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segunda-feira, 5 de agosto de 2013

Trabalhadores na seara do Senhor



Como vimos no estudo Um movimento que abalou o rei, sobre Lucas 9:1-9, o Senhor Jesus havia enviado seus doze apóstolos para pregarem e curarem pelas aldeias de Israel. Era como um estágio para eles se prepararem para continuar as obras do Salvador sem a sua presença física após a sua partida.

Já no capítulo 10 do mesmo Evangelho, o Mestre comissiona outros setenta discípulos "para que o precedessem em cada cidade e lugar aonde estava para ir". Tudo ocorre dentro do contexto literário de sua longa peregrinação a Jerusalém em que novos ensinamentos são acrescentados servindo para o trabalho missionário da Igreja em todo o planeta, tanto naquela época como hoje. O número de enviados, que em alguns manuscritos gregos constam como sendo setenta e dois (mesmo número de nações na versão da Septuaginta de Gênesis 10), seria a representação simbólica de todos os povos. Tem-se aí implícito o caráter universalista da mensagem revolucionária do Reino de Deus.

A primeira recomendação do Senhor (Lc 10:2) demostra ao mesmo tempo a fé que Jesus exerceu em relação ao resultado da obra e a preocupação com a necessidade de haver mais trabalhadores na "seara". Suas palavras nos fazem lembrar brevemente de João 4:35 quando o outro evangelista fala da ceifa e dos ceifeiros. Contudo, o que os doze e os setenta discípulos fizeram foi semear as boas novas do Reino. Os frutos da missão ainda seriam amadurecidos e colhidos no tempo de Deus. Mas, por outro lado, podemos também admitir que os discípulos enviados já representavam o fruto maduro do trabalho de Jesus em suas vidas e era chegado o momento de eles mesmos deixarem o banco da escola e se tornarem os protagonistas, passando adiante o ensino recebido.

Creio que o Criador quer contar conosco em seu plano de redenção da humanidade. Para isto apóstolos do passado e do presente são enviados aos "campos", isto é, às cidades, às aldeias e às casas. Agem conforme a direção de um mestre que, no caso, é o próprio Senhor Jesus e não laboram sozinhos, mas em duplas, o que reforça o testemunho garantindo um apoio mútuo.

Percebo que, em Lucas 10, Jesus levou um papo sério com sua futura Igreja. Existem multidões sedentas aguardando receber o Evangelho do Reino. O nosso discipulado só se completa e ganha algum sentido quando nos dispomos a abraçar almas. Não temos que nos fechar em cultos religiosos como se a vida cristã se resumisse a estar num templo cantando e louvando. Daí o Mestre tê-los mandado à "seara" utilizando uma imagem que fazia parte do cotidiano agrícola dos antigos galileus para que bem entendessem o sentido da missão.

É possível reconhecermos uma conotação escatológica na grande seara. Contudo, o Reino de Deus anunciado por Jesus precisa ser presentificado por seus discípulos que são os trabalhadores do campo. Antes da chegada do Mestre nas aldeias que serão visitadas no caminho para Jerusalém, os obreiros enviados devem precedê-lo, o que também se aplica à crença na sua segunda vinda. Temos que pregar o Evangelho para darmos continuidade ao processo de transformação planetária. É algo que não se confunde com soluções mágicas e, por tal motivo, o Senhor pede aos discípulos (leia-se à Igreja) que orem a Deus para que o Pai mande novos trabalhadores. Ou melhor, que nos mande para a sua colheira pois a concretização do Reino de modo algum se fará sem a ação de muitos operários que se colocam à serviço das multidões.

Para tanto será preciso lidar com os "lobos". Novamente Jesus usa, no verso 3, uma outra imagem do meio rural. Os discípulos enviados seriam como "ovelhas"  entre animais ferozes que  seriam os líderes políticos e religiosos. Homens que se prestam para serem instrumentos da maldade e que vão se sentir incomodados com os resultados do Evangelho dentro das comunidades. Tratam-se daqueles que querem manter o status quo vigente porque praticam e/ou se beneficiam das injustiças sociais pela exploração do trabalho humano com o pagamento de baixos salários, da concentração de terras, da prostituição, da corrupção na política e da ilusão das pessoas. Para tanto vão ser capazes de inventar mentiras ou boatos, armas ciladas, manchar a reputação do servo de Deus e até matar.

Como já vimos no estudo da missão dos doze, novamente é reiterado no capítulo 10 a advertência para o discípulo não carregar a bagagem extra (verso 4). Desta vez Jesus radicaliza propositalmente no discurso deixando o apóstolo descalço e isto faz com que o obreiro exerça sua fé e aposte a própria sobrevivência no que receberá de oferta das pessoas (versos 7 e 8). A caridade recebida será um dos frutos da mensagem evangelística por eles semeada.

Seria preciso focar nas vidas recuperadas para o Reino e não desperdiçar tempo e energia com a gestão de recursos. Este é um dos motivos para que o apóstolo não carregue bens na sua missão. Importa observar que até na caminhada era preciso não perder o foco com as saudações que, na época , tratava-se de um elaborado costume e penso que aqui haja algo muito mais do que literal.

Fico a pensar no que nos diria Jesus se estivesse discursando para a Igreja do século XXI quanto a portarmos celulares e computadores nas missões de hoje? Será que tais bens ajudam ou atrapalham a causa do Reino? Ou não têm nada a ver?

É certo que a pregação do Evangelho baseia-se no desenvolvimento de uma comunicação que é direcionada objetivamente. Não se exclui obviamente o uso da internet mas acontece que a rede mundial de computadores é um terreno perigoso para distrações. Com apenas alguns dias interagindo, você passa a ter inúmeros recados de e-mails, mensagens de notícias, convites para visitar páginas no Facebook, conversas de bate-papo, etc. Neste sentido, considero que a recomendação incomum para o apóstolo não saudar a ninguém pelo caminho vem de encontro da necessidade de manutenção do foco missionário. A atenção amorosa ao próximo continua e nada justifica tratarmos o outro de maneira rude. Só não podemos nos tornar escravos dos contatos sejam eles virtuais, telefônicos ou mesmo pessoais a ponto de fiarmos "pelo caminho" deixando de alcançara as famílias e as comunidades.

Repete-se no capítulo 10 de Lucas a orientação para o discípulo permanecer na mesma casa onde se hospedar, porém a abordagem ali se torna mais abrangente do que no episódio do envio dos doze. Um dos acréscimos seria a recomendação de se dizer as palavras de paz remetendo o leitor ao costume da saudação judaica shalom. Algo que  deve ultrapassar os limites da mera cortesia tornando-se de fato um gesto de benção sobre a família que abriu suas portas para receber um ministro do Reino de Deus na intimidade do lar. Contudo, será preciso que a paz encontre receptividade no coração de algum membro da família (verso 6).

Mais uma vez é reforçado que o destino do apóstolo de Jesus é a casa das pessoas e não os templos. Como foi estudado na missão dos doze, estes locais jamais poderão ser a essência de um cristianismo autêntico e verdadeiro, mas tão somente extensões de uso. São espaços onde a Igreja pode realizar algumas de suas atividades sem se limitar a eles e jamais confundi-los com o sagrado. As celebraços de culto e o ensino da Palavra não precisam acontecer ali, devendo se repetir nos nossos lares bem com o nos outros meios onde nos relacionamos fraternalmente. Inclusive em ambientes abertos como Jesus costumava procurar.

Tal como em Lucas 9:5, os setenta discípulos enviados no capítulo 10 são também instruídos a sacudirem a poeira da cidade onde não foram recebidos. Não se trata de nenhum ato de desprezo ou de vingança contra a comunidade mas sim de um amoroso testemunho para os destinatários não permanecerem fechados e irredutíveis à mensagem do Reino. Aplica-se-lhes um tradicional gesto nas peregrinações litúrgicas quando os judeus provenientes da Diáspora livravam-se do pó "imundo" de outras terras antes de pisarem  no solo sagrado de Israel. Tal simbolismo seria bem compreendido pelos ouvintes da época.

Podemos extrair várias compreensões acerca da poeira sacudida. Uma delas é que, com o recado simbólico, abre-se uma nova oportunidade para a comunidade não receptiva ao Evangelho poder se abrir posteriormente às boas novas de construção do Reino. Outrossim, há que se considerar também o estabelecimento de um conflito que acompanha o projeto de paz anunciado. A saudação do apóstolo quando chega na casa não trás nenhuma neutralidade diante da situação de injustiça social e até mesmo familiar. Logo, se o recado do pregador é rejeitado e as pessoas preferem manter as coisas como estão, elas devem saber que a realidade revolucionária do Governo divino está próxima (verso 11).

No versículo 12 e seguintes, o Evangelho nos leva a refletir sobre a responsabilidade daqueles que rejeitam a oportunidade de receber o Evangelho. Maior tolerância haverá no Juízo para as impenitentes Sodoma e Gomorra, bem como para outras cidades pagãs, do que para os que se recusarem a acolher as boas novas do Reino, significando que somos julgados pelas condutas escolhidas conforme as condições de agir.

Como se vê a mensagem evangelística é clara. Ela nos convoca para revolucionarmos nossas vidas, famílias e comunidades através de um posicionamento firme contra qualquer tipo de injustiça. Se antes andávamos no caminho errado, chegou o momento de buscarmos arrependimento sincero e recolhermos as sementes negativas plantadas no passado. A partir daí, precisamos colocar as mãos na massa e assumirmos o nosso papel de protagonistas do Reino. Não dá para viver em cima do muro!

Assim há que se considerar a existência de um processo revolucionário em curso movido pelo próprio Deus através de nós para que ocorra a transformação planetária. Quem não acolhe a mensagem de paz do agente do Reino está se opondo à marcha histórica do bem e da vida. As palavras do Mestre, no versículo 16, não se aplicam necessariamente à sua pessoa ou a de seus apóstolos, mas sim ao desígnio divino por eles e por nós expresso. Quando as mudanças chegam, elas surpreendem a todos os que se acham dormindo e o processo de construção do novo se faz através de decisivos momentos de ruptura com o pecado. Portanto devemos estar atentos e vigilantes para nos tornarmos participantes e cooperadores do projeto divino. Nunca o contrário.

E então? Vamos trabalhar na seara do Senhor?


OBS: A ilustração acima refere-se a uma iluminura do século XV de autoria anônima sobre os setenta apóstolos. Foi extraída do acervo virtual da Wikipédia em http://pt.wikipedia.org/wiki/Ficheiro:Seventy_Disciples.jpg

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