Numa época do ano em que os telejornais exibem seguidas reportagens sobre as encenações da morte de Jesus, as quais marcam as tradições católicas da sexta-feira da Paixão, poucos são capazes de questionar a idealização feita do seu sacrifício.
Não é preciso ser teólogo para concluir que o personagem Jesus da Bíblia cometeu foi um obstinado autocídio. Basta alguém ler atentamente os evangelhos canônicos que os próprios textos sagrados mostrarão não só a voluntária entrega do nazareno diante dos soldados quando vieram prendê-lo, como também a sua completa falta de empenho em se defender das acusações imputadas nos julgamentos perante às autoridades e a conduta nada conciliadora que tinha com os líderes do judaísmo. Aliás, o violento episódio da expulsão dos vendilhões do Templo de Jerusalém (Mc 11:15-19; Mt 21:12-17 e Lc 19:45-48; conf. Jo 2:13-16) teria oportunizado a sua condenação por provocar uma preocupante desordem social num momento festivo.
Para a ortodoxia cristã, a escolha extrema de Jesus é revestida de nobreza e compreendida como necessária para que a humanidade alcançasse o perdão dos pecados por meio de uma punição substitutiva. Sua crucificação tornou-se tempos depois um ícone da estratégica proselitista adotada pelo cristianismo nos primeiros séculos da era comum ao enfrentarem o poderio imperial romano. Pessoas de todas as idades, inclusive crianças, foram induzidas pelos líderes eclesiásticos do período a fim de optarem pelo castigo e a morte.
Ocorre que o autocídio pode configurar insensatez e irresponsabilidade sob vários aspectos. A princípio, evidencia uma atitude anti-somática por provocar de modo voluntário uma situação que, consequentemente, violentará o corpo do mártir. Logo, ao lado do relato sobre a crueldade dos algozes, nota-se também no nazareno um certo desprezo por si próprio e pelo mundo a ponto de se entregar a uma auto-aniquilação.
Em seu livro Onde a religião termina?, o teólogo e ex-padre Marcelo da Luz faz críticas ferozes à idealização do fanatismo auto-sacrificatório ao considerar o martírio uma conduta contrária à evolução humana:
"O mártir, consciência lavada cerebralmente, julga dar o salto mortal certeiro à conquista da vida eterna, e despreza as chances de aprendizagem terrestre ainda ao seu alcance. Seu aparente amor à vida divina dissimula o medo do perene castigo e o ódio pela vida material à qual pensa abandonar definitivamente. Os mártires são suicidas religiosos totalmente inconscientes quanto ao caminho da evolução, o itinerário sempreaprendente da consciência ao longo do ciclo multiexistencial."(Foz do Iguaçu: Editares, 2011, pág. 144)
Entretanto, informa o autor em sua obra que, entre os cristãos considerados "gnósticos", havia "vários críticos à estratégia martiriológica", os quais possuíam "uma visão diferente do sacrifício de Cristo". Para estes, o sofrimento do salvador teria sido "apenas aparente", mas foram rejeitados pela ortodoxia religiosa que passou a acusá-los de heresias e excomungá-los.
Passado o período das perseguições religiosas ao cristianismo, o modelo máximo de devoção e de santidade idealizada no auto-sacrifício foi mantido pela ascese, incluindo as práticas de penitências, privações e diversas formas de masoquismo. Até hoje, nas tradicionais processões sobre a crucificação de Jesus, muitos cristãos chegam a se auto-flagelar. Nesta sexta-feira mesmo, assisti na TV o depoimento de um homem que afirmou ter caminhado descalço pelas ruas junto com a multidão de devotos em sua cidade.
Refletindo acerca disso, devo admitir que o cristianismo, apesar de sua bonita mensagem de amor ao próximo, trouxe ao mundo terríveis males ao alimentar o fanatismo bem como danosos sentimentos de auto-imolação ao invés de promover a cura contra esses transtornos psíquicos. Toda a idealização que se faz do martírio tem bloqueado até o momento o crescimento pessoal dos seguidores da religião, de modo que a libertação de tais imaturidades poderia muito bem significar a Páscoa que muitos em nossa sociedade tanto precisam para evoluir conscientemente.
Um bom feriado a todos!
OBS: A ilustração acima refere-se ao quadro A Crucificação (1622) do artista francês Simon Vouet (1590 - 1649), conforme extraído do acervo virtual da Wikipédia, sendo que o artigo foi originalmente postado nesta data no blogue da Confraria Teológica Logos e Mythos.
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