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terça-feira, 29 de maio de 2012

A causa do Reino e a família

“Se alguém vem a mim e não aborrece a seu pai, e mãe, e mulher, e filhos, e irmãos, e irmãs e ainda a sua própria vida, não pode ser meu discípulo” (Lucas 14.26; ARA)

“Quem ama seu pai ou sua mãe mais do que a mim não é digno de mim; quem ama seu filho ou sua filha mais do que a mim não é digno de mim” (Mateus 10.37; ARA)


Em diversos momentos, estes e outros versículos dos evangelhos em que Jesus fala de uma oposição à família parecem-me mal interpretados. Tanto pelos críticos do cristianismo como pelos próprios crentes. Eu mesmo já fiz questionamentos aos ditos atribuídos ao Senhor sobre o polêmico assunto.

Será que Jesus estava pedindo de seus seguidores uma dedicação sectária e que o colocasse acima de todos os afetos?

Teria sido Jesus tão imaturo a ponto de querer impor um amor condicional capaz de gerar uma desajustada cristolatria no meio social?

Por acaso as suas intrigantes palavras devem inspirar ascetismo ou fanatismo?

Não podemos negar que foi com base em passagens bíblicas como esta que representantes do clero católico começaram a promover a defesa de um celibato disciplinar. Muitos padres ainda advogam a ideia de que o próprio Jesus teria encorajado outros homens a segui-lo e estabelecendo como preço o abandono dos compromissos familiares como se tais responsabilidades fossem incompatíveis com o exercício ministerial na Igreja.

Mas afinal de contas, o que a mensagem de Jesus quer mesmo nos dizer?!

Para responder a esta indagação, só posso buscar entendimento através da experimentação do Evangelho nos dias atuais por meio de pessoas que realmente dedicam-se à causa de transmitir as boas novas ao mundo.

Antes de mais nada, compartilho que, na minha visão, o compromisso da causa do Evangelho é bem mais sério do que simplesmente trabalhar para uma organização religiosa. A causa do Reino requer determinação e desprendimento do ministro eclesiástico afim de que ele contribua para a promoção de mudanças profundas na sociedade. E aí o comportamento adotado poderá desagradar a própria família em vários aspectos.

No século XIX, Friedrich Engels (1820-1895) estabeleceu bem a relação existente entre a propriedade e a família em seu livro A Origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado (1884). Porém, muitos séculos antes do capitalismo moderno, Jesus teria chegado a considerações críticas não tão distantes do filósofo burguês comunista, percebendo o quanto a sociedade familiar é capaz de dificultar a ação de um membro que se propõe a se tornar um agente de transformação do Reino. Conta o Evangelho de Marcos que, após uma divergência com os fariseus, Maria e os irmãos do Senhor teriam vindo ao seu encontro porque entendiam que ele estivesse “fora de si” (Mc 3.21):

“E, quando os parentes de Jesus ouviram isto, saíram para o prender; porque diziam: Está fora de si (…) Nisto chegaram sua mãe e seus irmãos e, tendo ficado do lado de fora, mandaram chamá-lo. Muita gente estava assentada ao redor dele e lhe disseram: Olha, tua mãe, teus irmãos e irmãs estão lá fora à tua procura. Então, ele lhes respondeu, dizendo: Quem é minha mãe e meus irmãos? E, correndo o olhar pelos que estavam assentados ao redor, disse: Eis minha mãe e meus irmãos. Portanto, qualquer que fizer a vontade de Deus, esse é meu irmão, irmã e mãe.” (Marcos 3.21, 31-34; ARA)

Ainda assim, recuso-me a aceitar a ideia de que Jesus encorajasse os seus discípulos a deixarem o relacionamento com seus pais e irmãos, mesmo que ele defendesse a mudança de conceito sobre a família que deveria deixar de ser nuclear para abranger toda a comunidade de Israel.

Ora, sem dúvida que a chegada do reino de Deus requer a tomada de atitudes existenciais, as quais, por sua vez, poderão contrariar os interesses medíocres da família. Ciúmes, preconceitos e apego à reputação de prestígio diante da sociedade são situações que podem conflitar com a vivência do Evangelho.

Baseando-me em minha própria experiência, confesso que tenho sentido um pouco desses conflitos sofridos por Jesus depois que vim morar no Rio de Janeiro ficando mais próximo da família. Até dezembro do ano passado, eu e minha esposa Núbia estávamos vivendo numa cidade onde éramos só nos dois. Mas aqui no prédio onde residimos, estando cerca de duzentos metros de minha mãe e irmãos, não demorei muito para envolver-me com a situação sócio-ambiental dos comunidades carentes no entorno do bairro. Comecei a trazer preocupações quando passei a caminhar por tais localidades, fazendo coisas que o carioca de classe média por motivo de medo, preconceito ou indiferença não costuma fazer. E quando alguém desse social sobe o morro, diz-se logo que foi para “comprar drogas”.

Realmente a maneira “escandalosa” como Jesus agia, pode ter gerado perplexidades em seu meio familiar. Voltando-se para os pobres, prostitutas, publicanos e criticando a hipocrisia dos estimados fariseus da Galileia, não demorou para que a sua própria família resolvesse tomar uma atitude quando, na certa, souberam que até escribas vindo de Jerusalém estavam acusando-o de agir possesso por Belzebu (Mc 3.22). Tanto é que Maria e seus demais filhos vieram para prender o Senhor.

Entretanto, creio que Jesus em momento algum desistiu de seus parentes. Segundo o Evangelho de João, Maria era uma das mulheres que estavam ao pé da cruz junto com o “discípulo amado” que veio a se tornar o “seu filho” (Jo 19.25-27). Entre os que perseveraram em oração nos dez dias após a ascensão e que antecederam ao evento do Pentecostes, sua mãe esteve novamente presente (At 1.14). E, pelo que se conclui a partir de outros escritos do Novo Testamento, Tiago e os demais irmãos do Senhor teriam abraçado a causa do Reino após o testemunho da ressurreição (comparar Jo 7.5; At 12.17; 15.13; 1Co 15.7; Gl 1.19).

Portanto, penso que nunca devemos deixar de lado as nossas famílias, mas também não podemos permitir que interfiram nas escolhas existenciais que fazemos, sendo certo que, mais cedo ou mais tarde, ainda seremos reconhecidos por decidirmos cumprir a vontade do Pai. Por isso, podemos crer que o discipulado de Jesus irá nos proporcionar muitos pais, mães, irmãos e irmãs através de uma vida na comunidade:

“Tornou Jesus: Em verdade vos digo que ninguém há que tenha deixado casa, ou irmãos, ou irmãs, ou mãe, ou pai, ou filhos, ou campos por amor de mim e por amor do evangelho, que não receba, já no presente, o cêntuplo de casas, irmãos, irmãs, mães, filhos, e campos, com perseguições; e, no mundo por vir, a vida eterna.” (Mc 10.29-30; ARA)


OBS: A ilustração acima refere-se ao quadro retratando a crucificação de Jesus feito pelo artista italiano Gentile da Fabriano (1370-1427) que teria vivido no final da Idade Média.

Um comentário:

  1. Olá, amigos!

    Este texto eu publiquei também no blogue da Confraria Teológica Logos e Mythos e quem desejar pode postar os seus comentários lá:

    http://logosemithos.blogspot.com.br/2012/05/causa-do-reino-e-familia.html

    Um abraço a todos e obrigado por me lerem.

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