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sexta-feira, 17 de maio de 2013

Os preceitos bíblicos e o non sequitur

O non sequitur é uma expressão latina que se caracteriza pela falta de conexão entre as premissas e a conclusão do argumento elaborado. Em outras palavras, seria uma total falta de explicação em que a observância de algo encontra-se fundamentada muitas das vezes num apelo a alguma declaração de autoridade, na tradição ou até mesmo no medo já incutido nas mentes dos receptores da mensagem.

Na Bíblia, existem proibições cujas razões não foram reveladas. Uma delas seria o preceito de não cozinhar o cabrito no leite de sua mãe (Ex 23:19b; 34:26; Dt 14:21c) compondo as leis religiosas que o judaísmo denomina como chukim. Por causa dessa norma dietética, os judeus ortodoxos não admitem misturar carne com laticínios em suas refeições entendendo que a palavra hebraica guedi (cabrito) possa incluir também outros animais.

Entretanto, os intérpretes mais racionalistas das Escrituras nunca se conformaram com essa ausência de explicação lógica de alguns preceitos bíblicos. Dentro do próprio exemplo mencionado no parágrafo anterior, eis que, para o medievalista Maimônides (1135-1204), tratava-se de uma questão de higiene tal como as leis de animais "puros" e "impuros" de Levítico 11. Outros sugeriram que fora uma advertência dada por Moisés aos antigos israelitas para que estes não imitassem os costumes idolátricos dos povos cananeus, embora até hoje nenhuma pesquisa histórica trouxe evidências comprovadas a respeito dessa hipótese.

Tenho pra mim que os antigos autores bíblicos, os quais antecederam os últimos redatores dos textos sagrados do Antigo Testamento, deveriam conhecer bem os motivos de uma proibição assim como sabiam melhor os significados dos provérbios, das parábolas, das profecias e dos enigmas de seus tempos. Na linguagem da época deles, o que parece ser obscuro pra nós na Bíblia deveria ser bem claro, acessível e explicável de maneira que os destinatários de suas mensagens (e dos preceitos) poderiam facilmente entender o recado.

Penso que, entre Moisés e nós, houve consideráveis perdas quanto a muitos significados das mensagens bíblicas, o que não esvazia a sua atualidade principiológica para a geração de hoje. Porém, não podemos nos esquecer de que os antigos israelitas passaram por complicados momentos de apostasia religiosa, de domínio cultural imposto pelos estrangeiros, exílios e dispersões territoriais. Nem o alfabeto hebraico, adotado a partir do cativeiro babilônico (século VI a.C.), corresponderia ao que foi utilizado para escrever originalmente a Torá.

Por que então um judeu não pode comer bife à milanesa, um cheeseburger ou um strognoff mesmo se for com carne de frango? Simplesmente a religião não dá explicação e os ortodoxos colocam sobre suas cabelas o kipá da obediência reverente pelos mandamentos da tradição rabínica que, a meu ver, parece ter ressignificado um preceito sem estabelecer a indispensável ligação com os seus motivos originais hoje desconhecidos.

Por outro lado, meditando mais profundamente sobre as considerações das leis alimentares judaicas, chamadas de Cashrut (ou Casher), percebi algo bem interessante. Seria que, ao seguir a proibição de não comer isto ou aquilo, a pessoa estaria também educando os seus instintos animalescos e os impulsos de tendência compulsiva afim de adquirir um certo nível de auto-controle sobre a própria vontade. Se no passado a "dieta santa" pode ter sido uma marca distintiva dos judeus em relação aos outros povos pagãos com seus costumes idólatras, impedindo uma assimilação por qualquer cultura estrangeira, hoje em dia podemos estabelecer alguma relação entre os atos praticados no mundo físico e a influência destes sobre o aspecto ético-espiritual. Não que o alimento, por si só, fosse capaz de contaminar o homem, mas sim a sua conduta depravada, ou desapropriada, a ponto de romper com o sentimento de reverência cultivado milenarmente pelas gerações de seus ancestrais na observância dos costumes do povo. A desobediência equivaleria a um cuspe nas próprias origens.

Os comentários feitos a Levítico 11:4, na edição de 2001 da Torá - A Lei de Moisés, editora Sêfer, trás uma instigante reflexão acerca do assunto que é digno de ser debatida até por quem não seja judeu:

"Deus não se importa realmente com nossos costumes alimentares. No entanto, o homem deveria preocupar-se e importar-se com eles. Este sistema alimentar fornece ao homem uma chave à sua personalidade, como uma solução aos seus problemas e um lenitivo para as chagas que o atormentam. Esta é uma espécie de ginástica, parte da educação física judaica. O homem possui palavras e idéias em abundância. Teorias, frases sobre justiça, ideais, valores e afins preenchem seu espírito em grandes quantidades, mas seu corpo e seus sentidos são afetados por tais coisas. Eles obedecem a outras leis, a valores distintos. Assim, seu corpo acaba por perder a prática de idéias elevadas, tratando-as com frieza cínica. O homem sabe que se distingue dos animais, mas ao comê-los assemelha-se a eles em tudo, com exceção de diferenças externas e superficiais, como o uso de pratos e talheres. Os processos biológicos de alimentação, digestão, eliminação de detritos e morte do corpo são os mesmos nos homens e nos animais. Pelo fato de serem percebidos por meio de nossos sentidos, tais processos determinam a personalidade da pessoa de forma muito mais forte que eventuais momentos de elevação da alma e dedicação ao próximo. Este é o grande dilema do homem, o rompimento e a distância entre o corpo e o espírito, entre os ideais e sua conscientização; entre as necessidades de controlar os impulsos e a completa rendição ao mesmo. Nesta linha de pensamento o rabino Hirsch revela-nos a essência das leis da Cashrut: 'Grava em teu corpo as idéias elevadas! Até nas extremidades do corpo e do espírito! Assume o comando dos atos sensitivos elevando-os de patamar! Que nossa alimentação não seja apenas um ato físico, mas que contenha também algo de um ato moral. Não escolhamos nossos alimentos apenas por intermédio de considerações corporais, mas ponderemos também as medidas morais. Não é a saúde do nosso corpo, mas a saúde espiritual de nossas almas que está assegurada pela observação destes mandamentos e destes preceitos. São estes mandamentos que preservam o sentido do corpo das vivências animalescas e bestiais, protegendo a vontade espiritual e moral de serem desgastadas e de perder toda a sua perspicácia! Esta é a idéia que se esconde por trás das leis dietéticas judaicas, apresentadas aqui sucintamente, de forma simples. Uma idéia basicamente ligada ao corpo, mas longe de concepções místicas, de vestígios de cultos ou de preocupações com a saúde física. É um exercício simples para treinar o domínio da vontade espiritual sobre o organismo e as vontades físicas do corpo." (págs. 316 e 317)

Neste sentido, um motivo para alguém seguir hoje em dia regras alimentares religiosas (além de judeus e de cristãos adventistas, outras religiões têm também suas normas) seria mesmo a prática de um exercício de educação corporal para fins de ajustamento de condutas aos princípios éticos superiores como a prática da justiça e do amor ao próximo. Não digo que um prato de salaminho com provolone, ou que aquela linguicinha frita de porco com torresmo, vão produzir substâncias ruins no nosso organismo afim de que venhamos a nos inclinar para o mal. De modo nenhum! Analogicamente falando, Jesus ensinou muito bem que "não é o que entra na boca que contamina o homem" (Mt 15:11). Porém, pela atitude de negarmos a todos os desejos despertados pela impulsividade, estaremos criando uma determinação cerebral com resultados disciplinadores. Daí a importância de práticas como o jejum e de outras restrições momentâneas estabelecidas por cada um para si mesmo a exemplo dos recabitas de não beberem mais álcool (ler Jeremias 35).

Obviamente que essas são questões que jamais devem comprometer a nossa liberdade a ponto de virarmos ascetas ou perdermos totalmente as raízes culturais. Muitos preceitos da Bíblia, em sua forma, parecem ter tido significado só para os destinatários específicos da mensagem. Importar para uma cultura hábitos alimentares judaicos, árabes, indianos, japoneses, europeus, ou dos protestantes norte-americanos, não pode dar certo porque causa crises de identidade no indivíduo, prejudicando os relacionamentos entre as pessoas nas mais diversas ocasiões de convívio social. Aliás, por que Deus não se agradaria se cristãos se reunissem para comer uma feijoada ou um bobó de camarão dando graças com a consciência em paz? Porém, se uma pessoa, em sua caminhada espiritual, passa a compreender que deve abster-se do consumo de carne, ou inventar outra "ginástica" mais adequada para si do tipo não comendo açúcares, chocolates e gorduras, sempre é bom agir com coerência em relação ao que cada indivíduo crê subjetivamente sem querer impor a mais ninguém. Como fez o apóstolo Paulo quando optou pelo celibato reconhecendo que a abstinência do casamento era conclusão apenas dele (1Co 7:1,7-9,26-35).

Concluo dessa maneira que a interpretação dos preceitos bíblicos não pode ter por base a falácia do non sequitur. É preciso meditar a respeito de cada conduta nas Escrituras e jamais cometer um suicídio intelectual. Se o tempo apagou uma conexão lógica anteriormente existente ente a premissa e a conclusão de um argumento, pode-se tentar achar a resposta pela via da experimentação. E creio que, com sensibilidade, conseguiremos ser guiados pelo Espírito de Deus a toda verdade.

4 comentários:

  1. A DIETA ALIMENTAR NO JUDAISMO NÃO ESTA RELACIONADA COM VIDA ESPIRITUAL, ESTE CONCEITO É CRISTÃO... O JUDAISMO É COMO BEM ESCREVEU UMA CULTURA...LOGO, POR EXEMPLO NÃO COMER CARNE DE PORTO E CAMARÃO FAZ PARTE DA SABEDORIA JUDAICA, EVITANDO ANIMAIS SUJOS E ESTES PRÓPRIOS COMEM IMUNDICIES DEJETADAS NA AGUA...NA SABEDORIA DO ETERNO, É VISTO O ATO DE HIGIENE, E NÃO ESPIRITUAL, A SUA LEITURA NÃO É JUDAICA, APENAS ISTO.

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    1. Caro participante anônimo,

      Pelo que bem sei acerca do judaísmo, embora não seja judeu e nem praticante da religião judaica, a questão da higiene seria apenas um dos motivos pelos quais muitos intérpretes entenderiam a dieta bíblica. A pluralidade existente entre os judeus permite que entre eles haja visões bem diferentes sobre um determinado assunto. No livro bíblico de Ezequiel, o profeta associa o não comer "carne imunda" com a pureza de sua alma (Ez 4:14). Há um termo muito comum no judaísmo que diz que “A Torá tem Shivim Panim", o que significa "setenta faces”.

      Embora os mecanismos de postagem de comentários deste blogue permita o anonimato, mantenho isto apenas para que os internautas possam falar de assuntos pessoais deles sem expor a intimidade ou a vida provada. Quando se tratar da manifestação do pensamento, isto é, a emissão de opiniões, peço que seja feita de maneira identificada em respeito à Constituição brasileira que veda o anonimato.

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  2. Caro Rodrigo: Concordo com suas colocações. Os hábitos alimentares, relacionados ao primeiro estado de consciencia das necessidades fisiológicas, precisa ser amorosamente qualificado, elevando-se ao quarto estado de consciencia do amor incondicional. No caso da carne bovina, por exemplo, além do fato da indústria pecuária ser a maior responsável pela poluição da atmosfera, pela alta emissão de gaz metano, nossos intestinos não são naturalmente preparados para o consumo de carne (ela apodrece no trato intestinal) tornando-se fator cancerígeno. junte-se a isto o modo bárbaro como os animais são criados (em confinamento) e abatidos. Isto tem uma conotação ético-moral, que deveria ser levada em consideração, por todos aqueles que respeitam as diferentes formas de vida. Não podemos pensar em uma prática religiosa que não inclua estas mudanças de hábitos, que melhor nos integrem à Natureza, da qual todos nós fazemos parte.

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    1. Prezada Sueli,

      Muito boa a sua participação.

      Concordo com o que colocou e considero dois critérios razoáveis e racionais para as pessoas reverem suas dietas:

      - a saúde delas;

      - o sofrimento animal;

      - a preservação do meio ambiente;.

      Eu diria também que, com o aumento populacional do planeta, teremos que pelo menos reduzir o consumo de carne para que todos possam se alimentar quando nos tornarmos uma aldeia de mais de 8 bilhões.

      Concordo que a experiência espiritual do ser humano deve levá-lo a construir princípios éticos mais elevados e acho que as igrejas cristãs, na sua maioria, pecam por não tocarem no assunto da alimentação saudável e ecologicamente responsável.

      Tanto a ingestão de carne de porco como a de boi ou de frango ou de qualquer animal precisa ser repensada. Inclusive quando levamos em conta as formas cruéis de abate e de criação, como bem colocou mencionando o confinamento. Aliás, essas coisas fazem parte de minhas ponderações. Veja o artigo que publiquei aqui no mês passado criticando a falta de incentivo do governo federal para as pessoas mudarem seus hábitos alimentares:

      A dieta da dona Dilma
      http://doutorrodrigoluz.blogspot.com.br/2013/04/a-dieta-da-dona-dilma.html

      Agradeço por colaborar e aproveito para desejar uma boa semana.

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