse acontecer. Aí, segundo esta visão teológica, quem estiver vivendo fora dos padrões da Igreja, será destruído.

Lendo os versos de 1 a 11 do capítulo 5 da epístola, entendo que a ideia de uma repentina chegada do "Dia do Senhor" é nada mais do que uma exortação para que a humanidade se prepare para um novo tempo. Trata-se, portanto, de percebermos a nova estação na qual o mundo está entrando para que não sejamos surpreendidos com as mudanças de valores:

"Quando andarem dizendo: Paz e segurança, eis que lhes sobrevirá repentina destruição, como vêm as dores de parto à que está para dar à luz; e de nenhum modo escaparão" (1Ts 5.3; ARA).

Ao analisarmos a História, percebemos que alguns eventos ocorrem com grandes surpresas, sem que as pessoas tenham tempo hábil para prevê-los. No final da década de 80 e início dos anos 90, quem poderia imaginar que as cortinas de ferro da ex-URSS e da Europa do Leste iriam cair? Repentinamente, foram caindo os regimes totalitários e stalinistas um por um semelhantes às peças de um jogo de dominó. Porém, se retrocedêssemos a 1986, por exemplo, ninguém poderia imaginar que o vergonhoso muro de Berlim iria ser derrubado em tão pouco tempo e que a Alemanha, dividida em dois países, voltaria a se reunificar.

Lendo a mensagem de Paulo, é justamente o aspecto libertador daquelas palavras que precisam ser retidas para não nos enganarmos com essas teologias amedrontadoras que, na prática, só prestam para promover as mais nocivas alienações. Realmente temos que estar atentos, procurando perceber o tempo kairótico, aquilo que Deus está hoje fazendo no mundo. E, firmados na esperança, promovermos a vida em comunidade.

"Nós, porém, os que somos do dia, sejamos sóbrios, revestindo-nos da couraça da fé e do amor e tomando como capacete a esperança da salvação; porque Deus não nos destinou para a ira, mas para alcançar a salvação mediante nosso Senhor Jesus Cristo, que morreu por nós para que, quer vigiemos, quer durmamos, vivamos em união com ele." (1 Ts 5.8-10; ARA)

Quando vivemos com esta percepção no tempo kairótico, nossa existência torna-se uma eterna aventura. Quer estejamos aqui, ou "dormindo", podemos experimentar a salvação, isto é, uma vida plena e satisfeita pela nossa integração total com o Criador e tudo o que Ele fez de bom. Preocupar-nos com o futuro pessoal ou com a partida dos entes queridos já não deve mais nos afligir porque passamos a celebrar a continuidade da Vida que tem na ressurreição de Cristo Jesus um belíssimo símbolo.

Contrariando o papo sem aterrorizante desses pregadores sem graça que têm por aí, Paulo escreve os versos finais de sua epístola aos tessalonicenses motivando-os para a experimentação da vida comunitária. O seguidor de Jesus é chamado para atuar na edificação de uns dos outros, assumindo sua responsabilidade com os irmãos locais. E. com estas palavras, ele explica o que vem a ser esta celebração da vida:

"Evitai que alguém retribua a outrem mal por mal; pelo contrário, segui sempre o bem entre vós e para com todos. Regozijai-vos sempre. Orai sem cessar. Em tudo, dai graças, porque esta é a vontade de Deus em Cristo Jesus para convosco. Não apagueis o Espírito. Não desprezeis as profecias; julgai todas as coisas, retende o que é bom; abstende-vos de toda a forma do mal." (1Ts 5.15-22; ARA)

Por acaso esta última citação não é um excelente exemplo do que significa viver no tão desejado tempo kairótico em que aprendemos a ser gratos e nos alegrarmos sempre?

Complementando o seu estudo sobre a epístola paulina no CBA, Rosalie Koudougueret, bacharel e mestre em Teologia da República Central da África, trás-nos estes oportunos comentários:

"As palavras de Paulo nos lembram os extraordinários privilégios que desfrutamos como crentes, os quais são a fonte de nossa alegria, mas também de nossos deveres e responsabilidade em evitar o mal e pôr em prática a palavra de Deus. Essas palavras são particularmente aplicáveis à igreja hoje, a qual tem sido tão influenciada pelo mundo que agora abriga todos os tipos de males: corrupção, imoralidade, tribalismo [conflitos entre as tribos africanas], divisão, egoísmo e roubo. Além disso, existe uma escassez de profunda e dinâmica oração. Já é hora de a igreja retornar ao seu primeiro chamado para ser 'o sal da terra' e a 'luz do mundo'" (Comentário bíblico africano; São Paulo: Mundo Cristão, 2010, pág 1500)

Que neste feriado do dia 2 de novembro, mundialmente dedicado aos que "dormem", venhamos nos encher de esperança e nos fortalecermos com a luz do nosso Deus! E, confortados, possamos prosseguir confiantes em nossa caminhada, celebrando alegremente a eternidade de todos os seres porque o nosso Criador é a fonte da vida que pulsa no Universo. Bendito seja Ele!


OBS: A ilustração usada neste texto diz respeito ao quadro Ressurreição de Cristo, pintado pelo artista francês Noël Coypel, em 1700.