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quinta-feira, 25 de dezembro de 2025

Entre a trégua e a tragédia: Gaza, Belém e o imperativo da paz


Manjedoura da Igreja Luterana da Natividade


Duas matérias publicadas recentemente no jornal O GLOBO — uma revelando, por meio de imagens de satélite, a continuidade de demolições em Gaza apesar do cessar-fogo, e outra mostrando Belém retomando as celebrações de Natal em um dia descrito como “repleto de alegria” — expõem, juntas, a profunda contradição que marca o atual momento do conflito israelense-palestino. Elas não se anulam; dialogam. E, justamente por isso, exigem uma leitura crítica, humana e responsável.

Enquanto em Belém, cidade símbolo do nascimento de Jesus, sinos voltam a tocar e famílias se reúnem para celebrar a esperança, Gaza permanece mergulhada em ruínas, luto e desamparo. A trégua, embora necessária e bem-vinda, não foi suficiente para estancar o sofrimento de uma população submetida a bombardeios, deslocamentos forçados, fome, colapso sanitário e trauma psicológico coletivo. A alegria possível em Belém contrasta com a dor persistente em Gaza — e essa assimetria não pode ser ignorada ou romantizada.

A guerra, quando prolongada e assimétrica, deixa de ser apenas confronto militar e passa a ser uma experiência cotidiana de perda. Crianças órfãs, famílias inteiras apagadas, bairros inteiros reduzidos a escombros. Não se trata apenas de estatísticas, mas de vidas interrompidas e futuros roubados. O sofrimento palestino, em especial em Gaza, já ultrapassou o limite do aceitável sob qualquer prisma humanitário ou jurídico.

Nesse contexto, ganham relevância as ações de ativistas e da sociedade civil internacional, como as promovidas pela Flotilha da Liberdade. Ainda que essas iniciativas não tenham poder militar nem consigam romper, de forma concreta, o bloqueio imposto a Gaza, elas cumprem um papel essencial: manter o mundo olhando, incomodar consciências, expor contradições e elevar o custo moral e político da indiferença. A história recente mostra que, muitas vezes, mudanças estruturais começam com gestos simbólicos que desafiam o silêncio e a normalização da injustiça.

No plano estatal, o papel do Sul Global merece destaque. O Brasil, sob a liderança do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, tem assumido uma posição firme e vocal em defesa do direito internacional humanitário, denunciando o massacre de civis, o uso da fome como arma de guerra e a necessidade de responsabilização. Embora não disponha de poder militar ou coercitivo, o Brasil atua como voz moral relevante nos fóruns multilaterais, ajudando a sustentar a legitimidade jurídica das denúncias e a impedir que a tragédia palestina caia no esquecimento.

A África do Sul foi além do discurso e transformou indignação em ação concreta ao levar Israel à Corte Internacional de Justiça, acusando-o de violar a Convenção para a Prevenção e Repressão do Crime de Genocídio. Ao fazê-lo, resgatou sua própria memória histórica de luta contra o apartheid e reafirmou que o direito internacional não deve ser seletivo. A Turquia, por sua vez, ocupa uma posição ambígua: combina retórica dura em defesa dos palestinos com a manutenção de relações econômicas e estratégicas com Israel, revelando os limites entre discurso político e ação efetiva.

Nesse cenário, surge inevitavelmente a questão da responsabilização. A possibilidade de que o primeiro-ministro Benjamin Netanyahu venha a responder por crimes de guerra e crimes contra a humanidade em instâncias internacionais, como o Tribunal Penal Internacional, deixou de ser mera especulação acadêmica e passou a integrar o debate público global. Ainda que a aplicação da justiça internacional seja lenta e sujeita a pressões políticas, o simples fato de tais acusações ganharem corpo já representa uma ruptura com décadas de impunidade percebida.

Mas nenhuma responsabilização, por si só, será suficiente se não houver um horizonte político capaz de oferecer dignidade, segurança e futuro a ambos os povos. A solução de dois Estados — Israel e Palestina vivendo lado a lado, em paz e com reconhecimento mútuo — continua sendo, apesar de todos os obstáculos, o ideal mais justo e equilibrado. Hoje, é verdade, esse projeto parece distante: a expansão de assentamentos na Cisjordânia, a fragmentação territorial palestina, a fragilidade das lideranças e a radicalização política corroem sua viabilidade imediata. Ainda assim, abandoná-lo significaria aceitar como normal um regime permanente de desigualdade, violência e exceção.

As matérias que inspiram esta reflexão, quando lidas em conjunto, nos lembram de algo essencial: a paz não é apenas a ausência momentânea de tiros, mas a presença de justiça, de direitos e de reconhecimento da humanidade do outro. Celebrar o Natal em Belém é legítimo e necessário; denunciar a tragédia contínua em Gaza é igualmente urgente. Uma coisa não exclui a outra — ao contrário, se completam.

Num mundo cada vez mais polarizado, insistir na coexistência pacífica, na tolerância e no diálogo pode parecer ingênuo. Mas é justamente essa insistência que separa a civilização da barbárie. A paz não nasce da força bruta nem do silêncio cúmplice, mas da coragem de reconhecer dores, responsabilidades e limites. Israelenses e palestinos têm direito à segurança, à vida e à dignidade. Enquanto isso não for garantido para ambos, nenhuma trégua será suficiente — e nenhuma celebração estará completa.

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