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quarta-feira, 15 de maio de 2013

A boa convivência entre espírito e matéria

"Nada há melhor para o homem do que comer, beber e fazer que a sua alma goze o bem do seu trabalho. No entanto, vi também que isto vem da mão de Deus, pois, separado deste, quem pode comer ou quem pode alegrar-se? Porque Deus dá sabedoria, conhecimento e prazer ao homem que lhe agrada; mas ao pecador dá trabalho, para que ele ajunte e amontoe, a fim de dar àquele que agrada a Deus. Também isto é vaidade e correr atrás do vento." (Eclesiastes 2:24-26; ARA)


Diferente do que ensinam muitas religiões, inclusive a maioria das 33 mil seitas cristãs, as Escrituras Sagradas do Antigo Testamento incentivam o homem, em seu momento presente, a desfrutar das coisas boas da vida. E ele deve fazer isso de maneira sábia, consciente, em equilíbrio com a realidade total que inclui também o nosso plano espiritual.

Infelizmente, esta mensagem nunca foi bem compreendida pelas religiões que têm na Bíblia um livro de autoridade ou de consulta. Principalmente o cristianismo ortodoxo que triunfou através de Constantino no século IV, o qual se mantém até hoje através do catolicismo e do protestantismo, influenciando também o heterodoxo espiritismo kardecista e muitos grupos místicos. Há quem diga que a rejeição da matéria pelos cristãos se deu por causa da influência da filosofia platônica recebida pelos primeiros padres da Igreja, o que parece ser um argumento bem plausível.

No começo do ano passado, interessei-me por ler um pouco sobre o Bhagavad-Gita, um dos principais livros dos hindus que, traduzido do sânscrito para o português, significa "Canção de Deus". Seria a bíblia dos devotos de Krishna, o "messias" da Índia. E, embora existam diversas traduções e interpretações acerca do Gita, observei ali uma predominância chocante da rejeição da matéria indiciando uma conexão bem remota entre as religiões orientais e o cristianismo. Não que eu acredite ter Jesus vivido na Índia, mas sim que os "pais da Igreja" (os primeiros padres do século II), gregos de grande conhecimento intelectual, estabeleceram contatos com as visões de outras culturas já bem divulgadas pelo Império Romano daquela época. E o modo de pensar daqueles líderes certamente influenciou a redação dos escritos do Novo Testamento e até dos ensinos atribuídos a Jesus misturados com uma dose do judaísmo do período tanaítico.

Na cosmovisão hindu, pode-se dizer a grosso modo que a realidade total e completa seria formada pela divindade, as consciências dos seres vivos, o universo material, o tempo eterno e o karma. Os homens, imersos no mundo da matéria, teriam suas consciências "contaminadas" pela satisfação obtida dos prazeres desta vida, de modo que para alcançarem o mundo espiritual livrando-se do karma e das sucessivas reencarnações, torna-se necessária a prática do desapego.

Sem dúvida que existem variadas interpretações na religião e na filosofia hindu acerca dos ensinamentos do Gita e não quero de maneira alguma cometer um preconceito generalizador sobre uma cultura que não é a minha. Porém, os mais ortodoxos e fanáticos da Índia chegam a considerar o corpo como algo ruim, a origem de todas as misérias experimentadas no mundo material, motivo pelo qual encontramos por todos os lados devotos de Krishna optando por uma vida cheia de privações. Algo não muito diferente da histeria penitencial praticada no cristianismo após o término do período das perseguições romanas quando houve padres e freiras sujeitando-se desnecessariamente à vida monástica, pessoas jejuando excessivamente, incentivo ao celibato, práticas de auto-flagelação, dentre outras formas de abstinências, contribuições de ofertas e serviços devocionais massacrantes.

A Bíblia não dá respaldo a comportamentos assim. Antes, o livro de Gênesis, no seu primeiro capítulo, declara repetidas vezes que tudo aquilo que Deus criou (a matéria) é "bom". E, se todo o Universo e os seres que nele habitam são bons, então que ingratidão é essa alguém recusar-se ao desfrute das coisas existentes no mundo como a comida, o sexo conjugal, as festas comunitárias, a convivência social e o lazer? Pois, se uma pessoa vive focando apenas no "espiritual", sempre na espera de um "céu" futuro, ou da libertação do "karma" e da "roda das encarnações", tal sujeito estaria alienando-se quanto à multifacetada existência da alma. Mais parece uma fuga de si mesmo!

O budismo ensina que "todas as coisas estão em chamas" e isto não deixa de ser um fato inegável. Seja quanto á passagem do homem por este mundo quanto em relação ao Universo  que, dentro de bilhões de anos, segundo a Física, poderá deixar de existir. Entretanto, esta transitoriedade da manifestação corpórea da vida não serve de motivo para uma fuga do cenário atual e nem para nos apegarmos demasiadamente aos bens que usufruímos. Mais do que nunca seria o alerta para nos voltarmos reverentemente para o Criador bendito e saborearmos o momento eterno juntamente com cada paisagem passageira formada com as estações do tempo durante o nosso caminhar.

Apesar do pouco que sabemos sobre o Jesus histórico e das deturpações cometidas pelos antigos padres quanto à tradição apostólica, vejo no Senhor um modelo de vida fantástico. Examinando as passagens dos Evangelhos, observo que o nosso Messias amado consagrou a sua vida inteiramente ao Pai. Sofreu obedientemente a sua morte de cruz, jamais deixando de orar e gastando horas de vigília nos montes. Mas também se alegrou, festejou, comemorou resultados, não se recusou estar em banquetes, bebeu até vinho na companhia dos apóstolos sem se alcoolizar e fez tudo conforme a liberdade proporcionada pelo Espírito Santo.

Mas do que nunca, as igrejas de hoje necessitam desse equilíbrio vivido por Jesus. O ser humano é corpo e também é espírito. Um não é separado do outro. Muito pelo contrário! Ambos existem para se harmonizarem e cabe a nós rompermos com qualquer tipo de alienação. Logo, temos no Mestre o exemplo dado para que aprendamos a compreender a realidade multidimensional. Só assim estabeleceremos a paz edênica desviando-nos do mal. Por isso é que não deixo de ser um pregador do Evangelho de Cristo.

Bendito seja o Cordeiro!

5 comentários:

  1. Rodrigo, concordo plenamente com suas palavras e acredito que elas vão de encontro a uma ideia mais geral de revisão de nossa tendencia dicotômica. A necessidade instintiva e neurótica de separação em certo e errado, esquerda e direita. o separar por separar, escolher um lado não por critérios claros de bom ou mau, mas por imposição de pertencer a um lado e negar outro. Eu particularmente estou convicto, de que tudo mesmo, pode e deve ser responsavelmente relativizado, menos a violência covarde, essa sim é essencialmente má e está na base das coisas más, no contexto social e também no contexto espiritual. Um abração.

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    1. Olá, Gabriel.

      Diz a Bíblia que:

      "Para os perversos, todavia, não há paz, diz o SENHOR." (Isaías 48:22; ARA)

      Ainda que a violência covarde seja permitida por Deus em seu soberano propósito, ela não triunfará e nem permanecerá para sempre. Daí em crer num juízo divino que não apenas deve ser projetado para o futuro como pode ser visualizado em toda a História.

      A matéria não é má, mas o pecado estraga a matéria. A humanidade, entretanto, confundiu a maldade com a fisicalidade como se o obstáculo estivesse "fora" e não "dentro" do ser humano.

      Quando se fala em relativização de condutas e de normas, não se trata da maldade em si mas sim da forma como esta se exterioriza. Isto porque, quando nos prendemos à aparência do ato, nem sempre percebemos a sua essência, se é boa ou má.

      Recordo que, quando ainda estava na faculdade, assisti a um júri em que a mulher agricultora, após ter sido tão agredida e ameaçada pelo marido em inúmeras ocasiões, tendo ele lhe mostrado o facão tão quando chegou em casa nervoso, despertou nela o sentimento de por fim a todo aquele drama. Quando o sujeito virou as costas, ela pegou a inchada e meteu na cabeça dele. Era o que ela podia fazer naquele momento conforme suas possibilidades e o ato, embora parecesse crime hediondo na forma, não era em essência se levado em conta o contexto. No final das contas, a própria Promotoria pediu sua absolvição com apoio unânime dos jurados.

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    2. Rodrigo, é muito importante analisarmos fatos reais, principalmente os que podem gerar controvérsia. Isso é uma boa forma de refinarmos nosso sentido de entendimento e julgamento dos fatos.
      Alguns argumentos podem ser colocados nesse caso da agricultora. O fato de já estar existindo uma situação de covardia e neste caso a agricultora estaria equilibrando a situação, como um todo, com sua atitude.
      Quando digo que a covardia não pode ser relativizada é no sentido de que ela é o mal, quando se encontra claramente manifesta, as circunstancias é que vão revelar ou não a existência de um ato covarde e o que chamo de manifestação ou concretização do Mal. O motivo de eu chamar minha ideia de cultura da não covardia se deve muito em achar extremamente valido, que todos nós, não busquemos justificar a covardia, pois ela é o monstro que se volta contra todos se acharmos que ela pode ser uma fera controlada e útil no momento de castigar e condenar os que são considerados errados, onde os fins justificariam os meios.
      Voltando ao caso da agricultora, dentro deste contexto de não justificar covardia ela se declararia culpada e seria considerada por todos culpada, como forma de condenar o ato covarde que se manifestou, mesmo que num momento de desespero. Cabendo ao tribunal arbitrar uma pena para aquela situação, existiu a covardia mas existiram também claros atenuantes que reduziriam em muito a pena a ser aplicada. É o que eu considero justo e logico dentro de um contexto de cultura da não covardia e estaríamos desta forma, fugindo de considerar, que existe a covardia útil, o que no meu entender é a danação do mundo.

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    3. Pelo que me recordo, o entendimento da promotoria e do júri foi que a agricultora não poderia agir de outro modo. Ela viveu uma situação praticamente de legítima defesa. O marido chegou em casa com o facão numa postura ameaçadora, nervoso, e com possibilidade até de matá-la. Sendo mulher, ela perderia num confronto. A solução encontrada instintivamente foi meter a enxada no crânio dele. Sendo assim, aplica-se ao seu caso uma das excludentes de ilicitude prevista no Código Penal. A meu ver, ela nem deveria ter ido a júri ou mesmo sofrido a ação penal, o que foi uma injustiça.

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    4. Mas num contexto de "não covardia", o que não seria o caso de nossa violenta sociedade, as pessoas não precisariam buscar soluções deste tipo.

      Há que se ponderar também se, mesmo vivendo numa sociedade covarde, a pessoa não poderia optar por sofrer silenciosamente as injustiças. Porém, acho que esse peso não pode jamais ser imposto. A legítima defesa será sempre um direito e, dependendo da situação em que o sujeito vive, tendo responsabilidades com a vida, passa a ser até um dever ético defender-se da agressão.

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