A passagem bíblica que fala sobre o retorno conflituoso de Jesus a Nazaré é algo que causa alguns incômodos ao leitor fazendo com que muitos evite refletir acerca de alguns detalhes encontrados no texto.
No Evangelho de Lucas, sem seguir uma cronologia rígida, Nazaré é propositalmente colocada como o primeiro relato de visitação a povoados feita por Jesus no exercício de seu ministério (4:16-30), muito embora dois versículos anteriores informem ter o Mestre percorrido outras localidades da região da Galileia (versos 14 e 15). Retornando à cidade onde fora criado por seus pais, Jesus participa de um Shabat na sinagoga onde é convidado para fazer uma leitura pública.
Quando se reúnem aos sábados nas sinagogas, os judeus fazem a costumeira leitura de uma determinada porção semanal da Torá (do Pentateuco que são os cinco livros de Moisés), chamada de Parashá haShavuá, a qual é posteriormente complementada por um trecho dos textos Neviim ou Profetas. E este costume, chamado de haftorá, talvez tivesse uma origem anterior à época de Jesus. Quem prestava este serviço, durante o culto sinagogal, levantava-se para ler, demonstrando reverência pela Palavra de Deus, e, depois, assentava-se para ministrar sua preleção.
Convidado para colaborar, Jesus cita Isaías 61:1-2 combinado com 58:6, lembrando um método homilético de exegese bíblica conhecido como midrash. E, embora o costume da haftorá pudesse já existir em seu tempo, parece-me que, neste caso, não teria sido o dirigente da congregação quem determinou especificamente qual trecho dos Neviim era para ler. Acho mais provável que Jesus teve uma oportunidade extra de pregar na sinagoga de sua cidade já que, anteriormente, nos é informado que "a sua fama correu por toda a circunvizinhança" (v. 14) e Nazaré faz parte da Galileia. Ou então, ele mesmo resolveu escolher, por si mesmo, quais partes do livro de Isaías compartilharia com o público fugindo conscientemente do habitual.
Tenho a impressão de que, até os trinta anos, Jesus possa ter vivido quase que anonimamente entre seus familiares e vizinhos em Nazaré. Apesar do episódio ocorrido em sua pré-adolescência, quando foi encontrado no Templo entre os doutores, é provável que ele fosse visto como um jovem comum da comunidade. Uma rapaz de bem, honesto, simples, trabalhador e que participava da vida religiosa da aldeia prestando os serviços na sinagoga dentro da normalidade. Em sábados anteriores, Jesus pode até ter sido chamado para colaborar no haftará, mas sem receber um destaque especial. Só que, neste específico shabat, já iniciado o seu ministério, foi diferente.
O trecho bíblico citado por Jesus é inegavelmente revolucionário por falar na evangelização dos pobres, na cura dos cegos e na libertação dos cativos e oprimidos, combinando com a apregoação do "ano aceitável do Senhor". Com aquela leitura, Jesus estava não somente apresentando as características do seu ministério como também convocando os ouvintes para tomarem uma posição ousada juntamente com ele. Daí a conclusão:
"Hoje, se cumpriu a Escritura que acabais de ouvir" (v. 21).
Transmitir as boas novas aos pobres, promover a inclusão dos marginalizados e libertar quem se acha preso a algum condicionamento político-econômico-social são tarefas para fazermos agora. No hoje! Por isso, tal passagem não se restringe ao tempo do profeta Isaías ou à época em que os judeus encontravam-se no cativeiro babilônico (século VI a.C). Tão pouco deveria ser aguardada indefinidamente para o futuro, quando surgisse algum líder esperado, conforme a idealização popular do Messias, e fosse inaugurar uma nova etapa histórica.
Poucos sabem explicar como que o ambiente mudou drasticamente de cordial para hostil naquela sinagoga. Tudo parecia estar bem até então e o versículo 22 dos diz que todos "se maravilhavam das palavras de graça que lhe saíam dos lábios". A narrativa de Lucas não explica suficientemente como que aquele sentimento se transformou numa raiva tão enfurecida em que os moradores de um pequeno vilarejo chegaram a ter o desejo de lançarem o filho de José do alto de um precipício (v. 29).
A hipótese que suponho seria a incompreensão das palavras ditas por Jesus. Os ouvintes, ao invés de prestarem a atenção na sua proposta revolucionária, teriam feito comentários entre si apenas admirando a aptidão intelectual ou espiritual manifestada pelo novo pregador. A indagação "não é este o filho de José?", em Lucas, parece-me que foi mais um elogio do que alguma atitude de pouco caso ou de desprezo por sua pessoa. Só que, ao mesmo tempo em que havia o acolhimento formal inicial, os moradores de Nazaré continuavam ignorando o recado evangelístico ali ministrado.
Conhecendo bem aquele público e não se contentando com os rumos da reunião, Jesus teve a ousadia de contrariar aquelas pessoas, as quais até aí não cessavam de bajulá-lo. Ele não queria que a sua passagem pela aldeia onde fora criado se tornasse mais uma visita do filho que se projetou, como fazem muitos cantores, artistas, jogadores de futebol, autores de livro e políticos quando retornam às suas cidades de origem. E, para que a mensagem anunciada se tornasse uma pregação de efeito, quem sabe não era preciso criar uma situação de conflito?
"Disse-lhes Jesus: Sem dúvida, citar-me -eis este provérbio: Médico, cura-te a ti mesmo; tudo o que ouvimos ter-se dado em Cafarnaum, faze-o também aqui na tua terra. E prosseguiu: De fato, vos afirmo que nenhum profeta é bem recebido na sua própria terra. Na verdade vos digo que muitas viúvas havia em Israel no tempo de Elias, quando o céu se fechou por três anos e seis meses, reinando grande fome sobre a terra; e a nenhuma delas foi Elias enviado, senão a uma viúva de Sarepta de Sidom. Havia também muitos leprosos em Israel nos dias do profeta Eliseu, e nenhum deles foi purificado, senão Naamã, o siro." (Lc 4:23-27; ARA)
Talvez seja difícil um cristão admitir que quem provocou todo aquele sentimento de ira em Nazaré foi o próprio Senhor Jesus. Alguns tentam pela leitura comparativa com Mateus 13:53-58 e Marcos 6:1-6 encontrar explicações mais condizentes com a ideia pacata que construíram do Mestre. Porém, não acho que a resposta deva ser buscada nos outros evangelhos sinóticos e sim no próprio texto de Lucas. Isto porque cada autor parece querer diferenciar-se propositalmente um do outro (ou de uma fonte comum) e apresentar a sua versão afim de dar um sentido próprio à mensagem espiritual comunicada. E, nesta passagem, Lucas afasta-se muito do relato de Marcos, fornecendo detalhes não mencionados pelos outros dois evangelistas.
Ora, sendo então Jesus o causador do conflito, sou levado a escolher entre não concordar com a sua conduta ou procurar entender o porquê de ter gerado tanta contrariedade. Pois, tendo passado boa parte de minha vida em comunidades de pequeno e médio portes, observo que há um comportamento rançoso das pessoas em conviverem o mais superficialmente possível numa nauseante rotina para que as relações permaneçam imexivelmente bem. Por fora o prato de comida posto sobre a mesa parece saboreável, nem nenhum mofo visível, mas só quem prova, ou aproxima o nariz, pode perceber os efeitos da oxidação.
Pois é. Havia algo de podre em Nazaré e Jesus corajosamente botou o dedo na ferida daquela gente. Quem sabe seria o seu desejo que, com a pregação baseada em Isaías, as pessoas dali não começassem a soltar os nós de todo relacionamento opressivo e socialmente exploratório que entre eles houvesse? Não é isto o que muitas das vezes se vê nas pequenas cidades e ninguém tem ousadia para denunciar? Quantos padres e pastores do interior preferem deixar de expor publicamente as coisas escondidas que, durante os encontros dominicais na igreja, todos fingem não existirem? Recordo que, quando morava em Nova Friburgo, um dos maiores pólos de moda íntima do país, conheci apenas um pastor que falou contra os desrespeitos trabalhistas praticados pelos donos de confecções contra as costureiras.
Será que o Evangelho da Libertação jamais chegará nas nossas cidades, aldeias, bairros e igrejas?!
Esta é uma pergunta para cada um procurar responder. Ou melhor, para cada um tentar por em prática no lugar onde vive e lutar pelo estabelecimento da Verdade por mais que ela possa doer e incomodar. Por mais que interesses sejam contrariados e as pessoas sejam confrontadas com o próprio ranço delas.
Aquele foi, sem dúvida, um Shabat sem Shalom na antiga cidade de Nazaré, tendo em vista o tradicional cumprimento judaico que, numa empobrecida tradução, significaria "tenha um sábado de paz". Mas Jesus nos ensinou que não é fingindo estar tudo bem que alcançamos a verdadeira paz. Esta é uma conquista produzida pelo Evangelho e a sua concretização implica na contrariedade de muitos interesses incompatíveis com o Reino de Deus.
OBS: A ilustração acima refere-se a um quadro do pintor escocês David Roberts (1796-1864) que retratou bucolicamente a cidade de Nazaré. Capturei a imagem do acervo virtual da Wikipédia em http://en.wikipedia.org/wiki/File:Nazareth_the_holy_land_1842.jpg
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