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terça-feira, 2 de dezembro de 2025

Quando o céu ficou verde...

 


Um conto sobre como seria nos dias atuais o novo Evento Carrington ocorrido em 1859...


I – O DIA EM QUE OS CELULARES SILENCIARAM


Era 17 de agosto de 2026, uma segunda-feira abafada no Rio de Janeiro, quando o mundo começou a estranhar coisas pequenas.


Nada grandioso, a princípio — apenas notificações que demoravam a carregar, vídeos que travavam, mensagens que não saíam do lugar.


Na casa dos Oliveira, a família de quatro pessoas começava a manhã como qualquer outra no bairro de Campo Grande, na Zona Oeste carioca.


João, 42 anos, analista de sistemas, tentava enviar um relatório para o seu chefe.


Ana, 40, professora de história, fazia café enquanto ouvia o rádio chiando.


Lívia, 16, reclamava que o Instagram não atualizava.


Pedro, 10, tentava assistir a um desenho, mas o streaming não conectava.


Às 10h47, o rádio da cozinha finalmente ganhou clareza suficiente para transmitir algo inteligível.


— “Interrompemos a programação… uma intensa tempestade solar está atingindo a Terra. Recomenda-se desligar equipamentos eletrônicos…”


O som oscilou, distorceu e desapareceu.


João franziu o cenho.


— Deve ser exagero. Isso já aconteceu antes.


Mas não daquele jeito.


Às 11h14, todos os celulares da casa apagaram mesmo com bateria cheia.

Às 11h20, a luz fez dois estalos secos e se foi.

Às 11h22, o mundo virou silêncio.


II – A TARDE EM QUE O CÉU FICOU VERDE


O calor pesava sem ventiladores e sem ar-condicionado. O bairro inteiro saiu às ruas. No céu, algo que ninguém esperava: faixas de luz verde e violeta tremulando como cortinas fantasmagóricas.


— Parece aurora boreal… mas aqui? — murmurou Ana.


As pessoas gravavam com celulares mortos, como se quisessem registrar um milagre. Outros, porém, gritavam:


— É o Apocalipse! É a ira de Deus!

— O mundo está acabando!

— As profecias se cumprem!


Nas ruas do calçadão de Campo Grande, pequenos grupos rezavam alto, outros discutiam, motoristas buzinavam presos no trânsito por semáforos apagados.


Às 17h, os jornais impressos distribuídos às pressas traziam a primeira manchete:


“EVENTO SOLAR SEM PRECEDENTES ATINGE A TERRA — PREVISÕES DE SEMANAS DE INSTABILIDADE”


João sentiu um frio no estômago.


— Se os transformadores queimaram… vamos ficar sem luz por muito tempo.


A noite foi um breu como não se via desde os apagões dos anos 2000.

Sem Wi-Fi, sem 4G, sem TV.

Uma família sentada à luz de velas, ouvindo o próprio silêncio.


Pedro perguntou:


— Pai… O que a gente faz agora?


João respondeu com o que tinha:


— A gente espera. Juntos.


III – A PRIMEIRA SEMANA: FILAS, FALTA DE NOTÍCIAS E A REALIDADE CRUA


Os dias seguintes foram um lento desmoronar da rotina moderna.


1. Bancos e dinheiro


Com os sistemas fora do ar, as agências abriram apenas para saques limitados. As filas dobravam quarteirões.


João passou 4 horas sob o sol até finalmente pegar R$ 300, o máximo permitido.


— Isso não dá nem para uma semana, pensou.


2. Mercados


Sem máquinas de cartão, o comércio só aceitava dinheiro físico. Prateleiras de água, arroz e enlatados começaram a esvaziar.


3. Internet


Só funcionava em trechos curtos e esporádicos, como um fantasma que aparecia e sumia.


A manchete do jornal de papel no terceiro dia dizia:


“SATÉLITES EM MODO DE SEGURANÇA — PREVISÃO DE SEMANAS PARA NORMALIZAÇÃO”


4. Serviços públicos


Nas repartições, caos.


Sem computadores.


Sem sistemas.


Sem atendimento.


Ana, professora, recebeu aviso escrito à mão: “Aulas suspensas por tempo indeterminado.”


5. Fanatismo nas ruas


Enquanto a energia não voltava, grupos cada vez maiores caminhavam com cartazes:


— O FIM ESTÁ PRÓXIMO!

— A LUZ DO CÉU É UM SINAL!

— BRINCARAM COM DEUS NO CARNAVAL E OLHA SÓ O RESULTADO!


Ana observava preocupada.


— Esses momentos sempre trazem gente assim…


João completava:


— É medo. O medo cria profetas...


IV – O RETROCESSO TECNOLÓGICO E AS ADAPTAÇÕES


Com os dias passando, as famílias começaram a improvisar.


A casa dos Oliveira voltou a práticas antigas:


- cozinhavam no fogão a gás, economizando o pouco que restava;

- guardavam água em baldes;

- anotavam gastos em caderninhos;

- usavam velas e lanternas;

-conversavam mais.


Certo dia, Ana colocou um livro nas mãos de Lívia.


— Já que a internet não volta… tenta esse aqui.


Era “O Sol é Para Todos”.


Lívia começou relutante, mas foi tomada pela história. Em poucas horas, estava absorvida.


Pedro passou a brincar na rua com crianças do bairro, como nos anos 90. E João e Ana passaram a caminhar juntos no fim da tarde, conversando sobre a vida que tinham esquecido de viver.


Sem a torrente infinita de notificações, era como se o mundo tivesse diminuído a velocidade.


V – NOTÍCIAS DOS JORNAIS: O PROGRESSO LENTO


Ao longo das semanas, as manchetes se sucediam:


“Rede elétrica do Sul do país ainda apagada”

“Mercados internacionais entram em colapso: bolsas fechadas por falta de conectividade”

“Recorde de auroras em latitudes tropicais continua”

“Especialistas falam em 6 meses para recuperação total dos satélites de comunicação”


No entanto, a vida encontrava rotas alternativas:


- Rádio a pilha virou tesouro.

- Mensageiros de bicicleta reapareceram.

- Feiras de troca cresceram.

- Igrejas organizaram distribuição de comida.

- Bibliotecas improvisadas surgiram em praças.

- Pessoas mais velhas voltaram a se correspondente por meio de cartas.


VI – UM RAIO DE LUZ


No 32º dia desde a tempestade, às 21h14, a lâmpada da sala dos Oliveira piscou. Estava fraca e tremida, porém viva.


A família inteira correu para a sala.


— Voltou! — gritou Pedro.


— Nem acredito! — chorou Lívia.


A energia veio por alguns minutos e caiu. Nos dias seguintes, voltou em ciclos irregulares, mas era o sinal de que o pior havia passado.


A internet? Essa só voltaria semanas depois, lenta, instável e capenga.


Quando finalmente o serviço da operadora de telecomunicações retornou plenamente, João abriu o celular… e o deixou na mesa.


— Estranho...


— O quê? — perguntou Ana.


— Senti que não preciso mais dele o tempo todo.


Ana sorriu.


— Talvez tenha sido isso que essa tempestade veio ensinar.


Eles se abraçaram enquanto o céu noite afora ainda guardava resquícios distantes de verde e roxo.


Afinal, o mundo não tinha acabado. Apenas tinha aprendido a respirar de novo.


VII – EPÍLOGO


Meses depois, quando tudo se normalizou, os jornais publicaram balanços duros:


- trilhões em prejuízos;

- satélites perdidos;

- apagões históricos;

- colapso temporário de mercados;

- semanas de caos urbano.


Entretanto, os noticiários também mostraram algo inesperado:


- O maior aumento de empréstimos de livros desde 1990.

- O renascimento de clubes de leitura.

- O aumento na convivência familiar medida por pesquisas sociológicas.


João, Ana, Lívia e Pedro não esqueceram essa experiência. Na estante, mantiveram uma caixa com velas, um rádio a pilha, cadernos, livros e um bilhete escrito por todos:


“Na próxima tempestade solar, lembre-se: o que salva é a nossa luz interior.”


📝Nota de Esclarecimento Histórico

O evento solar descrito neste conto é inspirado no Evento Carrington, a maior tempestade geomagnética já registrada pela humanidade. Ele ocorreu entre 28 de agosto e 2 de setembro de 1859, tendo seu pico observado em 1º de setembro, quando o astrônomo britânico Richard Carrington testemunhou uma intensa explosão solar acompanhada de uma ejeção de massa coronal extremamente veloz.

Cerca de 17 horas depois, a onda de partículas carregadas atingiu a Terra com força inédita, produzindo auroras intensas visíveis até em baixas latitudes, como Cuba, Havaí e o norte da América do Sul. Os sistemas de telégrafo, a tecnologia de comunicação mais avançada da época, sofreram danos severos: cabos superaqueceram, faíscas surgiram, alguns equipamentos chegaram a pegar fogo e operadores relataram choques elétricos. Em diversas regiões, os telégrafos continuaram funcionando mesmo desligados, devido às correntes induzidas pela tempestade.

Embora a sociedade de 1859 fosse pouco dependente de eletricidade, o fenômeno deixou claro o potencial destrutivo de uma tempestade solar dessa magnitude. Hoje, com nossa grande dependência de satélites, redes elétricas e sistemas digitais, eventos desse tipo são monitorados constantemente por agências espaciais, pois um novo episódio semelhante poderia causar transtornos muito maiores do que os observados no século XIX.

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