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segunda-feira, 26 de agosto de 2013

A estreita porta da graça

Dando prosseguimento aos nossos estudos sobre o Evangelho de Lucas, chegamos a um dos discursos de Jesus ainda muito mal interpretado e aplicado de maneiras bem perversas. No contexto da caminhada de peregrinação do Senhor a Jerusalém (Lc 9:51-19:44), o autor sagrado expõe uma versão ampliada sobre o ensino da Porta Estreita que aparece também no Sermão da Montanha de Mateus (7:13-14):

"Passava Jesus por cidades e aldeias, ensinando e caminhando para Jerusalém. E alguém lhe perguntou: Senhor, são poucos os que são salvos? Respondeu-lhes: Esforçai-vos por entrar pela porta estreita, pois eu vos digo que muitos procurarão entrar e não poderão. Quando o dono da casa se tiver levantado e fechado a porta, e vós, do lado de fora, começardes a bater, dizendo: Senhor, abre-nos a porta, ele vos responderá: Não sei donde sois. Então, direis: Comíamos e bebíamos na tua presença, e ensinavas em nossas ruas. Mas ele vos dirá: Não sei donde sois; apartai-vos de mim, vós todos os que praticais iniquidades. Ali haverá choro e ranger de dentes, quando virdes, no reino de Deus, Abraão, Isaque, Jacó e todos os profetas, mas vós, lançados fora. Muitos virão do Oriente e do Ocidente, do Norte e do Sul e tomarão lugares à mesa do reino de Deus. Contudo, há últimos que virão a ser primeiros, e primeiros que serão últimos." (Lucas, capítulo 13, versos de 22 a 30; versão ARA)

Infelizmente, ouço muitos pregadores por aí usando esse trecho da Bíblia para oprimir os destinatários de suas mensagens pseudo-evangelísticas. Tentam impor uma moral religiosa castradora e legalista, como se a salvação precisasse ser barganhada pela troca meritória de boas obras praticadas ou de uma vida de privações. Prestam um ótimo trabalho para as elites reprimindo o trabalhador. Porém, é justamente uma perspectiva oposta a tudo isso que percebo em Jesus tendo em vista as características de seu ministério.

Sobre a pergunta formulada, o Mestre não responde diretamente, mas adverte sobre nos esforçarmos para entrar pela "porta estreita". Ele não só diz que muitos ficarão de fora (verso 24), mas também que muitos "tomarão lugares à mesa no reino de Deus" (v. 29). E, de modo algum, podemos pensar que apenas uns poucos estarão dentro da "casa"!

A questão principal, e que é motivo de angústia para aqueles que não têm certeza do amor divino, seria a definição do que vem a ser essa porta estreita. Aí eu digo que a passagem bíblica em comento jamais pode ser lida fora do seu contexto amplo, ignorando os demais ensinos de Jesus sobre a aceitação incondicional dos pecadores e seus atos de misericórdia inclusiva.

Vejo na porta estreita uma instrução que nos leva muito mais além das aparências de uma vida religiosa hipócrita capaz de valorizar os atos exteriores e uma moral social. Quem atravessa tal passagem precisa espremer a si próprio, confrontar o caráter de sua personalidade, converter-se de verdade e cair nas graças do Pai. Deve reconhecer que não possui méritos em si mesmo para ser salvo.

Nas peregrinações para Jerusalém, muitos faziam aquela viagem mais um ritual externo a ser executado e que tinha a ver com a cultura judaica da época do Segundo Templo para a comemoração das festas nacionais e religiosas. Talvez poucos atentassem para o sentido espiritual da visita ao local sagrado. Era fácil alguém cometer o auto-engano de achar que, por ser um descendente de Abraão e celebrar anualmente a Páscoa, estava tudo bem. Porém, em relação a esse pensamento ilusório, João bem alertou as multidões:

"Dizia ele, pois, às multidões que saíam para serem batizadas: Raça de víboras, quem vos induziu a fugir da ira vindoura? Produzi, pois, frutos dignos de arrependimento e não comeceis a dizer entre vós mesmos: Temos por pai a Abraão; porque eu vos afirmo que destas pedras Deus pode suscitar filhos a Abraão. E também já está posto o machado à raiz das árvores; toda árvore, pois, que não produz bom fruto é cortada e lançada ao fogo." (Lc 3:7-9)

De fato, Deus pode fazer com que das pedras nasçam novos filhos a Abraão e, na mesa do Reino, Jesus fala que "muitos virão do Oriente e do Ocidente, do Norte e do Sul e tomarão lugares", o que significa uma referência do evangelista aos gentios. Nesta provável releitura da Igreja das memórias dos ensinamentos do Senhor, o Mestre estaria dizendo que pessoas estranhas à Aliança do Monte Sinai poderiam ser graciosamente aceitos. Os últimos no lugar dos primeiros!

De modo algum podemos fazer uma leitura anti-semita, endossando aquela teologia preconceituosa de rejeição do povo judeu, culpando-os pela morte de Jesus. Pois aqui Jesus está falando mesmo era dos que tinham um comportamento religioso hipócrita . Até mesmo porque Deus a ninguém rejeita, mas o homem pode vir a recusar o acolhimento misericordioso do Pai, preferindo perecer em sua condição de auto-suficiência moral, afastando a si mesmo e a outros de entrarem na casa.

Parece estranho o portal da graça ser visto aqui como estreito, mas eu diria que a passagem torna-se apertada por causa do nosso coração. Nós nos tornamos pessoas cheias de si, de orgulho, de presunção, de soberba teológica, avareza e alimentamos uma religiosidade enganosa a ponto de praticarmos iniquidades (v. 27). Enquanto achamos que o nosso serviço eclesiástico e o nosso moralismo produzem algum status perante Deus, não estamos permitindo que a sua infinita graça alcance os nossos corações. É preciso ter uma experiência real de conversão mesmo estando na Igreja!

"Naquela mesma hora, alguns fariseus vieram para dizer-lhe: Retira-te e vai-te daqui, porque Herodes quer matar-te. Ele, porém, lhes respondeu: Ide dizer a essa raposa que, hoje e amanhã, expulso demônios e curo enfermos e, no terceiro dia, terminarei. Importa, contudo, caminhar hoje, amanhã e depois, porque não se espera que um profeta morra fora de Jerusalém. Jerusalém, Jerusalém, que matas os profetas e apedrejas os que te foram enviados! Quantas vezes quis eu reunir teus filhos como a galinha ajunta os do seu próprio ninho debaixo das asas, e vós não o quisestes! Eis que a vossa casa vos ficará deserta. E em verdade vos digo que não mais me vereis até que venhais a dizer: Bendito o que vem em nome do Senhor!" (Lc 13:31-35)

Como se vê, um acontecimento marca aquele ensino de Jesus. Chegam então os fariseus comunicando ao Mestre sobre a intenção de Herodes em matá-lo (v. 31), mas aquele recado não afasta o Senhor de seu propósito de visitar as cidades e aldeias enquanto seguia para Jerusalém (v. 20). Possivelmente fosse desejo de tais religiosos causar-lhe algum abalo emocional e há quem suponha que os mesmos desejassem tê-lo no território da Judeia onde teriam maior influência do que nas terras da Galileia ou da Pereia administradas por Herodes. Isto se for levada em consideração a hipótese de que aqueles fariseus estivessem contra Jesus, pois é possível também que muitos dos fariseus admirassem-no e estivessem alertando-o de um perigo iminente.

Entretanto, o Mestre não se abala com a ameaça e com a possível astúcia do tetrarca assassino a quem chama de "raposa", pelo que promete prosseguir com o seu ministério até o limite do "terceiro dia" (v. 32), numa referência à sua ressurreição contada a partir da morte em Jerusalém (v. 33). É certo que tal resposta não seria entendida de imediato pelos fariseus, mas que o leitor original de Lucas saberia compreender melhor assim como já teria visto o cumprimento da profecia sobre a deserção da casa (v. 35), significando a destruição do Templo e/ou da própria cidade pelas tropas do general Tito no ano 70 de nossa era.

Percebe-se, portanto, que, no lamento sobre Jerusalém, encontra-se implícita salvação graciosamente oferecida e que foi recusada. Trata-se do comportamento da geração de Jesus por esta ter rejeitado a sua proposta de construção do Reino mas que tornou a se repetir por muitas vezes dentro da Igreja. Aliás, é para nós cristãos, e para um tempo posterior à destruição de Jerusalém, que o autor sagrado escreve.

Finalmente, vale lembrar que Jesus não falou que a casa de Jerusalém ficaria para sempre deserta, mas, sim, que a cidade não mais o veria até que dissessem: "Bendito o que vem em nome do Senhor!" E isto significa uma crítica anti-clerical para todos os tempos pois o Templo, na maioria das vezes, não soube receber os que foram enviados por Deus. Assim foi com os antigos profetas bíblicos, com o nosso Senhor Jesus Cristo no seu ministério e continua sendo nos dia atuais. Quem realmente assume o compromisso de pregar as boas novas do Reino jamais será bem aceito pelo apodrecido sistema religioso. Pode uma ou outra congregação abrir as suas portas para o evangelista, mas como a sua mensagem irá denunciar as injustiças praticadas ali, causar perplexidades, escandalizar os santinhos e despir os ouvintes de seus trapos moralistas, tirando deles o chão da auto-justificação meritória, não interessa aos falsos pastores lhes conceder espaço. Afinal, os hipócritas não suportam saber que, na lógica de Deus, os primeiros poderão se tornar os últimos.

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