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quinta-feira, 15 de agosto de 2013

Não deixe que fechem as portas do Reino para você!



Nos versos de 37 a 52 do capítulo 11 de Lucas, Jesus repreendeu duramente os fariseus e os intérpretes da Lei pelo comportamento hipócrita que tinham, assemelhando-se ao solista que, no teatro grego, representava por trás de uma máscara. As palavras do Senhor são tão duras que alguns estudiosos supõem não terem sido realmente ditas por um judeu. No entanto, como o objetivo destes meus estudos é compreender o texto do Evangelho e não determinar o Cristo histórico, prefiro focar no ensino que nos é transmitido pelo autor bíblico e trazer a aplicação da essência desse aprendizado para o nosso tempo.

A censura aos fariseus, numa leitura atual, não pode ser tomada como um anti-judaísmo mas sim como uma crítica à hipocrisia religiosa em geral presente em todas as tradições culturais do planeta. O cristianismo não tem como fugir desta análise devendo ser notado que muitas das vezes o comportamento "farisaico" muda apenas de estilo. Nem que seja através da falsa humildade ou de um fingido amor aos pobres como inúmeras vezes já ocorreu na bimilenar trajetória eclesiástica. Aliás, qualquer coisa que façamos pode tornar-se semelhantemente teatral, caso falte com a sinceridade no íntimo.

Por outro lado, os cristãos devem ter cautela quando se lembrarem dos fariseus para não cometerem injustiça histórica com o povo judeu julgando pela ignorância. Nos tempos de Jesus, os perushim eram homens de respeitável reputação dentro da sociedade judaica. De modo algum podemos cometer o engano de pensar que todos eles vivessem apenas de aparências, pois, de fato, eram zelosos na guarda dos mandamentos da Torá, preservando com dedicação a correta ortodoxia das Escrituras hebraicas. Davam esmolas, jejuavam várias vezes ao ano (pela lei mosaica o jejum só era obrigatório no dia do Yom Kippur de Levítico 16), oravam com frequência durante o dia, dizimavam até nas pequenas coisas, transavam somente com suas esposas e não cometiam crime algum que pudesse ser julgado pelos homens. Há quem diga que José, esposo de Maria, teria sido um fariseu e, embora a Bíblia nada diga a este respeito, não descarto a tese. No próprio Sermão da Montanha, Jesus chegou a dizer para os seus ouvintes que, se a justiça deles não excedesse em muito aos escribas e fariseus, jamais entrariam no reino dos céus (Mateus 5:20).

Lendo o texto do Evangelho de Lucas, tenho a impressão de que Jesus recusou-se a lavar suas mãos antes de comer com o fariseu porque teria pretendido polemizar para dizer certas coisas às pessoas radicais daquele grupo religioso que se opunham à ressocialização do pecador. A questão aqui nada tem a ver com a higiene pessoal e sim com a observância de regras cerimoniais ou religiosas. Limpava-se as mãos por causa da preocupação com contatos com coisas ritualmente profanadoras. Temia-se pela contaminação espiritual do alimento a ser ingerido.

Pela sua recusa proposital em não lavar as mãos, Jesus estava iniciando o seu recado aos religiosos de seu tempo e também aos de hoje. A crítica consiste em atacar a incoerência de alguém zelar rigorosamente pela prática de atos externos sem cuidar do seu interior. Ou seja, do coração onde brotam as motivações boas e más do homem. Do contrário, seria o mesmo que limpar a parte de fora de um recipiente (versos 39 e 40).

Por este motivo, o Senhor recomendou aos fariseus que dessem coisas interiores como esmolas (verso 41). De nada adiantava contabilizarem até o dízimo das coisas mínimas, como as ervas e as hortaliças no nosso quintal, se estavam desprezando "a justiça e o amor de Deus" (v. 42). Se, por exemplo, excluíam do convívio deles pessoas que não se ajustavam aos seus padrões de moralismo, como vimos em Lc 5:29-31 (ler o artigo Venha para  banquete da graça na casa de Levi!), estavam faltando com o exercício da misericórdia para com o próximo.

Os ataques de Jesus não param aí. Ele condena os gostos dos fariseus pelos lugares de honra nas sinagogas (leia-se hoje as igrejas), pela estima nos locais de convívio da comunidade por serem considerados homens íntegros (v. 43) e chega a chamá-los de "sepulcros invisíveis" (v. 44), capazes de contaminar as pessoas sem elas saberem que estão tocando num caixão com um cadáver dentro. Ou seja, os religiosos tinham se tornado fontes ocultas de corrupção espiritual porque aparentavam ser boa gente mas, no fundo, estariam afastando os seus prosélitos de experimentarem Deus.

Confesso que, olhando para muitos acontecimentos de hoje, inclusive na própria Igreja, chego à conclusão de que o mesmo continua ocorrendo no cristianismo. Pessoas buscam o apoio e a orientação de um religioso que confiam, mas acabam sendo induzidas a serem como muitos deles, vivendo na mais absoluta falsidade. Viram uma casa "varrida e ornamentada" que é também vazia (versos 24 a 26). Assim, como tratei no penúltimo estudo sobre Lucas,  não seria o estado posterior pior do que o primeiro? Logo, tomemos cuidado com muitos padres, pastores e mestres que andam por aí...

Alguns manuscritos sobre o versículo 44 acrescentam que Jesus possa ter se referido aí aos escribas juntamente com os fariseus. Por isto, um dos intérpretes da Lei ter reclamado da ofensa ao seu grupo (v. 45). A ele o Senhor responde criticando os teólogos de sua época por estabelecerem inúmeros regulamentos que acabaram virando uma carga pesada para o seguidor da religião. Isto é, as orientações deles não serviam para auxiliar no cumprimento dos mandamentos como uma instrução sugestiva de conduta, mas estariam sufocando a espiritualidade das pessoas.

Trazendo o ensino de Jesus para a realidade eclesiástica de agora, vejo o quanto certas doutrinas acabam sendo prejudiciais para o ser humano. Até hoje existem pastores radicais que parecem querer proibir o cristão de ir numa praia apresentando como justificativa o contato ocular com a nudez quase total dos corpos das mulheres. Com isto, não somente privam famílias inteiras de um lazer sadio junto à natureza como dificultam mais ainda o indivíduo a lidar com sua sexualidade. Falam como se Deus não tivesse criado a orla marítima e os demais lugares usados por nós para balneário tipo os lagos, poços e cachoeiras dos rios.

Dei o exemplo das praias mas existem inúmeras outras coisas que precisam ser repensadas. Entendo que, se um sujeito sofre de distúrbios que impossibilitam o seu convívio normal num espaço coletivo para banho, a ponto de desejar incontrolavelmente estuprar as mulheres no local, o mal encontra-se nele e não nos outros. Não pode toda a congregação ser penalizada com privações absurdas que, talvez, aplique-se somente ao pastor, a ponto das pessoas terem que se abster de um lazer prazeroso que é benéfico para a saúde.  Aliás, quando se diz que tomar banho de ar em Copacabana é pecado equivale a cultivar nas pessoas o próprio problema da cobiça ao invés de tratá-lo para todos poderem desfrutar de um convívio melhor.

Prosseguindo, Jesus passa a ver a honraria na edificação dos túmulos dos antigos profetas, feita pelos religiosos de sua época, como uma cumplicidade nos assassinatos de tais mártires cometidos pelas gerações anteriores (versículos 47 a 51). Se seus opositores continuavam matando e perseguindo os homens justos do momento (já estavam maliciosamente tramando para acusá-lo como se lê nos versos 53 e 54),  por se sentirem incomodados com as pregações que os denunciavam, tornavam-se, então, culpados do mesmo modo que seus ancestrais ruins.

Ora, passou a fazer parte das tradições da Igreja honrar a Jesus em sua morte, o que sempre é lembrado nos feriados pascais. Como sabemos, a Santa Ceia é um memorial que cumpre este papel. Porém, quando tratamos indignamente o pecador por quem Cristo morreu, perseguindo como hereges os irmãos que buscam integrar as ovelhas perdidas, é como se estivéssemos crucificando o Senhor novamente. Assim, ao olharmos para a cruz, devemos sempre refletir se nossas mãos também não estão martelando aqueles pregos junto com os soldados. Se nossas palavras não estão sendo tão violentas quanto aquela lança que furou seu lado.

Em Cristo somos todos novas criaturas. Um pastor que expulsa alguém da membresia de sua igreja por ser tal pessoa um homossexual está sendo cúmplice da morte injusta de Jesus. Líder nenhum tem esse direito perante Deus ainda que a legislação permita a um grupo religioso selecionar quem o estatuto da seita desejar. Mas digo que, em relação à celebração da Ceia, cabe a cada qual examinar a si mesmo (1Co 11:28), pois, do contrário, nem será considerado como um evento do Senhor.

O último "ai" de Jesus naquele discurso (v. 52), lamentará pelo resultado da conduta hipócrita do religioso quando faz de sua incoerente interpretação o sentido da Lei de Deus. Nem ele e nem os seus prosélitos tornam-se cumpridores porque todos acabam errando. No texto paralelo de Mateus, apresentado não na peregrinação a Jerusalém, mas quando o Mestre já se encontrava na Cidade Sagrada, a redação é dada da seguinte maneira:

"Ai de vós, escribas e fariseus, hipócritas, porque fechais o reino dos céus diante dos homens; pois vós não entrais, nem deixais entrar os que estão entrando" (Mt 23:13)

Assim tenho visto nas igrejas muitas pessoas não entrando na vida. Por causa de líderes legalistas, os frequentadores dessas congregações aprisionadoras perdem a liberdade de ser e de escolher. Tornam-se oprimidas, sobrecarregadas de culpas e controladas por uma reputação religiosa de pseudo-santidade. Deixam de evoluir como pessoa e também de experimentarem Deus na simplicidade e no que há de mais espontâneo. Tudo passa a ser pecado e, para não se "contaminarem com o mundo", não convivem com os outros ao seu redor fechando-se no ambiente da seita.

Que terrível mal-aventurança, não é mesmo?! É lamentável vermos que até o nome de Jesus seja invocado para perpetuar na Igreja os erros dos fariseus daquele tempo. Os hipócritas do cristianismo mudaram somente o estilo pois a essência do odor estragado é a mesma. Por isso, mais do que nunca desejo que as pessoas de boa consciência tenham os olhos abertos para verem o quanto estão sendo enganadas por esses pregadores hipócritas que usam máscaras de bons moços protagonizando o papel de santos mas, por dentro, estão cheios de rapina.

Cuidado! São sepulturas invisíveis!


OBS: A ilustração acima refere-se ao quadro do artista francês James Tissot (1836-1902). Foi extraída do aervo virtual da Wikipédia em http://pt.wikipedia.org/wiki/Ficheiro:Brooklyn_Museum_-_Curses_Against_the_Pharisees_(Impr%C3%A9cations_contre_les_pharisiens)_-_James_Tissot.jpg

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