"Nós sabemos que já passamos da morte para a vida, porque amamos os irmãos; aquele que não ama permanece na morte" (1Jo 3:14; ARA)
Neste começo de ano, mergulhei em mais uma de minhas crises de reflexão teológico-filosófica. Não é algo meramente conceitual ou do tipo se somos seres predestinados ou se nos resta alguma liberdade de escolha. Menos ainda se a humanidade descende historicamente de Adão e Eva ou se evoluiu de um primata ancestral.
Nada disso! Não quero perder meu tempo com questões loucas que nada podem acrescentar à edificação pessoal. Tenho mais o que fazer! Entretanto, mesmo com um envolvimento mais intenso com o trabalho nesses últimos dias, não dispenso uma significativa parcela das horas dadas por Deus para meditar acerca dos limites do amor cristão. Afinal de contas, até que ponto esse sublime amor é real ou utópico? As narrativas e os comentários bíblicos acerca do Messias Jesus, registradas no
Novo Testamento, devem ser lidos como algo para ponderação na tentativa de definirmos a conduta humana ou se caracterizam como um modelo de vida a ser plenamente alcançado por nós pecadores?
Como conciliar o amor de Cristo em tempo integral com a objetividade imposta pela vida que, no seu devido tempo, exige de todos uma espécie de prestação de contas quanto ao resultado do labor, os cuidados com a família, com a saúde mental e física, com os investimentos na casa própria e num fundo de previdência, com o casamento e geração de filhos, a participação no meio social (política e festividades) e outras necessidades que parecem ter sido colocadas no mundo pelo divino Criador quando nos fez a sua imagem e semelhança?
Seria a mensagem de Cristo algo incompleto ou somos nós quem não entendemos completamente até hoje aquilo que o santo e justo Senhor veio fazer na terra durante os dias de sua encarnação?
Por uns anos acreditei que, se um número considerável de pessoas no mundo abraçasse inteiramente o amor cristão, colocando-o em prática a ponto de romper os limites do auto-sacrifício, haveria uma transformação planetária capaz de inaugurar uma sonhada era de paz e de justiça. Todavia, tenho considerado hoje a hipótese de que, se houver uma certa medida de amor nas coisas banais do cotidiano que fazemos, sem fugirmos da normalidade, alguma diferença positiva já acontecerá numa área desse imenso Universo. Mesmo que as coisas ainda prossigam caóticas como até hoje têm sido.
Afim de que eu não fique gastando palavras falando de maneira muito genérica e abstrata, a ponto de correr o risco de não ser bem compreendido, prefiro ir direto para alguns exemplos práticos de vida. Vou propositalmente expor situações a seguir em que o amor estaria sendo colocado em dúvida:
Primeiro exemplo. Imagine um patrão honesto e temente a Deus. Ele admitiu um funcionário que não produz aquilo que a empresa necessita da mão-de-obra contratada e que ainda comete muitos erros no desempenho das tarefas. A situação chega a um ponto insustentável até que o chefe se vê numa encruzilhada e precisa se posicionar. Ou ele dispensa o empregado ou continua tomando prejuízos financeiros atrasando cada vez mais o andamento dos negócios.
Segundo exemplo. Uma filha solteira em idade produtiva e tendo muitos pretendentes para o casamento mora com sua mãe que é idosa e doente. Ela precisa de atenção especial e que, por sua vez, demandam uma presença maior da filha no lar. Esta para prosseguir precisa sair de casa afim de trabalhar e não tem condições de pagar por uma cuidadora. Então, num certo momento, a moça pondera se deve colocar a mãe num asilo ou se deixará de desenvolver a sua vida profissional progredindo na carreira. Se vai investir num relacionamento afetivo com alguém ou se ficará assistindo TV em casa todas as noites presa a uma pessoa enferma e acamada?
Terceiro exemplo. Um diretor tem numa das salas de aula um estudante problemático com sérios defeitos de comportamento. O garoto atrapalha a turma, arruma brigas com os colegas no pátio, desrespeita a professora, não trás o dever de casa com as respostas, costuma faltar até provas e prejudica o ensino e a disciplina da escola. Aí os pais das outras crianças começam a reclamar com a direção daquele estabelecimento nas reuniões ameaçando não renovar as matrículas de seus filhos para o próximo período letivo caso a situação persista de modo que o nobre diretor precisa tomar uma posição. Ou ele desiste da "ovelha perdida" ou paga um elevado preço perdendo clientela.
Eu poderia citar incontáveis exemplo e até compartilhar abertamente uns dramas pessoais, o que talvez seja desaconselhável fazer publicamente. De todo modo, penso ter alcançado êxito em tentar transmitir minhas reflexões e daí indago qual a síntese do nosso encontro com o amor de Deus manifestado em Cristo. Como se configurará a cruz no viver diário de cada cristão conforme as decisões escolhidas? Ou no amor
agape não existe espaços para meio termo devendo ser experimentado na radicalidade a ponto de se tornar auto-destrutivo sem sobrar uma dose para si mesmo?
"Ora, aquele que possuir recursos deste mundo, e vir a seu irmão padecer necessidade, e fechar-lhe o coração, como pode permanecer nele o amor de Deus." (1Jo 3:17)
Conforme escreveu
Phillip Yancey no artigo
Unwrapping Jesus (
Desvendando Jesus), publicado na revista
Christianity Today, em 17/06/1996, aconteceu certa vez em que, no curso de um evento, um conhecido judeu procurou o festejado escritor após este ter feito sua apresentação pública discursiva. O homem teria lhe dito assim:
"O que você falou me atingiu fundo no coração (...) Não sigo Jesus - sou judeu. Mas, quando você falou sobre Jesus perdoando seus inimigos, percebi como estou longe desse espírito. Tenho muito a aprender com o espírito de Jesus" (extraído do devocional Sinais da Graça, edição de 2011, Mundo Cristão, pág. 34)
Bem, eu estudo os evangelhos há quase trinta anos (leio a Bíblia com assiduidade desde os 10 e faço 37 em abril). Não sigo mais a ortodoxia cristã e já nem me preocupo em me afirmar como mais um herege (agora dizer-se "herege" virou moda), pois me importa muito mais a ortopraxia. Assim, tenho pesquisado Deus nas Escrituras da vida (inclusive na Bíblia), preservando reverência e temor pelo Eterno. Contudo, ao deparar-me com a realidade, não vejo outra saída senão ir ao confronto com ela. Busco encará-la de frente, nu, sem esconder-me atrás das árvores do Paraíso ou negar a responsabilidade que tenho pelas escolhas existenciais. Assumo meus pensamentos íntimos e a natural tendência do gene humano em desejar aquilo que nos falta do saber divino quanto ao bem e o mal. Logo, mesmo identificando-me como cristão de velha data, ainda me sinto tão aprendiz quanto o referido judeu que conversou com Yancey após a palestra deste. E, semelhantemente, vou procurando os rastros deixados pelas pegadas de Jesus ou de seus discípulos. E nisto descanso. Sei que Deus é maior do que meu coração!
Quem puder contribuir com seus comentários, sinta-se a vontade.
Paz e graça. Tenham um feliz 2013!
OBS: A ilustração acima trata-se da obra do artista
Diego Velázquez (1599-1660), pintada a óleo sobre tela por volta do ano de 1632 tendo sido extraída da Wikipédia em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Ficheiro:Cristo_crucificado.jpg e acrescentada à postagem dia 16/01/2013.