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sexta-feira, 30 de março de 2018

A ideia de alguém que morreu por nós



Por mais que a humanidade tenda a passos lento para um agnosticismo, o que se revela primeiramente nas atitudes e depois nas confissões da (des)crença, acredito que o arquétipo de Jesus Cristo irá se perpetuar por muitas gerações dentro da nossa cultura. 

Estava por esses dias lendo o artigo A "inutilidade" da Cruz, escrito por Hermes C. Fernandes, bispo da Igreja REINA (Rede Internacional de Amigos), o qual considero hoje um dos mais expressivos nomes da Teologia da Libertação no protestantismo brasileiro.  Em seu brilhante texto, o autor faz uma interessante reflexão sobre "qual teria sido a necessidade da morte vicária de Cristo" já que a ideia do perdão divino tornaria dispensável qualquer sacrifício, inclusive o de Jesus:

"Geralmente, acredita-se que a morte de Cristo tenha sido um pagamento feito a Deus. Ficamos quites com Ele mediante a oferta da vida de Seu próprio Filho. Passa-se a impressão de um Deus relutante em nos oferecer perdão. Não é de se admirar que os cristãos tenham tanta dificuldade em perdoar. Ninguém aceita ficar no prejuízo. A gente até perdoa, mas desde que alguém se disponha a reparar o dano. Sinceramente, prefiro acreditar que haja um grande mal entendido. Não era Deus que precisava da cruz para poder nos perdoar. Éramos nós que precisávamos de algo que nos revelasse a gravidade de nossos pecados, a fim de que atribuíssemos o devido valor à Sua graça." (destaquei)

Concordo com essa visão do Hermes, a qual pode muito bem ser compreendida por agnósticos, ateus e pessoas de outras religiões diversas do cristianismo. Pois mesmo os que não dão crédito à historicidade das tradições eclesiásticas, a ideia da morte sacrificial e substitutiva de alguém existe ainda que sendo um relato mítico que não teria surgido por acaso. Ou seja, em tal hipótese haveria uma necessidade mesmo que psicológica para a elaboração daquilo que seria apenas uma "lenda".

Não entro nesse debate sobre a historicidade do cristianismo porque considero uma interminável discussão inútil acerca da prova de supostos fatos de uma distante época. Prefiro ir direto ao que interessa que é a exposição de uma morte torturante pela religião para o ser humano conscientizar-se das consequências sobre suas más ações ou omissões.

Longe de querer compactuar com qualquer antissemitismo, penso que não dá para analisar a morte de Jesus sem levarmos em conta os comportamentos da anônima multidão que estava em Jerusalém para a festa da Páscoa bem como dos próprios discípulos dele. Muitos fugiram diante da prisão do Mestre e outros concordaram com a sua estúpida crucificação, preferindo a soltura do revoltoso Barrabás.

Todavia, Jesus em sua morte a ninguém culpou ou amaldiçoou. Sua atitude diante dos que dele zombavam e/ou torturavam foi justamente no sentido de liberar um gratuito perdão. Toda a violência sofrida foi então compreendida porque os algozes não sabiam o que estavam fazendo de modo que a conduta mansa da vítima ali expressa um puríssimo amor capaz de constranger qualquer ser humano a se envergonhar de seu orgulho, de sua maliciosidade, de sua indiferença, do seu ódio, de sua luxuriante vida superficial, de sua ganância, de seus furtos, de seus homicídios, dentre outros erros mais. E aí volto ao artigo em comento no qual o autor vê mais um motivo para que a cruz se tornasse necessária no caminho da humanidade:

"Na cruz, dois dos principais atributos divinos que correm paralelos convergem e se cruzam. A justiça e o amor se harmonizam. Apesar de jamais ter havido qualquer atrito entre eles, era necessário que percebêssemos através de um gesto radical o alto custo para mantê-los devidamente afinados. A haste horizontal da cruz bem que poderia representar a justiça. Ela não poderia pender nem para a esquerda, nem para a direita, mas manter o equilíbrio (equidade). A haste vertical representaria o amor. Ele que dá sustentação à justiça. Ele é a base que se ergue entre o céu e a terra. É sobre o amor que a justiça está estabelecida. Sem a haste vertical fincada no chão da existência, a haste horizontal não se elevaria. O lugar de encaixe entre as duas hastes se chama graça. Ela é o árbitro que anuncia a vitória da misericórdia sobre o juízo. Deus jamais poderia ser acusado de agir com impunidade ou conivência. Sua justiça segue imaculada. Nossos pecados foram perdoados. Porém, o prejuízo que eles causaram custou Sua própria vida. Não há perdão sem cruz! Cada vez que perdoamos a alguém, experimentamos a crucificação do nosso ego. Arcamos com o prejuízo. Liberamos o outro da obrigação de se retratar." (o destaque em negrito é meu)

Creio que um dos reflexos da cruz é justamente percebermos quais os prejuízos que os nossos erros são capazes de causar. Pois, em maior ou menor grau, inocentes continuam a sofrer pelos males que cometemos. Daí se há fome e guerras matando no mundo é porque a humanidade permanece inerte aos acontecimentos permitindo que uma parcela minoritária da mesma seja a causa dos conflitos. Se estão devastando o planeta, nós ainda podemos ser os consumidores do produto da destruição. E, se a violência  gerada pelo tráfico de entorpecentes nas favelas brasileiras tem ceifado vidas, quem usa drogas ou fornece armas para esses bandidos é também parte do problema.

Por outro lado, a mensagem da cruz não foi escrita para nos culparmos e sim para que tenhamos a consciência de como temos andado e possamos em paz buscar a correção dessas rotas. Ela é simbólica e assume um caráter principiológico a ser seguido nos mais diversos aspectos, inclusive no exercício do perdão ao outro como bem desenvolveu o autor.

Sei que a aplicabilidade de tudo isso requer longas e sucessivas discussões que, neste caso, considero bem mais úteis do que debater sobre a historicidade das tradições cristãs acerca de Jesus. Pois já que a Páscoa e outros dias sagrados são celebrados nos países ocidentais, precisamos oportunizar cada um desses momentos para que a cultura religiosa enfim contribua em benefício do aprendizado humano dentro do nosso processo coletivo de evolução.

Ótimo feriado a todos!

OBS: A ilustração acima refere-se ao quadro Descendo da cruz, pintado pelo artista flamengo Peter Paul Rubens (1577 – 1640) da época do Barroco, conforme extraído do acervo virtual da Wikipédia com créditos em relação á foto atribuídos a Remi Jouan (2007), segundo consta em https://en.wikipedia.org/wiki/Crucifixion_of_Jesus#/media/File:La_descente_de_croix_Rubens.jpg 

Um comentário:

  1. Essa história de que Cristo foi crucificado, hoje eu não acredito. Por mais que a religião pregue isso, não entra na minha cabeça.

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