"Respondeu-lhe Gideão: Ai, senhor meu! Se o SENHOR é conosco, por que nos sobreveio tudo isto? E que é feito de todas as suas maravilhas que nossos pais nos contaram dizendo: Não nos fez o SENHOR subir do Egito? Porém, agora, o SENHOR nos desamparou e nos entregou nas mãos dos midianitas." (Juízes 6.13; ARA)
Em outras traduções do Texto Massorético, estas mesmas palavras atribuídas a Gideão mostram-se ainda mais rudes do que na versão revista e atualizada de João Ferreira de Almeida:
"e Guidon disse-lhe: 'Por favor, meu senhor, se o Eterno está conosco, por que nos sobreveio tudo isto? Onde estão todos os Seus milagres, que nossos pais nos contaram, dizendo: Não nos fez o Eterno subir do Egito? Pois agora o Eterno nos abandonou e nos deu na mão dos midianitas'" (Sêfer)
"Gedeão lhe respondeu: "Eu te peço, meu Senhor! Se Iahweh está conosco, donde vem tudo quanto nos acontece? Onde estão todos os prodígios que os nossos pais nos contavam dizendo: 'Não nos fez Iahweh subir do Egito?' E agora Iahweh nos abandonou e nos deixou cair sob o poder de Madiã..." (Bíblia de Jerusalém)
Embora o Anjo do SENHOR não responda a Gideão, a resposta parece ter sido dada pelo redator de Juízes nos versos de 7 a 10 do capítulo 6. De acordo com a narrativa bíblica, os israelitas tinham se afastado de Deus e, por consequência da prática de coisas más "aos olhos" do Eterno, passaram a ser subjugados pelos midianitas e outros povos nômades que pareciam viver do saque das nações sedentarizadas.
Dentro do contexto religioso dos povos sedentários do antigo Oriente Próximo, os quais viviam da agropecuária, havia o costume idolátrico de cultuar Baal. Debaixo de árvores consideradas sagradas, como o carvalho onde o Anjo do SENHOR apareceu a Gideão, eram oferecidos sacrifícios para as divindades cananeias na vã expectativa de se obter resultados melhores nas próximas colheitas.
Além disso, a narrativa relata que a opressão dos midianitas, embora tenha durado sete anos, parece ter sido mais dura que as anteriores. Tanto é que, temendo os seus adversários, os israelitas precisavam esconder nas grutas os estoques de alimentos para não serem totalmente roubados pelos adversários. E ninguém ousava tomar uma providência prática, de modo que as tribos de Israel andavam desunidas e cada vez mais se alienando dentro da emburrecida adoração baalista.
Ora, a pior opressão não é aquela que está fora de nós, mas sim dentro. E, neste caso, Gideão foi um homem inconformado com a realidade em que vivia. Ele, sendo pobre e explorado pelos estrangeiros em sua própria terra, demonstrou não gostar muito daquela conversinha mole dos religiosos e foi até capaz de duvidar da aparição sobrenatural do Anjo do SENHOR, considerada como uma teofania por muitos teólogos.
Num interessante paralelo com Moisés, Gideão é convocado para uma missão humanamente impossível. De modo algum ele é censurado por Deus por agir com sua maneira rude de manifestar as suas dúvidas quanto à Divina Providência. E, em todas as vezes que fala com o Eterno, o maior dos juízes de Israel é encorajado a lutar numa guerra santa contra os inimigos do seu povo:
"Então, se virou o SENHOR para ele e disse: Vai nessa tua força e livra Israel da mão dos midianitas; porventura não te enviei eu?" (Jz 6.14; ARA)
Num precioso relacionamento de intimidade entre Gideão e Deus, um coloca o outro a prova. Depois de pedir o sinal do velo e o orvalho, afim de que a sua missão fosse autenticada por um milagre (Jz 6.36-40), Deus então reduz o número do exército de Gideão para atacar o inimigo com tão somente 300 homens (Jz 7.1-8). E o êxito de sua campanha militar ocorre de maneira surpreendente. Depois que Gideão soube do temor infundido no adversário (Jz 7.9-15), os midianitas foram vencidos sem que ocorresse a princípio nenhum combate físico, pelo que foram tomados pelo pânico do Deus de Israel (Jz 7.19-22).
Por mais que um relato sobre guerra santa venha chocar a moral de um leitor do século XXI, não se pode ignorar a essência espiritual que se encontra ali. A Bíblia é um ótimo livro para expor com riqueza de detalhes o comportamento humano, sem nada a esconder sobre as falhas de caráter de seus personagens, mesmo em relação aos líderes de Israel. E, por sua vez, a guerra santa, necessária para a sobrevivência dos povos antigos, torna-se hoje uma ilustração da batalha que travamos dentro de nós mesmos e nos nossos relacionamentos com a sociedade em busca da justiça.
Pode-se dizer que a realização da justiça é algo inseparável do Reino de Deus, a respeito do qual Jesus muito pregou. E o estabelecimento deste Reino se faz tanto através da intervenção milagrosa de Deus como também guarda uma relação com o agir do seu povo aqui na Terra, executando-se através de nós a missão apostólica de anunciar ao mundo as boas novas da graça. Se bem que a vinda dessa nova realidade não vem com aparência exterior e já foi começada há muito tempo (Lucas 17.20-21).
Certamente que, nesta luta sagrada contra o mal, Deus não quer que sejamos covardia. Mesmo dentro do refinamento ético que a evolução dos tempos nos impõe, afim de nos abstermos atualmente de qualquer tipo de derramamento de sangue, é preciso ter a mesma disposição de Gideão para enfrentarmos os problemas pessoais e da coletividade.
Como podemos ler nos capítulos 6, 7 e 8 de Juízes, Gideão evoluiu em relação ao argumento de que a nação de Israel tinha sido abandonada por Deus. Após libertar-se interiormente do ópio da idolatria religiosa, ele partiu para o enfrentamento da realidade e mobilizou a sua comunidade para enfrentar os invasores.
Igualmente, também precisamos da mesma atitude de Gideão. Temos que romper com o viciante conformismo no qual o Brasil hoje se encontra, "deitado eternamente em berço esplêndido". Pois, afinal, conforme está lá em Mateus 11.12, o Reino "é tomado por esforço, e os que se esforçam se apoderam dele" (ARA). Ou, numa versão sem eufemismo, o Reino "é assaltado com violência; são violentos os que o arrebatam" (TEB).
OBS: A ilustração acima refere-se à pintura do artista sacro holandês Maarten van Heemskerck que viveu entre 1498 e outubro 1574. O quadro, pintado por volta de 1550, retrata o personagem bíblico Gideão agradecendo a Deus pelo milagre do orvalho (passagem de Juízes 6.36-40) e se encontra no Museu de Belas Artes de Estrasburgo, localizado na Alsácia francesa. Já a imagem à esquerda cuida-se de um auto-retrato que, originalmente, foi pintado junto com o Coliseu. Maarten van Heemskerck ficou conhecido por suas representações das Sete Maravilhas do Mundo, tendo sido ele filho de uma família de pequenos agricultores em Heemskerk, norte da Holanda.
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ResponderExcluirRodrigão, nós seres humanos sofremos da Síndrome de Avalista", queremos achar alguém que seja responsável por nossas KHDAS!!!
ResponderExcluirÉ mais simples, cômodo e igualmente desonesto jogar a batata quente no colo de alguém do que "rebolar" e assumir a própria responsabilidade sobre a gestão da vida para fazer menos besteira e com isso não ter de amargar as indesejáveis consequências.
Sofremos por questões simples: Pura e mera contingência, passividade como vc relatou no final do texto em encarar os processos de mudança do nosso contexto ou então, por consequência da nossa irresponsabilidade em tratar bem o "dom da vida"!
NADA A VER COM DEUS! COISAS QUE ACONTECEM NA CAMINHADA E QUE DIZEM RESPEITO SOMENTE A NÓS...
OH!!! E esse blog tá de sacanagem comigo, tive que escrever 3 comentários pra conseguir postar 1! rsrsrs
Olá, Franklin!
ResponderExcluirPode ser que você tenha sofrido alguma instabilidade temporária da rede. Independente isto, tenho tido problemas depois que instalei um programa chamado "ASK" e agora não consigo desintalar do meu computador cujo sistema é o Windows Vista e impede a remoção de outros programas. Vou acabar ligando pra área de suporte de Microsoft.
Estou de acordo com os seus comentários sobre a nossa valha mania de querermos culpar alguém.
Recentemente, na comunidade no Facebook de uma igreja batista da qual fui membro, um irmão assim se manifestou:
"De uns tempos pra cá me tornei uma pessoa cética quanto à autoria do Diabo em relação aos meus pecados (e aos dos outros). Não sei por que, mas jah ouvi algumas vezes casos como 'Pow, eu trai a minha esposa... sabe como é, neh, o inimigo fica tentando... ele joga sujo...'"
A desculpa que de foi o diabo quem me levou a fazer isto ou aquilo é explicada pela análise comportamental quando nos deixamos mover por aquilo que o pesquisador norte-americano Julian Rotter chamou de "loc externo".
Segundo ele, o "locus of control" (local de controle) seria a nossa percepção a respeito das causas subjacentes aos eventos existenciais. Assim, o locus of control (loc) seria a plataforma a partir da qual o indivíduo atribui significação de responsabilidade aos fatos ocorridos na vida.
Podemos falar em loc interno quando a pessoa considera a sua inteira responsabilidade pelos efeitos ou consequências dos empreendimentos assumidos, admitindo serem os fatos - sejam esses positivos ou negativos - resultados de suas escolhas feitas. Contudo, o loc torna-se externo quando o indivíduo atribui os resultados dos acontecimentos a fatores ou circunstâncias situados fora ou além de seu poder. Neste caso, a pessoa considera os fatos ocorridos serem o resultado das escolhas feitas por outros indivíduos ou instâncias superiores.
Deste modo, quando alguém põe a culpa no diabo (ou nos outros) pelas escolhas que faz é porque ainda não sabe discernir o quanto existe de condicionamento externo e o quanto existe de autonomia nos comportamentos assumidos, de modo que tal pessoa não consegue evitar polarizações em seus discursos, tendo uma clara tendência à submissão, passividade e esquiva quanto à autorresponsabilidade pelo resultado das ações tomadas. E isto talvez explique por que até hoje os "cultos de libertação" oferecidos por inúmeras "igrejas" vivem lotando...
A verdade é que existem outros escapes semelhante a "botar a culpa no diabo", conforme Gênesis muito bem nos mostra quando Adão culpou Eva e esta a serpente.
Quando falei a respeito do "loc externo", posso incluir aí o comportamento de culparmos os outros, as circunstâncias da vida, uma perda que tivemos no passado, uma doença, um insucesso, o trânsito nas cidades, etc.
A maturidade está em reconhecermos até onde vai este condicionamento externo e até onde eu quiz agir de uma determinada maneira. E, tomando esta consciência, o passo seguinte e partir pra mudança. Agir!
Grande abraço, meu mano!