"Eu sou o Senhor que os tirou da terra do Egito para ser o seu Deus; por isso, sejam santos, porque eu sou santo." (Lv 11:45; NVI)
Atualmente eu e Núbia temos lido o livro bíblico de Levítico, dando sequência ao estudo que estamos fazendo da legislação de Moisés e de parte do chamado "Antigo Testamento".
Para muitos cristãos é desafiador tentar entender o terceiro livro das Escrituras Sagradas visto que o texto trata de diversas questões culturais relativas ao povo judeu, contendo inúmeras normas de caráter religioso, sendo muitas delas aplicáveis, por exemplo, ao sacerdócio israelita, aos sacrifícios de animais (suspensos desde a destruição do segundo Templo), aos alimentos, à purificação para fins rituais e às festas nacionais típicas. Só que nenhum verso pode ser considerado sem significado por mais que, aparentemente, a orientação contida ali não tenha a ver com a nossa realidade eclesiástica atual.
Surpreendentemente, no meio de vários mandamentos, aparece no capítulo 19 de Levítico o basilar princípio do amor ao próximo "como a ti mesmo" (v. 18) que, séculos depois, Jesus de Nazaré e outros sábios judeus de seu tempo tanto se referiram como a explicação sintética de toda a Lei de Deus. Pois foi o que o Mestre certa vez respondeu a um conhecedor das Escrituras:
Um deles, perito na lei, o pôs à prova com esta pergunta: "Mestre, qual é o maior mandamento da Lei?" Respondeu Jesus: "‘Ame o Senhor, o seu Deus de todo o seu coração, de toda a sua alma e de todo o seu entendimento’. Este é o primeiro e maior mandamento. E o segundo é semelhante a ele: ‘Ame o seu próximo como a si mesmo’. Destes dois mandamentos dependem toda a Lei e os Profetas". (Mateus 22:35-40)
Por sua vez, o ancião Hillel argumentou de uma maneira bem próxima a Jesus quando um gentio, desejando ser recebido no judaísmo, pediu-lhe um curso sobre a Torá. Na ocasião, o impaciente prosélito recebeu como resposta do mestre esta frase que resumiria os quarenta dias em que Moisés ficou no Monte Sinai:
"não faças aos outros o que não queres que te façam" (bShab 31a)
O curioso é que, se o leitor deixar de lado as questões meramente culturais, mas buscar um aprofundamento em todos os ensinos de Levítico, ele encontrará excelentes mandamentos para que possa buscar uma convivência equilibrada com o seu próximo. Aliás, no mencionado capítulo 19, temos ali a repetição de diversas leis sobre as quais os homens do Talmude e outros rabinos muito debateram cabendo até hoje uma análise. Senão vejamos alguns exemplos por mim selecionados:
1) Respeitar os pais e guardar os sábados (v. 3): Cuidam-se, respectivamente, dos quinto e do quarto mandamentos do Decálogo, os quais não foram colocados juntos no versículo por acaso. Ali a ordem de descansar no sétimo dia semanal, em reverência ao repouso divino após a obra da criação (e à necessidade do homem descansar), não pode ser quebrado por causa de uma exigência paterna ou materna de impor ao filho a realização de tarefas laborais num dia que não é destinado ao trabalho. Ou seja, obedecer aos pais não pode ser motivo para a prática de coisas erradas.
2) Permitir que parte da colheita agrícola seja para o sustento dos pobres (vv. 9-10): Embora os antigos isralitas, por viverem numa sociedade de economia rural, devessem praticar literalmente o mandamento deixando de colher todos os frutos da terra (e não catando os caídos no chão), o seu significado para a atualidade é que parte da produção de um povo precisa se destinar aos programas sociais. Tal ordem constitui um freio quanto à ganancia e ao acúmulo predatório de riquezas. Era algo que tanto os poderosos quanto as pessoas de condição estável precisam observar.
3) Não atrasar a diária do trabalhador (v. 13): Significa que os créditos trabalhistas devam ser pagos em dia, o que os torna prioritários a fim de que o empregador ou o contratante não venha a oprimir o seu próximo tocando no sustento deste através da injusta demora. É algo que não só os empresários e governantes deveriam ficar mais atentos para cumprir, mas também qualquer que solicitar serviços a um profissional. Aliás, eu diria que, na Justiça, muitos juízes andam ignorando que, quando é feito um depósito judicial sobre os honorários sucumbenciais ao advogado do vencedor, era para a ordem de pagamento ser disponibilizada o mais rápido possível por tratar-se do ganha pão dos nossos ilustres causídicos.
4) Não fazer o cego tropeçar (v. 14): Certamente que o sentido aqui vai além do literal porque, no caso, inclui a indução de alguém a cometer erros. Seja levando a pessoa a praticar um ilícito inconscientemente ou enganá-la de um modo que venha a sofrer danos por suas decisões. São as armadilhas que uns maliciosos armam contra o próximo.
5) A imparcialidade nos julgamentos (v. 15): Seja no exercício de uma magistratura pública ou nas nossas análises pessoais sobre uma situação controversa, devemos buscar ser imparciais. Se alguém fez algo errado, a sua condição econômica jamais pode viciar o nosso juízo porque, do contrário, estaríamos pervertendo a Justiça. Logo, não se deve acovardar diante do rico e nem permitir que a hipossuficiência do outro venha a isentá-lo de responsabilidade pelos atos ilícitos que cometeu. Pois verdade seja dita que nem sempre a vulnerabilidade social do pobre pode ser vista como causa das condutas erradas da pessoa humilde.
6) Não ser mexeriqueiro e nem atentar contra a vida do próximo (v. 16): Creio que a proximidade das duas ações mencionadas no mesmo versículo possa mostrar alguma relação entre elas. Significa que espalhar as intrigas não só pode colocar a vida de alguém em perigo como também não seria correto "permanecer calado sobre o sangue do próximo", como seria expresso idiomaticamente no hebraico. Em outras palavras, entendo que devemos refletir sobre como a nossa comunicação é capaz de repercutir na esfera social ao prejudicar pessoas em razão da maledicência ou fofoca, valendo lembrar que o silêncio também é um tipo de mensagem.
7) Repreender o próximo (v. 17): Ao encontrarmos alguém cometendo erros não temos que cultivar dentro de nós o ódio contra tal pessoa e nem envergonhá-la publicamente. Cabe aí a repreensão amorosa, buscando a correção do outro. E isto se faz de maneira bem pacífica e discreta, dando espaço para que a consciência do próximo reflita tal como fez o profeta Natã quando procurou o rei Davi para lhe falar sobre o pecado que havia cometido (2 Sm 12:1-15).
8) Amar o próximo como a si mesmo (v. 18): Como já dito, este seria o resumo de boa parte dos mandamentos bíblicos incluindo os que dizem respeito ao nosso relacionamento com o outro. Ele vem após a advertência contra a vingança e o cultivo da ira, sendo uma orientação universal capaz de abranger também o estrangeiro (v. 34). Daí eu concluo que para nós que somos de cultura cristã significa aplicar a ordem também às pessoas de religião diversa da nossa ou mesmo as que a nenhum credo seguem. Ou seja, não temos que amar somente os membros da própria seita! Por sua vez, o mandamento impõe não apenas a advertência de nos abstermos do mal como também fazermos ao outro aquilo que desejamos que seja feito a nós.
9) Honrar o idoso (v. 32): Uma sociedade que não sabe respeitar aos mais velhos está sujeita ao fracasso. Ter uma atitude de reverência para com o ancião não seria apenas algo exterior, mas inclui aí darmos ouvidos à voz de sua experiência. Interessante que, no mesmo versículo, é lembrado sobre o temor ao Senhor, o que pode ser entendido comparativamente quanto à honra que deve ser dada ao ancião.
10) Ter pesos e medidas justas (vv. 35-36): Assim como o comerciante desonesto utilizava-se de balanças fraudulentas, em que havia um medidor menor para a compra e outro maior para a venda, permanece nos dias de hoje a advertência a fim de que sejamos íntegros em tudo quanto fazemos. E, numa época de enorme decadência moral como a nossa, esse mandamento vem se mostrar bem atual.
Assim, considerando o que Jesus proferiu no Sermão da Montanha, sobre não ter vindo para revogar a Lei, mas cumpri-la (Mt 5:17), ressalto que toda a legislação prescrita por Moisés no Pentateuco precisa ser investigada e refletida pelo cristão estudioso das Escrituras Sagradas. Logo, além do conhecimento cultural proporcionado por Levítico sobre o judaísmo nos tempos antigos, temos também a oportunidade de refletir em busca da "santificação", o que, em outras palavras, seria nada mais do que o aperfeiçoamento ético pessoal.
OBS: A ilustração acima refere-se ao Livro de Levítico, Warsaw, 1860, página 1, extraído do acervo virtual da Wikipédia em https://en.wikipedia.org/wiki/Book_of_Leviticus#/media/File:Book_of_Leviticus,_Mikraot_Gdolot,_Warsaw_edition,_1860,_Page_1.jpg
Gostei deste cantinho, num contexto totalmente diferente. Muito bom.
ResponderExcluirEspero por si
Aqui-> http://deliriosamoresexo.blogspot.pt/
Bjos ;-)
Bom dia, Larissa (acho que aí em Portugal seja boa tarde),
ExcluirSou um apreciador da leitura bíblica embora eu busque uma interpretação fora do contexto religioso sem seguir a ortodoxia cristã.
Obrigado aí pelo convite de visitar a sua página. Seja sempre bem vinda!
Abraços.