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quarta-feira, 30 de maio de 2012

O bendito “desperdício” na casa dos pobres


Há uma passagem nos evangelhos que nos leva a refletir sobre o sentido das boas ações que deve ser buscado e praticado.

Tanto Mateus quanto João trazem seus respectivos relatos sobre uma mulher que ungiu a Jesus com um caro perfume oriental. No texto do quarto evangelho, tal personagem é identificada como sendo a Maria de Betânia (uns a confundem também com Maria Madalena ou com aquela que enchugou os pés do Senhor com os cabelos) e o discípulo que a critica o escritor diz que seria Judas Iscariotes, o traidor. No entanto, prefiro mais a mensagem de Mateus porque, mantendo as pessoas no anonimato (exceto o anfitrião e o local), inclui a todos nós nos julgamentos injustos que frequentemente cometemos.

“Ora, estando Jesus em Betânia, em casa de Simão, o leproso, aproximou-se dele uma mulher, trazendo uma vaso de alabastro cheio de precioso bálsamo, que lhe derramou sobre a cabeça, estando à mesa. Vendo isto, indignaram-se os discípulos e disseram: Para que este desperdício? Pois este perfume poderia ser vendido por muito dinheiro e dar-se aos pobres. Mas Jesus, sabendo disto, disse-lhes: Por que molestais esta mulher? Ela praticou boa ação para comigo. Porque os pobres, sempre os tereis convosco, mas a mim nem sempre me tendes; pois, derramando este perfume sobre o meu corpo, ela o fez para o meu sepultamento. Em verdade vos digo: Onde for pregado em todo o mundo este evangelho, será também contado o que ela fez, para memória sua.” (Mt 26.6-13; ARA)

Em seu ministério, muitas vezes Jesus deixou de fazer a sua própria vontade em benefício do próximo ensinando-nos o que é o amor. Seu discurso contra o acúmulo das riquezas e defendendo o pobre foi feroz em vários momentos. Lembrando Sofonias 2.3, o Sermão da Montanha é iniciado tendo a figura do pobre na base ética de seu discurso (Mt 5.3) e que se repete nas bem-aventuranças de Lucas (6.2). Na primeira missão apostólica, os seus discípulos foram proibidos de levar bens em excesso (Mt 10.9-10). Suas boas novas são direcionadas ao pobre (Lc 7.22), confirmando para ser para este público o envio do Messias prometido (Is 11.4; 61.1; Sl 72.12-13). No episódio envolvendo o jovem rico, Jesus chega a dizer que é mais fácil um camelo passar por um buraco de uma agulha do que um rico entrar no reino de Deus (Lc 18.24-25). E, considerando o contexto evangelístico da obra de Mateus, eis que, no Sermão Profético, o Cristo chega a ser identificado com os pobres “pequeninos” (Mt 25.35-40).

Curiosamente, na cidade de Betânia (nome que significa “a casa dos pobres”), Jesus permite que o seu próprio corpo torne-se daquele ato de generosidade e de consagração. Sua alma altruísta nem precisava receber a luxuosa oferta. Porém, naquele momento, o Senhor permitiu que a mulher praticasse a sua boa ação sem qualquer censura, vendo naquele gesto uma profunda manifestação de amor.

Qual foi mesmo o valor daquela extravagância?

Segundo o texto joanino seriam 300 denários (Jo 12.5), representando quase que o ano inteiro do trabalho de um homem do povo. Já em Mateus, o preço do perfume seria de 30 siclos que era o preço da vida de um escravo, conforme previsto no Código da Aliança (Ex 21.32). Ou seja, era grana pra caramba! Daria para alimentar muitas pessoas famintas.

A resposta de Jesus aos discípulos foi também muito significativa. Os pobres eles sempre teriam. Porém, o mesmo não seria possível dizer acerca de sua pessoa no meio do grupo já que a hora do martírio estava próxima.

Ao dizer para os discípulos que “os pobres, sempre os tereis convosco” Jesus estava legitimando a opressão e a exclusão afim de que a Igreja se mantivesse inerte em sua luta por Justiça como acabou fazendo na maior parte de sua bimilenar história?

Penso que não. Pois me parece que Jesus estava ensinando sobre como prestar uma assistência mais qualificada ao próximo. Como amar verdadeiramente com intensidade a quem nós conhecemos para não nos perdemos numa fria distribuição de riquezas onde a pessoa ajudada passa a ser mais um número do que um ser.

Será que o trabalho social deve nos tornar tão rígidos a ponto de considerarmos um “desperdício” promover uma festa em benefício de um membro da equipe com direito a bolo, ida a um restaurante ou até mesmo um bom vinho? Iremos limitar a assistência prestada a esmolas?

Acertadamente Jesus ampliou todos os conceitos da Lei de Moisés para que os seus discípulos pudessem contemplar a essência dos mandamentos e experimentassem o amor. Jamais ele se prendeu à rigidez das normas escritas ou permitiu que uma prática de vida viesse a se tornar uma conduta restrita, alienante, bitoladora ou compulsiva. E isso abrange vários atos da vida humana além das doações.

Sendo eu um ecologista, vou sempre ter que deixar de comprar uma rosa para dar de presente a alguém num momento especial só porque estaria contribuindo com uma cultura agrícola que ainda usa muitos agrotóxicos, desperdiça água e ocupa terras férteis que poderiam ser destinadas à produção de alimentos ou mesmo à recuperação dos ecossistemas nativos?

Temos hoje centenas de milhões de habitantes vivendo na mais absoluta miséria ao redor do planeta, o que significa muito mais do que a população mundial na época de Jesus. São pessoas vítimas de um sistema econômico e político excludente. Algo que certamente não se resolve apenas com as anuais campanhas de fraternidade da Igreja Católica ou com um programa oficial tipo o Fome Zero, o Bolsa Família, etc. Mesmo se todos os cristãos decidissem sacrificialmente privar-se de seus luxos, ainda assim seria necessário mais do que dinheiro para que cada indivíduo recupere sua dignidade. Teríamos que derramar vasos de perfumes sobre a cabeça de cada pequenino!

Com seu gesto, Maria de Betânia não apenas reconhecer que o carpinteiro de Nazaré era o Messias (os antigos monarcas de Israel eram ungidos) como também ensinou para todas as gerações o que é amar. Não é por menos que o Mestre ordenou que onde fosse proclamado o Evangelho, houvesse memória daquele extravagante ato de caridade.

Que seja intenso o nosso amor pelos pobres!


OBS: A ilustração acima, “Unção de Jesus”, tem a sua autoria é atribuída a Maitre François (cerca de 1475-1480), tendo sido extraída de http://www.biblical-art.com/artwork.asp?id_artwork=18119&showmode=Full e pela Wikipédia.

2 comentários:

  1. Rodrigo, creio que quando Jesus disse que sempre teríamos os pobres conosco, ele foi realista; os pobres ainda estão aqui conosco.

    No mais, seu artigo é excelente é concordo com o teor dele; também concordo que o ato da mulher tinha o significado de reconhecer em Jesus, o ungido, o messias.

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    1. Mais um interessante ponto de vista sobre as palavras de Jesus, Edu. De modo algum descarto a sua interpretação. Aliás, o que disse vem complementar a ideia de que os pobres a Igreja sempre precisará cuidar.

      O teólogo Sandro Gallazzi, em seus brilhantes comentários sobre o Evangelho de Mateus, assim partilhou no seu livro. Veja que brilhante a análise dele:


      "(...) Mostrando que tinham entendido a mensagem anterior de Jesus - estava com fome e me destes de comer -, os discípulos falam dos pobres para justificar sua reação de indignação. Esquecem um detalhe: para vender o inguento e transformá-lo em dinheiro a ser dado aos pobres, precisamos encontrar alguém, muito rico, que tenha dinheiro sobrando e que compre o nosso unguento, que, afinal, não passa de algo supérfluo. Só os ricos podem ajudar os pobres: eles só têm como dar dinheiro para a comida, a bebida, a roupa de que os pequeninos necessitam e que nós iremos, generosamente, distribuir. Quantas vezes esta lógica norteou as ações assistencialistas em nossas Igrejas!? (...) O pobre não é coitadinho, destinatário de nossas esmolas que nos fazem sentir tão bem, com a alma lavada de quem cumpriu o seu dever. Se o pobre é como Jesus, então ele é o nosso ungido, o nosso cristo, o nosso messias. Aos pobres que sempre teremos conosco teremos que fazer-lhes o bem, anunciar-lhes o Evangelho, prepará-los para ser capazes de dar a vida pela justiça do Reino (...) A eles, nossas Igrejas, quase sempre, dão esmolas e aproveitam para fazer catequese, e deixam de anunciar o Evangelho, furtando-os da úncia verdade que pode animar seu protagonismo e fortalecer sua resistência e sua luta. Não basta crer no Deus dos pobres. É preciso, é indispensável crer nos pobres de Deus, com a mesma força, com a mesma firmeza. Não se pode crer no filho de Deus e deixar de crer nos filhos dos homens. Fortalecido pela unção da mulher, Jesus irá enfrentar os poderosos, irá enfrentar a morte de cruz. Judas não esperava por isso. Se ele quiser morrer, então para que estar com ele? É melhor entregá-lo aos sumos sacerdotes: afinal, eles são, oficialmente, os verdadeiros e únicos ungidos. Se não dá para conseguir as trezentas pratas, vamos nos contentar com as trinta que o templo nos oferece."


      Como se vê, Edu, a unção de Jesus como o Messias, feito pela mulher de Betânia, conforme nós dois compartilhamos, faz todo o sentido e nos leva a uma compreensão maior ainda dos fatos.

      Abraços e boa semana!

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