É muito gostoso fazer a leitura dos evangelhos conforme o ponto de vista do seu autor, procurando entender qual o recado espiritual que o texto quis transmitir para os seus destinatários. Por isso, uma das melhores maneiras de se fazer a leitura bíblica diária sequencial é mergulhando no que está escrito na perícope analisada, comparando com o que vem antes e com o que vem depois no mesmo livro.
Dando prosseguimento ao saboroso estudo do Evangelho de Lucas, ainda no capítulo 4, eis que, tendo Jesus sobrevivido ao conflituoso sábado em sua cidade de criação (ver o último artigo
Jesus e o Shabat sem Shalom de Nazaré), o autor nos mostra um segundo cenário com características totalmente opostas em Cafarnaum e que também ocorrerá no mesmo dia da semana. Ali, o Mestre entra para ministrar numa sinagoga, o seu ensino é bem recebido pelos ouvintes, os espíritos maus não resistem ao poder divino que estava sobre ele e, com o pôr do sol (término do
Shabat), Jesus atende as multidões operando curas e milagres pela imposição de mãos (versículo 40).
Contrapondo-se ao comportamento rançoso dos nazarenos, os habitantes de Cafarnaum reconheceram a autoridade do Mestre e não o viam apenas como "o filho de José". Talvez a maioria dos presentes nem deve ter conhecido seu pai ou, pelo menos, não tinham uma relação de intimidade tão próxima com sua família a ponto de não atentarem para o poder de suas palavras. Pode-se dizer que, enquanto o livro de Mateus fala da autoridade do ensino de Jesus numa comparação com os escribas (Mt 7:28-29), considerados os teólogos da época, o mesmo não se aplica a este trecho de Lucas, onde o capítulo 4 faz um paralelo entre os comportamentos das pessoas em duas cidades distintas da Galileia.
É de se notar logo no começo do ministério do Salvador a sua atividade de taumaturgia que seria a capacidade parapsíquica de realização de milagres que deve ser dada por Deus. Na sinagoga, um homem possesso de espírito demoníaco parece ter tentado interromper a pregação do Mestre, afirmando ser Jesus "o Santo de Deus" (v. 34). Aquela influência maligna é então repreendida e afastada. Na casa de Simão Pedro, a sogra deste encontrava-se gravemente enferma e sua febre é repreendida vindo em seguida a cura (vv. 38 e 39).
Com base nesses acontecimentos, podemos dizer que fazem parte do anúncio do Evangelho de Cristo os trabalhos de cura e de libertação espiritual. Hoje em dia, muita gente com mentalidade agnóstica ignora a realização de milagres e já nem ora mais diante de doenças. Por outro lado, há muitos falsos pregadores por aí que buscam tirar proveito errado dos eventos "sobrenaturais" a ponto de não focarem no principal anúncio das boas novas que é o
Reino de Deus.
Inegavelmente que tanto a cura de doenças quanto a libertação do assédio espiritual integram o Reino. Para que a vontade divina governe as nossas vidas e as comunidades das quais pertencemos, o mal não pode ter suas fortalezas instaladas. Promover a saúde compõe a nossa luta por um mundo melhor. Seja orando, prevenindo o desenvolvimento de enfermidades pelo cultivo de novos hábitos, ou reivindicando hospitais públicos decentes, tudo isso tem a ver com a proclamação do Evangelho nos quatro cantos do mundo.
Em relação ao mundo espiritual, não podemos jamais esquecer que a fisicalidade conhecida encontra-se dentro de uma realidade maior e que esta nem sempre é visível aos olhos humanos. Há espíritos que fazem o bem a exemplo dos anjos de Deus mencionados na Bíblia. Porém, também existem energias más incidentes sobre o comportamento da humanidade. Isto é, tratam-se de consciências opostas aos valores do Reino, as quais, não tendo um corpo físico, assediam as mentes mais vulneráveis a elas aproveitando-se as brechas abertas pelo pecado ou pelo envolvimento de forma errada da pessoa com o mundo espiritual, o que também seria ato pecaminoso.
Curioso que dois eventos narrados no texto do Evangelho ocorrem em dia de sábado, mas, nesse capítulo de Lucas, não são alvos de questionamento por ninguém como se Jesus tivesse violado o quarto mandamento. Talvez por terem sido socorros emergenciais, sem caracterizarem um atendimento rotineiro habitual. E o texto deixa implícito a maneira equilibrada como o Mestre reverenciava o
Shabat, cumprindo a legislação mosaica. Pois, em momento algum, ele não descuidou da doença da sogra do seu discípulo, num reconhecimento evidente de que a valorização da vida vem em primeiro lugar. Contudo, aguardou para prestar os outros atendimentos quando o sol se pôs (na época bíblica o dia terminava com o fim da tarde e não à meia noite).
Creio que o
Shabat deve ser encarado como um momento agradável de gratidão e de adoração a Deus. É o momento de curtirmos a vida deixando de lado as preocupações do cotidiano, celebrarmos a nossa existência, elevarmos o pensamento para coisas elevadas e descansarmos de todo o trabalho penoso da semana. Até as atividades de lazer que fazemos eu diria que devem estar de acordo com esse dia sagrado sem que o entretenimento acabe virando algo estressante. Também a espiritualidade não pode ser encarada como rotina religiosa de maneira que o nosso culto sabático precisa correr de forma tranquila evitando as petições acerca dos problemas enfrentados. Afinal, Deus está cuidando de tudo e só vale a pena orar excepcionalmente por alguma coisa em se tratando de assunto urgente.
A descrição do final daquele "dia perfeito" em Cafarnaum é mais um motivo de contrate com os nazarenos quando estes expulsaram Jesus da cidade (vv. 29 e 30). Diz o texto que as multidões insistiram para que o Mestre não as deixasse. O Salvador, porém, estando consciente da missão divina que precisava cumprir, apresentou transparentemente a sua justificativa e partiu para pregar nas sinagogas da região vizinha da Judeia.
OBS: A imagem usada acima refere-se às ruínas de uma antiga sinagoga em Cafarnaum. Extraí a foto do acervo virtual da Wikipédia sendo sua autoria creditada ao internauta alemão
Berthold Werner, com data de 06/11/2008, conforme consta em
http://en.wikipedia.org/wiki/File:Kafarnaum_BW_7.JPG
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