A recente pesquisa do Datafolha, amplamente repercutida na imprensa, trouxe números que à primeira vista parecem simples: mais brasileiros se identificam como de direita do que de esquerda. A partir disso, nos dias do Natal, muitas manchetes sugeriram — explicitamente ou nas entrelinhas — que esse dado poderia representar um ambiente desfavorável ao governo Lula ou até um indício de dificuldades eleitorais futuras.
No entanto, pesquisas de opinião não falam sozinhas. Elas precisam ser lidas com cuidado, contexto e método. Quando isso não acontece, os dados deixam de informar e passam a confundir. Este artigo propõe justamente o contrário: usar a pesquisa como ponto de partida para reflexão, não como sentença política.
O que exatamente o Datafolha perguntou?
A pesquisa não perguntou em quem o entrevistado votaria nem o que ele entende, em termos conceituais, por direita ou esquerda. O que foi feito foi uma autodeclaração ideológica em uma escala de 1 a 7, em que:
- 1 representava a extrema esquerda;
- 7 representava a extrema direita;
- os valores intermediários indicavam posições mais próximas do centro.
Trata-se, portanto, de uma percepção subjetiva do entrevistado sobre si mesmo, sem qualquer definição prévia do que significam esses rótulos. Não houve perguntas sobre economia política, papel do Estado, conflito capital versus trabalho ou mesmo sobre pautas identitárias específicas.
Além disso, a pesquisa incluiu uma pergunta complementar, em outra escala, medindo a identificação com os dois grandes polos personalizados da política recente: petismo e bolsonarismo. E aqui surge um dado frequentemente subexplorado na cobertura: há mais brasileiros que se dizem petistas do que bolsonaristas, mesmo num cenário em que mais pessoas se autodeclaram “de direita” do que “de esquerda”.
Esse simples cruzamento já deveria acender um alerta contra leituras apressadas.
Direita e esquerda: rótulos estáveis ou espelhos do momento?
Uma questão central — pouco discutida nas matérias jornalísticas — é: o que o brasileiro médio entende por direita e esquerda?
No Brasil, esses termos raramente correspondem às definições clássicas da teoria política. Para muitos entrevistados, “direita” pode significar:
- valores religiosos ou morais conservadores;
- rejeição ao chamado “progressismo cultural”;
- antipetismo;
- defesa genérica da ordem e da autoridade.
Da mesma forma, “esquerda” pode significar:
- defesa da democracia;
- políticas sociais;
- rejeição ao autoritarismo;
- oposição a figuras específicas, como Bolsonaro.
Nada disso, necessariamente, remete ao conflito capital versus trabalho, à crítica estrutural ao capitalismo ou à defesa de um Estado socialista, como na tradição marxista clássica. A pesquisa, portanto, mede climas simbólicos, não adesões programáticas.
Por que Lula vence eleições e a esquerda segue minoritária no Congresso?
A pesquisa ajuda — ainda que indiretamente — a iluminar uma das aparentes contradições da política brasileira: presidentes de centro-esquerda vencem eleições, mas o Congresso permanece majoritariamente conservador.
Isso ocorre porque o voto presidencial no Brasil é altamente personalizado e comparativo. Muitos eleitores não votam “na esquerda”, mas em Lula — por memória econômica, por carisma, por rejeição ao adversário ou por expectativa de proteção social.
Já o voto legislativo é outro fenômeno:
- mais local,
- mais fragmentado,
- mais dependente de lideranças regionais,
- frequentemente associado a pautas conservadoras nos costumes.
Assim, um mesmo eleitor pode votar em Lula para presidente e em um deputado conservador para a Câmara sem perceber contradição alguma. A pesquisa do Datafolha não explica tudo isso, mas é compatível com esse padrão histórico.
O efeito Bolsonaro: identificação ideológica por reação
Outro ponto essencial para entender os números atuais é olhar para trás. Durante o governo Bolsonaro, houve um fenômeno de identificação ideológica reativa. Para muitos brasileiros, especialmente nos centros urbanos, a associação da direita com autoritarismo, negacionismo e conflito institucional levou a uma reação do tipo:
“Se isso é ser de direita, então eu sou de esquerda.”
Isso ajuda a explicar por que, em pesquisas próximas a 2022, a autodeclaração à esquerda apareceu mais forte. Com Bolsonaro fora do Planalto, essa pressão simbólica diminui — e parte dessas identificações se dissolve, sem que isso signifique necessariamente uma guinada eleitoral à direita.
Um governo de esquerda em ambiente conservador: limites e frustrações
O atual governo Lula opera sob fortes restrições: um Congresso conservador, uma correlação de forças desfavorável e a necessidade permanente de conciliação. Isso estreita o leque de pautas possíveis e reduz o espaço para disputas simbólicas mais ousadas.
Para parte do eleitorado de esquerda, isso gera frustração. Para setores populares, pode gerar impaciência. Para eleitores que votaram em 2022 apenas para barrar o bolsonarismo, pode haver desmobilização.
Nada disso se traduz automaticamente em derrota eleitoral, mas ajuda a explicar por que a identificação ideológica pode oscilar mesmo sem grandes mudanças no quadro político imediato.
A cobertura da imprensa: o que ficou de fora?
Ao destacar apenas que “a direita é maior que a esquerda”, grande parte da imprensa:
- ignorou o caráter subjetivo da pergunta;
- não explorou a contradição entre autodeclaração ideológica e identificação com lideranças;
- sugeriu, ainda que indiretamente, uma leitura eleitoral que a própria pesquisa não sustenta.
O resultado foi uma narrativa simplificada, que mais polariza do que esclarece.
Mais perguntas do que respostas — e isso é positivo
Lida com cuidado, a pesquisa do Datafolha não é um veredito, mas um convite ao debate. Ela levanta questões fundamentais:
- O brasileiro se identifica mais por valores culturais do que por projetos econômicos?
- A esquerda governa sem conseguir produzir identificação ideológica duradoura?
- A direita cresce como identidade simbólica, mas não necessariamente como maioria eleitoral?
- Estamos confundindo clima político com comportamento de voto?
Responder a essas perguntas exige mais do que manchetes. Exige reflexão, história e disposição para complexidade.
E talvez essa seja a principal lição: pesquisas não devem encerrar debates — devem iniciá-los.
📝NOTA METODOLÓGICA SOBRE A PESQUISA
Na análise desta pesquisa é importante destacar que o instituto Datafolha utilizou uma escala de autodeclaração ideológica, na qual os entrevistados se posicionaram de 1 a 7, sendo 1 mais à esquerda e 7 mais à direita. Essa pergunta capta como cada pessoa percebe seu próprio posicionamento político, e não uma intenção de voto nem um indicador objetivo do comportamento eleitoral. Ou seja, diferentes entrevistados podem interpretar esses rótulos (como “direita” ou “esquerda”) de maneiras distintas, dependendo de suas experiências, valores culturais e contexto social. A pesquisa ouviu 2.002 pessoas com 16 anos ou mais em 113 municípios brasileiros entre 2 e 4 de dezembro de 2025, com margem de erro de cerca de ±2 pontos percentuais.
OBS: O texto foi escrito mais para provocar reflexão do que para fechar conclusões com foco em: esclarecer o que a pesquisa do Datafolha mede e o que ela não mede; contextualizar a identificação direita–esquerda ao longo das décadas; discutir a ambiguidade do conceito de “direita” e “esquerda” para o entrevistado; problematizar a relação entre vitórias presidenciais de Lula e a minoria da esquerda no Congresso; levantar hipóteses sobre ambiente político, conservadorismo social, bolsonarismo, frustração eleitoral e limites da esquerda governista; apontar fragilidades da cobertura da grande imprensa e como ela pode induzir leituras apressadas. Na opinião deste blogueiro, muitos brasileiros, de um modo geral, não têm uma definição consistente sobre o que significa ser politicamente se direita ou de esquerda. O assunto não pára por aqui.

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