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domingo, 25 de agosto de 2013

Um começo bem pequenininho...



"E dizia: A que é semelhante o reino de Deus, e a que o compararei? É semelhante a um grão de mostarda que um homem plantou na sua horta; e cresceu e fez-se árvore; e as aves do céu aninharam-se nos seus ramos. Disse mais: A que compararei o reino de Deus? É semelhante ao fermento que uma mulher tomou e escondeu em três medidas de farinha, até ficar tudo levedado" (Palavras de Jesus de Nazaré no Evangelho de Lucas, capítulo 13, versículos de 18 a 21; versão ARA)

É frequente na Bíblia Sagrada o uso da figura de uma árvore, ou de um ramo, para simbolizar o poder real (Dn 4:1-12,19-22; Ez 17:22-23) e o mesmo se pode dizer acerca da referência ao abrigo das aves em tais plantas (Dn 4:12,21; Ez 17:24). A citação do Evangelho feita acima, além de apontar para um autêntico ensino de nosso Senhor, foi uma das mais encorajadoras parábolas para motivar o trabalho da Igreja nos difíceis primeiros séculos quando os cristãos primitivos precisaram enfrentar com fé o poder de Roma.

No entanto, Jesus foi de certo modo inovador ao escolher uma simples mostarda para representar o Reino de Deus. Pois, geralmente, os profetas costumavam falar de oliveiras, figueiras, videiras e cedros, mas, aqui, o Senhor dá relevância à qualidade de uma planta cuja semente sabia-se ser minúscula e tida, no dizer judaico, como o menor volume ou quantidade. Só que, quando cresce, pode vir a se tornar um arbusto de seus três metros a ponto de ser popularmente chamado de "árvore". Tanto é que Simeão ben Halafta, mestre tanaítico que viveu no século II, referiu-se certa vez a uma mostarda que se tornou tão alta quanto um pé de figos (yPeah20b).

A parábola do grão de mostarda se faz presente na tríplice tradição dos sinóticos (conf. com Mc 4:30-32; Mt 13:31-32) e aparece também na sentença de número 20 do gnóstico Evangelho de Tomé. Contudo, no texto original de Marcos, a metáfora dá continuidade ao tema da transformação da semente pela terra (Mc 4:26-29). E, deste modo, não podemos esquecer que a semente de mostarda, assim como o fermento, devem ter surgido como imagens para a caracterização dessa metamorfose do Reino, sendo que o mesmo verifica-se em Mateus, embora o autor do 1º Evangelho faça ali uma menção à parábola do joio e do trigo.

Suponho que Jesus deva ter usado repetidas vezes essas figuras nas suas pregações e aqui o ensino é lembrado no contexto da peregrinação do Mestre a Jerusalém. Era preciso motivar aquela iniciante comunidade de discípulos afim de que os primeiros seguidores se entusiasmassem com a transformação planetária e lutassem pelas necessárias mudanças sociais e espirituais. Era preciso ter fé para não desanimarem, cientes de que o propósito elevado que tinham estava sendo gestado ocultamente. Logo, ainda que não vissem a plena realização do Reino, isto é, não colhessem os resultados do trabalho investido em seus dias, permaneceriam lutando pela causa do Evangelho

Interessante observarmos que Jesus compara o Reino com a semente e com o fermento, mas não com a árvore crescida ou com a massa de pães pronta. Todo o seu potencial encontra-se concentrado naquele grão minúsculo, do tamanho da cabeça de um alfinete. Porém, tal pequenez não se relaciona apenas com o comecinho da história da Igreja e tem a ver também com os gestos singelos de uma autêntica evangelização cotidiana. É trabalhando nas casas, investindo na vida das pessoas humildes e cuidando de quem parece moralmente irrecuperável que a obra de Deus vai sendo realizada com fé. O princípio (origens) torna-se um princípio (norma) para os seguidores de Cristo de todas as eras.

Igualmente relevante parece-me o acolhimento do Reino que, nas duas parábolas, consta como implícito. Não há acepção de aves (leia-se pessoas), as quais podem construir seus ninhos nos ramos da planta. Quanto à conhecida imagem do fermento, em geral empregada para designar corrupção de comportamento e/ou de doutrina (Lc 12:1; 1Co 5:5), conforme o contexto da Páscoa judaica (ler o artigo Cuidado com o "fermento" da hipocrisia), aqui assume uma qualidade curiosamente positiva. Para fazer a revolução de Deus, que é amorosa, deve-se aceitar qualquer tipo de pessoas, curar aos sábados e romper com as falsas ideias de santidade. Assim, pode-se afirmar que o Reino desvincula-se da lógica de "pureza" dos fariseus e religiosos em geral, a qual chega a ser seletiva e perversamente excludente como temos acompanhado nos estudos bíblicos feitos neste blogue acerca do 3º Evangelho.

Vale lembrar que os personagens de cada parábola são pessoas comuns. Não se tratam de rabis ou teólogos! Jesus fala primeiro de um homem do campo que encontra um espaço ma sua horta para semear o grão de mostarda e, depois, menciona uma dona de casa. Com isto, no exemplo do fermento, temos uma versão doméstica do ensino anterior, valorizando, portanto, a participação da mulher na construção do Reino. E a este respeito, muito bem comenta o teólogo italiano Sandro Gallazzi em um de seus livros:

"Um homem e uma mulher são sujeitos operativos deste Reino. Homem e mulher, assim, simplesmente. Nem sacerdotes ou governantes, nem escribas ou mestres: os 'fazedores' do Reino são um homem e uma mulher. Em nenhum momento, uma mulher entrou no imaginário apocalíptico como fazedora do Reino. Tudo que era messiânico sempre foi coisa de homem, só de homem. Na história, pelo contrário, a mão da mulher sempre teve e terá um lugar essencial" (O Evangelho de Mateus - uma leitura a partir dos pequeninos. Comentário Bíblico Latinoamericano. São Paulo: Fonte Editorial, 2012, pág. 268)

Não dá para entender como que, entre católicos romanos e vários grupos evangélicos conservadores, a mulher ainda seja excluída da hierarquia eclesiástica. Mas, se pensarmos bem, a hierarquização não condiz com o propósito Reino assim como podemos falar dos templos e dos palácios. A nova realidade que os verdadeiros discípulos de Jesus devem construir é feita com gente comum e não por clérigos.

Ainda meditando sobre a parábola do fermento, vale a pena repararmos na grande quantidade de farinha que será levedada (verso 20). O texto grego fala de três satas que seriam o equivalente à quantidade usada pela matriarca Sara em Gênesis 18:6, quando Abraão recebeu a visita de três anjos em sua tenda. E três seahs de farinha dão 66 litros. Era massa suficiente para preparar um almoço coletivo numa aldeia. Quem sabe até a celebração de uma grande festa?!

Tendo a manifestação/vivência do Reino como um resultado feliz, nós, servos de Deus e discípulos de Jesus, precisamos caminhar com fé apesar das contradições da História. As duas parábolas devem alimentar a nossa luta diária por um mundo melhor e pela inclusão do ser humano livre de qualquer preconceito. Tal como fora no Shabat estudado na postagem anterior, em que Jesus havia curado uma mulher encurvada na sinagoga por onde andou, proporcionado uma alegre comemoração do acontecimento milagroso (verso 17), o Reino corresponde a um grande banquete comunitário. É uma festa preparada sem acepção: homens, mulheres, crianças, idosos, doentes, presidiários, prostitutas, homossexuais, pobreas, desempregados, trabalhadores sem-terra, negros, brancos, índios, pessoas portadoras de necessidades especiais, etc. Indistintamente, todos poderão sentar-se à mesa e degustar esse pão assado com muito amor e carinho.


OBS: As duas imagens acima tratam-se de gravuras do artista holandês Jan Luyken (1649-1712) utilizada para ilustrar as parábolas do Grão de Mostarda e do Fermento na Bíblia Bowyer. Foi extraída do acervo virtual da Wikipédia em que a autoria da foto é atribuída a Phillip Medhurst oriunda de Harry Kossuth

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