A vida é o bem mais precioso que recebemos em nossa peregrinação na Terra. Preservá-la deve ser o principal alvo das igrejas, das ONGs, dos partidos políticos, do Estado e da sociedade em geral. Só que, em muitas das vezes, as regrinhas morais e religiosas podem favorecer até o mais grave dos pecados que é matar alguém (Êxodo 20:13 e artigo 121 do Código Penal Brasileiro).
Com minha relativa experiência de vida, com pouco mais de 13.500 dias e mais da metade deles sendo evangélico, venho observando que determinados fatos lamentáveis poderiam ser evitados se outras normas preceituais de menor importância fossem justificadamente "transgredidas" pelo agente do delito.
Em certa ocasião, um homem de religião cristã espancou a sua esposa até ela desmaiar dentro de casa. Por pouco não a matou com socos na cabeça e chutes em outras partes do corpo. Sentindo-se em seguida culpado pelo que fizera e vendo a mulher inconsciente estendida sobre o chão da sala, parou de bater tentando reanimá-la. Por fim, chamou a ambulância.
Felizmente a vítima se recuperou e preferiu deixar de registrar o episódio na Delegacia, dando mais uma chance ao agressor. Só que, dessa vez, ela impôs a condição de ambos procurarem o aconselhamento espiritual da igreja frequentada pelo casal e o marido aceitou conversar com o pastor expressando arrependimento pela violência perpetrada.
Sem entrar em maiores detalhes sobre essa situação concreta, ou especular se a manutenção do casamento foi a melhor escolha que tomaram (os dois estão juntos até hoje), levanto aqui uma hipótese considerando o que frequentemente ocorre no cotidiano nosso. Pois o que teria sucedido se um dos violentos golpes daquele marido atingisse fatalmente a sua mulher? Por acaso tal homem não teria passado da condição de trabalhador honesto para um criminoso procurado pela Polícia? E a jovem senhora de seus trinta e poucos anos não teria perdido tragicamente a vida?
Recordo que, enquanto estava refletindo sobre aquele problema, mesmo tendo na época uma visão de mundo mais "fundamentalista" e conservadora, cheguei a dizer para o pastor: "irmão, se a relação no casamento anda tão ruim assim e fugindo do controle, é melhor que haja o divórcio do que um homicídio ou uma lesão corporal com sequelas sérias".
Curioso que os valores religiosos que recebi ainda adolescente no meio batista até hoje me servem de desestímulo para eu advogar nesta triste e necessária área do Direito de Família que são as separações conjugais. No entanto, aprendendo com as experiências minhas e dos outros, tenho me sentido menos inapto para algum dia entrar no Fórum defendendo esse tipo de causa. E, indo mais além, acho que já sou capaz de pregar com ousadia numa congregação religiosa orientando as pessoas segundo a voz da consciência, mesmo de maneira contrária a certos dogmas do cristianismo ortodoxo.
Repito! Se um marido está tão insatisfeito por viver ao lado de sua esposa, não é melhor encarar logo o divórcio do que terminar matando a mulher por espancamento? Contudo, por causa de alguns freios de conduta da religião, como a ideia da indissolubilidade do vínculo matrimonial e a caracterização do pecado de adultério na hipótese de novas núpcias no civil com outra pessoa pelo cônjuge separado, as igrejas bitoladas dão ocasião a um sentimento verdadeiramente maligno - o desejo de matar. Se não dá para ter um segundo casamento "aprovado por Deus" (e pela comunidade), o devoto começa a pensar nos benefícios que a viuvez lhe proporcionaria...
Recordo que, quase quatro anos após aquele episódio perturbador narrado acima, o pastor presidente da igreja onde eu me reuni por meia década na Região Serrana do Rio, pediu meu auxílio para aconselhar juridicamente um outro casal que tinha se agredido mutuamente dentro do próprio templo. A esposa estava doida para fazer um B.O., mas, se isto se confirmasse, registando-se o local do crime, seria um escândalo com a possibilidade de envolvimento da denominação religiosa nas páginas policiais de algum jornal (é comum haver funcionários públicos na Civil que informam a imprensa). Então, fui procurado pela liderança eclesiástica justamente para tentar um acordo entre os dois (por panos quentes) e, infelizmente, não me posicionei como deveria agir conforme a ética. Horas depois, eu me arrependi amargamente pelo papel de banana que fiz quando fui chamado ao gabinete pastoral, pois deveria ter dito o seguinte pra ela:
"Filha, se hoje ele foi capaz de te bater dentro da igreja, não falta muito para este cara mandar você numa hora dessas para o cemitério. Levante-se daqui, vai logo até à 151ª DP e represente contra ele fazendo em seguida o exame do corpo de delito. Não se sujeite à violência e se lembre que você é mãe. Se ele quer ficar com outra, deixa pra lá e dê logo o divórcio..."
Hoje estou lutando para libertar cada vez mais o meu pensamento da gaiola do fundamentalismo religioso. Atualmente, não só sugiro a separação para os relacionamentos perigosos e de traição como defendo outras bandeiras realistas capazes de chocar tanto a evangélicos quanto a católicos:
-> É melhor um marido insatisfeito pedir o divórcio da esposa do que matá-la a porrada.
-> É melhor um ex-viciado em cocaína fumar seu cigarrinho inocente da Souza Cruz do que não conseguir controlar sua ansiedade, entregar-se à bebida e depois retornar para as drogas. Contrair um câncer vai ser menos mal do que morrer de overdose com uma seringa nas mãos.
-> É melhor que um adolescente com tesão a flor da pele vá se masturbar no banheiro olhando para a última edição da Playboy, do que cometer um ato de estupro. Antes ele procurar uma prostituta na esquina e ir com a mulher pra um motel do que atentar contra a liberdade sexual de qualquer pessoa! Se vier a se tornar uma só carne com a meretriz no mundo espiritual, as consequências serão bem menores em todos os planos existenciais.
-> É melhor não dar o dízimo na igreja e contribuir com importâncias menores, dentro de suas possibilidades econômicas, do que ofertar e passar fome, não pagar as dívidas com terceiros, deixar de assistir os pais idosos, atrasar a pensão dos filhos menores, etc.
-> É melhor dar atenção para alguém que esteja sofrendo do que dispensar o apoio espiritual ao irmão com o pretexto de participar de mais um culto religioso para ficar "firme na igreja".
-> É melhor declarar de vez sua incredulidade, encarando de frente a crise e as dúvidas, do que esconder os sentimentos, fingindo diante dos irmãos como se tudo estivesse indo bem.
-> É melhor ensinar os jovens na Escola Bíblica Dominical a usarem preservativos porque, se os hormônios ferverem e eles vierem a fornicar, o pastor não vai precisar ficar sabendo depois de que as adolescentes da igreja engravidaram durante o retiro de Carnaval. Ou que foram infectadas com o vírus HIV que é muito pior.
-> É melhor encaminhar a pessoa ao médico para confirmar a ocorrência de uma suposta cura milagrosa do que instigar o auto-engano religioso e amanhã a enfermidade evoluir.
Podem alguns cristãos radicais me chamarem de relativista que não me incomodo. Eu reverencio os mandamentos mas não sigo dogmas. Aliás, como teria dito o ancião Hillel, rabino que viveu alguns anos antes de Jesus, os quarenta dias de Moisés no Monte Sinai, quando o profeta recebeu a Torá, podem ser perfeitamente resumidos pela elevada prática do amor ao próximo. Pois é buscando o bem do outro que se cumpre adequadamente a Lei de Deus ao invés de prestarmos uma obediência cega aos preceitos escritos.
Publiquei também esse texto no blogue da Confraria Teológica Logos e Mythos da qual participo como um dos membros.
ResponderExcluirQuem desejar, pode postar seus comentários também lá e acompanhar os debates:
http://logosemithos.blogspot.com.br/2013/05/conselhos-que-o-padre-nao-da.html
Boa leitura!