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terça-feira, 15 de março de 2016

Um conselho de estadista na Bíblia




O livro bíblico de Êxodo conta um relato em que Moisés, quando guiava o povo de Israel pelo deserto da Península do Sinai, recebeu a inesperada visita do seu sogro Jetro. Este, no dia seguinte ao encontro com o genro, observou uma situação nada satisfatória no que diz respeito à administração da Justiça e resolveu dar um sábio conselho sobre liderança até hoje estudado e aplicado nos mais meios diversos da vida religiosa ou secular. Ou seja, teria validade tanto para igrejas, como para empresas, governos, escolas, ONGs, partidos políticos e até nos grupos de discussão das redes sociais. Mas vamos primeiramente ao texto antes de serem feitos alguns comentários:

"No dia seguinte Moisés assentou-se para julgar as questões do povo, e este permaneceu de pé diante dele, desde a manhã até o cair da tarde. Quando o seu sogro viu tudo o que ele estava fazendo pelo povo, disse: 'Que é que você está fazendo? Por que só você se assenta para julgar, e todo este povo o espera de pé, desde a manhã até o cair da tarde?' Moisés lhe respondeu: 'O povo me procura para que eu consulte a Deus. Toda vez que alguém tem uma questão, esta me é trazida, e eu decido entre as partes, e ensino-lhes os decretos e leis de Deus'. Respondeu o sogro de Moisés: 'O que você está fazendo não é bom. Você e o seu povo ficarão esgotados, pois esta tarefa lhe é pesada demais. Você não pode executá-la sozinho. Agora, ouça-me! Eu lhe darei um conselho, e que Deus esteja com você! Seja você o representante do povo diante de Deus e leve a Deus as suas questões. Oriente-os quanto aos decretos e leis, mostrando-lhes como devem viver e o que devem fazer. Mas escolha dentre todo o povo homens capazes, tementes a Deus, dignos de confiança e inimigos de ganho desonesto. Estabeleça-os como chefes de mil, de cem, de cinqüenta e de dez. Eles estarão sempre à disposição do povo para julgar as questões. Trarão a você apenas as questões difíceis; as mais simples decidirão sozinhos. Isso tornará mais leve o seu fardo, porque eles o dividirão com você. Se você assim fizer, e se assim Deus ordenar, você será capaz de suportar as dificuldades, e todo este povo voltará para casa satisfeito'. Moisés aceitou o conselho do sogro e fez tudo como ele tinha sugerido. Escolheu homens capazes de todo o Israel e colocou-os como líderes do povo: chefes de mil, de cem, de cinqüenta e de dez. Estes ficaram como juízes permanentes do povo. As questões difíceis levavam a Moisés; as mais simples, porém, eles mesmos resolviam. Então Moisés e seu sogro se despediram, e este voltou para a sua terra." (Ex 18:13-27; NVI - destaquei)

Certamente que muito podemos aprofundar acerca do chamado "princípio de Jetro". Entretanto, pretendo fazer aqui algumas breves ponderações quanto a esse interessante trecho da Bíblia, sendo certo que o primeiro ponto a nos chamar a atenção diz respeito à necessidade de um chefe formar outros líderes para apoiá-lo na árdua tarefa de desenvolver seu ministério, além de sucede-lo no futuro. 

Ora, a narrativa deixa claro que Moisés não tinha tempo e nem condições de resolver todas as demandas que surgiam no meio de seu povo. Nem tão pouco conseguiria dar orientações a todos. Ainda mais na sua época, muitos séculos antes de Montesquieu, em que as três funções estatais (administração, legislatura e judicatura) podiam se reunir nas mãos de um só líder. Logo, a concentração de tarefas nas costas de uma única pessoa tornava o seu serviço cansativo, moroso e insatisfatório para todos, levando uma nação ao inevitável esgotamento. Era chegado o momento de descentralizar.

É evidente que, com a distribuição do trabalho entre os novos colaboradores e Moisés, ficando este apenas com as questões de maior relevância para serem resolvidas, melhoraria consideravelmente a prestação dos serviços à população. Porém, para isto ser alcançado com  sucesso, tornavam-se fundamentais os investimentos na capacitação de lideranças bem como a seleção ética dos que seriam "dignos de confiança".

Nesse sentido, há que se verificar aí o papel educador do Estado. Jetro diz a Moisés que ele deve ensinar o Direito, sejam aos novos líderes como a todo o povo israelita. Logo, ele deveria investir tempo e recursos para que todos pudessem desenvolver a consciência dos seus direitos e deveres, o que podemos considerar como algo preventivo quanto ao surgimento de novos conflitos no meio social.

Considero que os educadores em geral, quer sejam os pais, professores e líderes religiosos, têm muitas das vezes falhado na transmissão de bons princípios éticos. Lamentavelmente, o ensino escolar tornou-se uma massacrante repetição de conteúdo pronto com poucas oportunidades para o desenvolvimento de atividades extra-classe, as quais nem sempre se voltam para o melhoramento do ser humano como pessoa. Nosso jovem é relativamente informado, embora deixe da escola básica sem aquilo que podemos chamar de formação.

Numa pátria que deveria ser educadora (até hoje nunca foi verdadeiramente para todos), carecemos muito da compreensão desse valoroso princípio legado aos povos pelas Escrituras Sagradas. Mas para não ser tão radical em minha crítica, recordo que, durante um tempo, tentou-se ensinar nos estabelecimentos estudantis brasileiros a matéria de Educação Moral e Cívica (EMC), criada na era Vargas. De acordo com o artigo 2º caput do então Decreto-Lei n.º 2.072, de 8 de março de 1940, tal disciplina tinha por objetivo formar na criança e no jovem uma consciência patriótica. Buscava inspirar no espírito do educando 

"o sentimento de que a cada cidadão cabe uma parcela de responsabilidade pela segurança e pelo engrandecimento da pátria, e de que dever de cada um consagrar-se ao seu serviço com maior esforço e dedicação"

Embora já esteja este blogueiro passando aqui para um outro assunto, o qual, devido à sua enorme relevância para a atualidade, bem merecia uma postagem especificamente voltada para a saudosa EMC, quero somente concluir pela necessidade de formarmos nas crianças e nos jovens esse caráter cidadão, criando antes um curso nacional obrigatório de reciclagem dos professores. E aí eu diria que a educação precisa estar presente em toda a nossa sociedade sem excluir qualquer instituição estatal. Pois agindo assim estaremos formatando um ambiente propício para a transmissão de conhecimentos éticos, dando condições para que também as famílias participarem ativamente desse importantíssimo processo.


OBS: A ilustração acima refere-se à obra Moisés se despede de Jetro, pintado pelo artista holandês Jan Victors (1619 - 1676), com referência ao episódio bíblico de Êxodo 4:18. No quadro, Jetro encontra-se sentado à esquerda, em vermelho. Extraí a imagem do acervo virtual da Wikipédia, conforme consta em https://pt.wikipedia.org/wiki/Jetro#/media/File:Jan_Victors_003.jpg

4 comentários:

  1. O exemplo é bem didático. Descentralização bem feita pode facilitar nossas vidas !

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  2. O exemplo é bem didático. Descentralização bem feita pode facilitar nossas vidas !

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    1. Bom dia, Severo!

      Uma centralização bem feita e com controle hierárquico eficiente mas que dê liberdade ao agente público para trabalhar pode fazer grande diferença.

      Obrigado aí por sua leitura e comentários.

      Abraço.

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  3. Mais importante que a descentralização administrativa seria a educação, sem a qual não há como um líder delegar tarefas aos seus colaboradores já que estes precisam passar por um curso de capacitação tendo a idoneidade moral avaliada.

    É urgente que voltemos a ter nas escolas brasileiras as disciplinas de EMC e OSPB, equivocadamente condenadas pelos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN), estabelecidos pela Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB) de 1996. Os esquerdopatas viram nelas um "caráter negativo de doutrinação", esquecendo-se de que o civismo brasileiro, apesar de estigmatizado como obrigação pelo governo militar, poderia contribuir em muito para a auto-estima do País.

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