Páginas

quinta-feira, 29 de agosto de 2013

Abnegação no discipulado de Cristo


"Grandes multidões o acompanhavam, e ele, voltando-se, lhes disse: Se alguém vem a mim e não aborrece a seu pai, e mãe, e mulher, e filhos, e irmãos, e irmãs e ainda a sua própria vida, não pode ser meu discípulo. E qualquer que não tomar a cruz e vier após mim não pode ser meu discípulo. Pois qual de vós, pretendendo construir uma torre, não se assenta primeiro para calcular a despesa e verificar se tem os meios para a concluir? Para não suceder que, tendo lançado os alicerces e não a podendo acabar, todos os que a virem zombem dele, dizendo: Este homem começou a construir e não pôde acabar. Ou qual é o rei que, indo para combater outro rei, não se assenta primeiro para calcular se com dez mil homens poderá enfrentar o que vem contra ele com vinte mil? Caso contrário, estando o outro ainda longe, envia-lhe uma embaixada, pedindo condições de paz. Assim, pois, todo aquele que dentre vós não renuncia a tudo quanto tem não pode ser meu discípulo." (Evangelho de Lucas 14:25-33; ARA)

Tanto no ministério de Jesus pela Galileia quanto em sua peregrinação a Jerusalém, multidões queriam acompanhar as caminhadas do Senhor por onde quer que ele fosse. Havia um forte interesse das pessoas em procurá-lo e não parece que tenha sido apenas por causa dos milagres operados. Muitos queriam ouvir os seus ensinamentos, provavelmente porque os sermões do Mestre ajudavam na compreensão do sentido da vida preenchendo o vazio existencial de cada um. Os pecadores encontravam nele um acolhimento incomparável, podendo aproximar-se do rabi sem serem condenados por seus erros.

Contudo, já que tais pessoas estavam indo atrás de suas pegadas. Jesus resolveu mais uma vez testá-las acerca do que desejavam realmente. Em Lucas 9:57-62, ele já havia colocado à prova os que queriam segui-lo e agora, no capítulo 14 do 3º Evangelho, o Mestre leva outro papo sério com aquela galera afim de que as pessoas soubessem quais as exigências de um discipulado verdadeiro e revolucionário.

Seguir a Jesus na radicalidade era muito mais do que apenas viajar para Jerusalém e celebrar uma festa religiosa na Cidade Sagrada dos judeus. Aliás, ninguém naquela multidão poderia imaginar como seria a Páscoa que lhes aguardava. Nosso Senhor enfrentaria uma cruz e a sua morte será angustiosamente perturbadora a ponto de muitos virem a praticar uma auto-flagelação (Lc 23:48), como ainda é de costume no Médio Oriente por ocasião da morte de algum político ou religioso carismático. Aliás, recordo muito bem das cenas de fanatismo que assisti pela TV, aos meus 12/13 anos, quando houve o funeral do xiita aiatolá Sayyid Ruhollah Khomeini (1900-1989), líder da Revolução Iraniana  de 1979.

Há duas questões que o Mestre coloca nesta perícope e que podem ser resumidas pela palavra desapego, tendo em vista a conclusão do verso 33. Uma é a relação do discípulo com a família e a outra vem a ser a cruz. A tradução fala em "aborrecer" o pai e há entendimentos de que o correto significado seja "amar menos". Mas a meu ver, o texto quer dizer que o seguidor de Cristo teria que se comprometer mais com a causa do Reino do que com as exigências dos parentes que forem contrárias ao propósito de Deus. No texto A família e a obra missionária do Reino, cheguei a abordar boa parte desse tema estudando ainda o capítulo 9 do Evangelho.

Ora, em nenhuma parte do Novo Testamento é dito que pessoas foram obrigadas por Jesus a romper os laços com o pai, a mãe, os irmãos, os filhos ou o cônjuge. Muito pelo contrário! A proposta do Reino de Deus vem justamente ampliar a ideia de família, incluindo toda a humanidade num superior relacionamento fraternal (Lc 8:21).

Dentro de uma ótica revolucionária, jamais devemos esquecer que a instituição familiar pode se tornar um limitador que contribui para manter as desigualdades sociais e inúmeros preconceitos elitistas. Pessoas costumam colocar os seus em primeiro lugar, praticam atos reprováveis de nepotismo nomeando parentes para ocuparem cargos públicos. E, na Igreja, as coisas não são muito diferentes, de maneira que uma congregação acaba virando um negócio familiar e nunca uma ekklesia da comunidade de convertidos como foram os antigos cristãos primitivos.

No século XIX, o socialista científico Friedrich Engels (1820-1895), grande companheiro de luta de Marx, iria editar seu livro A origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado (1884). Porém, mais de um milênio e meio anos antes do capitalismo moderno, Jesus teria chegado a considerações críticas não tão distantes do filósofo comunista, percebendo o quanto a sociedade familiar é capaz de dificultar a ação de um membro que se propõe a se tornar um agente de transformação do Reino. Por isso, o Senhor propõe um tipo de desapego que, em última análise, deve ser da "própria vida" (verso 26). Não se trata de um abandono do lar, mas de uma postural realmente compromissada com a construção de um novo mundo. Aliás, foi o que o Mestre sempre ousou fazer desde os doze anos quando esteve entre os doutores do Templo, sem romper com a submissão filial (Lc 2:41-51). Mas, quando passou a exercer o seu ministério, foi firme em não permitir que a sua mãe e os seus irmãos afastassem-no do seu chamado para anunciar o Evangelho pelas cidades e aldeias de Israel (ler o artigo O progresso no Reino de Deus e a família).

Mais forte ainda do que o desapego dos aspectos retrógrados do relacionamento familiar, em que nossos entes queridos nem sempre nos compreendem, trata-se, pois, de carregar a cruz. É algo que já estudamos no texto O discípulo e a cruz sobre Lc 9:23-27. Ali, inclusive, antecipei-me em comentar sobre o capítulo 14 a respeito de tomarmos uma posição consciente no ministério missionário da Igreja, sabendo medir o peso da cruz que será carregada. Ou melhor, comprometendo-nos conforme as nossas possibilidades como se lê nas metáforas da construção da torre e da batalha dos reis. Para tanto, é preciso nos conhecermos melhor praticando um auto-exame e, finalmente, concluirmos sobre qual área de nossas vidas requer uma renúncia. Segundo havia escrito lá, jamais podemos nos esquecer que as escolhas poderão iniciar um processo novo ("dia a dia"), com causa e efeito, sendo muitas das vezes irreversível. Logo, as decisões precisam ser sempre conscientes e maduras através das projeções feitas sobre o tempo e o espaço.

Pode-se dizer que todas essas anteriores passagens de Lucas ligam-se ao trecho em estudo do capítulo 14. Em Lc 9:24, vemos ali o sentido existencial de entregarmos nossas vidas à causa do Reino enquanto que, no texto aqui citado, a caminhada de Jesus para Jerusalém, cidade onde irá ser crucificado, mostra ao leitor o que significa acompanhar os passos do Mestre. Coisa que nem sempre estamos suficientemente preparados para fazer agora. Nem mesmo os discípulos mais próximos do Senhor estavam como foi o caso de Pedro que o negou três vezes (Lc 22:54-62) mas que, posteriormente, demonstrou o contrário quando se viu a frente do povo de Deus. Alás, sabe-se pela tradição eclesiástica que ele veio a se tornar mais um mártir e o Livro de Atos vai mostrá-lo depois como um líder corajoso entre os demais apóstolos a ponto de dizer reiteradamente às autoridades religiosas do Sinédrio que mais importava obedecer a Deus do que aos homens (At 5:29; conf. com 4:19 também de Atos).

Somente após o exemplo da morte obediente de Jesus, maior símbolo de fé da Igreja, os discípulos compreenderam sua mensagem e começaram a andar nos mesmos passos. Aliás, o texto em análise foi uma excelente releitura dos ensinamentos do Senhor transmitido pelos apóstolos ocorrida várias décadas depois. Algo que as antigas comunidades cristãs dos primeiros séculos precisavam interiorizar para anunciarem o Evangelho desafiando o poder do Império Romano, o qual era capaz de torturar e de matar os seus opositores obrigando-lhes a carregar a própria cruz num sinal de submissão vergonhosa. Só que o dever do testemunho deve anteceder os direitos do Estado e da autoridade paterna. O Evangelho não podia deixar de ser proclamado por causa de Roma!

Nos dias de hoje, em que as constituições dos países democráticos reconhecem a liberdade religiosa, principalmente onde o Estado é laico, carregar a cruz assume novas simbologias mantendo-se, porém, a mesma essência de todos os tempos. Nossas posições (atitudes) muitas das vezes vão aborrecer familiares, poderão custar um bom emprego, uma promoção, a nomeação para um cargo público e ainda manchar a nossa reputação no meio social. Nossos parentes muitas das vezes nos querem ver ajustados aos sistema, ganhando dinheiro, sem arrumarmos indisposições e nos tornando pessoas conceituadas. Boa parte da sociedade não aceita que nos dediquemos, por exemplo, às causas dos presidiários vistos como lixos humanos pela grande massa alienada. E adianto em dizer que seu chefe não vai gostar nem um pouco quando você, cristão fiel, negar-se a mentir dizendo que ele não se encontra ou recusar a praticar qualquer fraude.

Mais do que isso, a cruz pode levar-os a uma indisposição com a própria congregação religiosa onde nos reunimos. Se o grupo está acomodado, idolatrando pastores, apegado à construção de templos, ou vivendo na hipocrisia legalista, iremos incomodá-los também. Caso não formos excomungados, vão nos dar um tratamento que será de alguma maneira excludente, mesmo que discretamente, tipo diminuir os espaços para o exercício ministerial ou usarmos a palavra nas celebrações do culto. Aliás, a própria organização autoritária e centralizada de muitas igrejas já se presta para o líder negar o acesso de quem o incomoda.

Portanto, desde já precisamos preparar nossas mentes e corações para o verdadeiro discipulado. Nosso compromisso deve ser com Deus e não com os homens. Amemos a todos, mas não deixemos que nada nos afaste da causa do Reino, daquilo que precisa ser feito. Trata-se de uma questão de escolha e o discípulo de Cristo precisa agir com consciência, sabendo que ele é um agente da mudança e da transformação planetária através que ocorre através de um longo processo histórico dialético. Vamos em frente!


OBS: A ilustração acima refere-se à obra do artista grego Doménikos Theotokópoulos (1541-1614), mais conhecido como El Greco. A imagem foi extraída do acervo da Wikipédia em https://pt.wikipedia.org/wiki/Ficheiro:Cristo_abrazado_a_la_cruz_(El_Greco,_Museo_del_Prado).jpg

2 comentários:

  1. Muito boa a Postagem, queria que você postasse diretamente em Aprendendo com Livros, seria muito bom, eu veria as duas coisas.

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Olá, amigo!

      Obrigado pela visita a esta página e pelos comentários.

      Pessoas de outros grupos do Facebook também já me pediram isso. Vou pensar.

      Abraços.

      Excluir