Continuando meus escritos sequenciais sobre o Evangelho de Lucas, chego então a um texto super comentado dentro das igrejas que é a cura de um paralítico em Cafarnaum (Lc 5:17-26).
Geralmente o que mais entusiasma os pregadores e os ouvintes é a fé demonstrada na cura do homem portador de uma deficiência crônica. Tanto por ele quanto pelos que o carregavam em seu leito. Pois, tendo procurado por Jesus, que estava num ambiente fechado ensinando, e não conseguindo aproximação do Mestre por causa da multidão de pessoas ocupando o espaço, eles ousaram introduzir o paralítico por cima do telhado:
"E, não achando por onde introduzi-lo por causa da multidão, subindo ao eirado, o desceram no leito, por entre os ladrilhos, para o meio, diante de Jesus. Vendo-lhes a fé, Jesus disse ao paralítico: Homem, estão perdoados os teus pecados." (vv. 19-20; ARA)
Aquele poderia ter sido um dia tranquilo na vida de Jesus se ele curasse o paralítico sem levantar uma polêmica com os fariseus e com os teólogos ali presentes, a quem o texto chama de "mestres da Lei". Porém, a missão do nosso Senhor e Salvador exigia que ele contrariasse os homens de sua geração cumprindo a vontade do Pai tal como fizeram corajosamente os profetas antes dele. Com isso, a declaração de que os pecados do paralítico estavam perdoados foi compreendida como blasfematória porque segundo o texto, aqueles religiosos julgadores entendiam que somente Deus pode conceder perdão (v. 21).
Não sabemos sobre o que Jesus estava ensinando naquela casa antes do paralítico chegar porque a narrativa não menciona. Porém, dá para percebermos que o Mestre não estava ali somente para ministrar curas físicas mas também transmitir conhecimento de elevação espiritual e aproveitou aquela incrível oportunidade com a mesma quantidade de ousadia dos que transportaram o homem pelo telhado.
Percebendo o descontentamento dos fariseus dali, Jesus tocou na questão do relacionamento entre o perdão e a cura, algo que é polêmico até no meio dos cristãos deste nosso século XXI:
"Jesus, porém, conhecendo-lhes os pensamentos, disse-lhes: Que arrazoais em vosso coração? Qual é mais fácil dizer: Estão perdoados os teus pecados ou: Levanta-te e anda? Mas, para que saibais que o Filho do Homem tem sobre a terra autoridade para perdoar pecados - disse ao paralítico: Eu te ordeno: Levanta-te, toma o teu leito e vai para a casa." (vv. 22-24)
Tendo elaborado uma visão de mundo baseada nas leis de causa e efeito, certamente aqueles fariseus entendiam as doenças como consequências do pecado. E de fato tal relação existe porque há enfermidades psicossomáticas provocadas pelo nosso comportamento, mas, se for aplicada a todos os casos, pode gerar terríveis preconceitos no convívio social decorrente de uma má generalização.
É provável que o paralítico deva ter passado uma boa parte dos seus anos ouvindo as pessoas lhe dizerem que estava daquele jeito por causa de algum pecado. O texto não fala se o homem nasceu sem poder andar ou se veio a perder a capacidade de locomoção por algum acidente ou doença. Contudo, não duvido que alguém viesse lhe dizer ignorâncias como estas: "Olha, você está expiando males cometidos nesta vida, ou nas encarnações passadas, ou pagando pelos erros de seus pais".
Que ideia restrita da vida aquela gente tinha! Aliás, não diria que apenas os fariseus e os teólogos de dois milênios atrás teriam pensado assim. Aqui no Brasil, tem muitos cristãos que enxergam as coisas com graus semelhantes de miopia espiritual, quando fixam uma lei moral de causa e efeito, desprezando a insuperável bondade divina. Vejo, por exemplo, espíritas querendo estabelecer relações cármicas para tudo que vêem, mas também tem católicos e evangélicos intencionando substituir a gratuidade sanadora do Criador, que é oferecida à humanidade sem preço, por barganhas meritórias inaceitáveis.
Ao dizer "os teus pecados estão perdoados", Jesus rompeu com todos esses raciocínio falaciosos de uma teologia de causa e efeito. Tais palavras aliviam o fardo pesado de culpas que inúmeras pessoas ainda carregam desde os tempos de infância, como se estivessem destinadas a pagar pelos seus problemas. Por isso, a afirmativa de Jesus produz aceitação, inclusão, libertação, cura psíquica bem como o fim dos preconceitos.
Um dos princípios que podemos extrair sem medo desse excelente aprendizado bíblico é que o Criador bendito já está reconciliado com a humanidade inteira. Ninguém deve nada a Deus e nunca esteve em falta. As atitudes más podem desagradar o coração do Pai, mas não existe, no céu, qualquer anotação de dívida contra nós.
Como consequência dessa nova visão da existência, devemos compreender que viemos aqui para sermos felizes. Ninguém nasceu destinado ao sofrimento ou a qualquer tipo de inferno e, por mais atribulada que tenha sido a história de uma pessoa, ela é convidada para encarar os problemas como provas normais da experiência terrestre a serem superadas. Logo, temos que tomar a consciência de que não estamos expiando pecado nenhum!
Certamente a lei da semeadura que diz "o homem colhe aquilo que planta" é compatibilizada com o perdão divino incondicional. Os resultados produzidos pela ação e reação dentro da realidade devem ser encarados debaixo do manto da graça para alcançarmos o equilíbrio confiadamente. Até porque ainda vamos cometer erros, desejando-os ou não, os quais poderão ser muitos. Em cada tentativa de acertarmos o alvo, nem sempre nos desviamos dos equívocos de modo que só aprenderemos mesmo a caminhar pela graciosa pedagogia do perdão. Do contrário, como evoluiremos alimentando terríveis culpas?
O milagre operado por Jesus foi acompanhado pela admiração de todos (v. 26). Os questionamentos cessaram naquela ocasião feliz e, ao que parece, até os fariseus presentes foram tomados por igual sentimento, o que não significa ter havido compreensão total da mensagem do Mestre.
Fazendo uma análise maior de Lucas, acredito que a inserção do episódio da cura do paralítico de Cafarnaum entre a purificação de um leproso (vv. 15-16) e a vocação do publicano Levi (27-28), não foi por acaso. O autor sagrado certamente teve um propósito específico ali já que nenhum dos evangelhos segue uma cronologia exata sobre Jesus porque não foram escritos para serem biografias históricas. E aí, depois de promover a inclusão social do leproso e de curar o paralítico perdoando os pecados deste, o próximo passo do Mestre será a escandalosa aceitação dos que eram considerados a escória moral de Israel - os cobradores de impostos. Se os pecados estão perdoados por Deus, Jesus estende a sua amizade regeneradora para todos sem restrições quanto aos atos passados ou a condição de cada um. Os que coletavam tributos para Roma, como já tinham sido orientados por João Batista para não cobrarem "além do que o estipulado" (3:12-13), vão participar de um banquete com o Mestre na casa de Mateus (5:29-32), gerando maiores perplexidades entre os religiosos de plantão.
Que venhamos a seguir as mesmas pisadas de Jesus! Milagres físicos nem sempre ocorrerão e, nos evangelhos, aparecem mais como sinais com um significado de ensino superior aos fatos apresentados. Porém, sempre teremos a possibilidade de buscar a cura dos hediondos preconceitos morais, incluindo no Reino todos os seres humanos e formando uma comunidade melhor. Esta sim é a transformação que Deus espera de nós. Algo que depende mesmo da gente.
OBS: A ilustração acima refere-se ao quadro do pintor prussiano Bernhard Rode (1725-1797), retratando a cura do paralítico feita por Jesus. A obra é de 1780 e foi extraída do acervo virtual da Wikipédia em http://en.wikipedia.org/wiki/File:Rode_1.jpg
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