Páginas

domingo, 9 de outubro de 2011

O olhar de Moisés e a experimentação do Santíssimo

Em quatro décadas de exílio, no país de Midiã, certamente que Moisés já deveria estar habituado com aquelas áridas paisagens da Península do Sinai. Seus dias pareciam ser monótonos para o ponto de vista de um ocidental moderno e compreendiam uma incansável rotina de pastoreio dos animais do sogro com quem ele morava. Ir para o Norte, para o Sul, Leste ou Oeste, sem dúvida eram caminhos bem conhecidos pelo príncipe que se recusou a ser chamado "filho da filha de Faraó" e que, preferindo o maltrato junto com o seu povo, não encontrou outra solução a não ser deixar o Egito das pirâmides com todos os seus ricos tesouros.

Certa vez, conduzindo o rebanho para além do deserto, Moisés chegou a um monte chamado Horebe que, futuramente, viria a ser conhecido como a "Montanha de Deus" e se tornaria destino de inúmeras peregrinações religiosas judaicas, cristãs e muçulmanas. Até aí, porém, aquela elevação era só mais um componente da geografia da região onde ele habitava anonimamente. Só que, naquele dia, que poderia ter sido igual a todos os outros que o antecederam, Moisés resolveu prestar a atenção em algo diferente, alcançando uma primária experiência que mudaria não somente a sua vida como a história da nação de Israel.

"Apareceu-lhe o Anjo do SENHOR numa chama de fogo, no meio de uma sarça; Moisés olhou, e eis que a sarça ardia no fogo e a sarça não se consumia. Então, disse consigo mesmo: Irei para lá e verei essa grande maravilha; por que a sarça não se queima?" (Êxodo 3.2-3; ARA) - destaquei

A princípio, aquele fenômeno misterioso não amedrontou Moisés. Deixando-se levar pelo desejo de auto-pesquisa, ele resolveu dar uma espiada naquela simples planta espinhosa cuja madeira é "imprestável para talhar ídolos", conforme bem observa a literatura judaica pós-bíblica. Só que o orgulho e a soberba não tinham espaço no coração daquele peregrino octagenário cheio de vitalidade e ainda capaz de se maravilhar diante das situações mais comuns da natureza. Mesmo tendo sido um nobre da coorte da maior super potência do segundo milênio antes de Cristo.

Como explicar aquele acontecimento através da ciência ensinada nas universidades dos egípcios? Nem nos laboratórios e biblioteca da Harvard do Nilo existiam soluções para tal problema. Por se tratar de um mistério, o fato jamais poderia ser compreendido pela metodologia teórica passada nos livros. Logo, a única saída seria Moisés experimentar subjetivamente, saindo um pouco de si mesmo e procurando estudar a realidade por todos os ângulos ao seu alcance.

Assim fez Moisés quando se interessou pelo episódio da sarça que ardia e não se consumia, atentando para a realidade divina que há em todas as coisas e em todas as pessoas. Com abertura, livre de preconceitos acadêmicos e de ideias prontas, Moisés aproximou-se do arbusto. Ele não se negou ao questionamento e fez daquele momento uma grande oportunidade para seu enriquecimento pessoal através de um saber verificável que jamais pode prender-se a condutas dogmáticas ou fundamentalistas.

Ao inebriar-se com a visão da sarça em chamas, aflorou em Moisés aquele mesmo desejo de saber original dos patriarcas, mas que foi reprimido durante séculos de dominação econômica, política e cultural. Deixando de lado a alienação imposta pelo dominador, ele soube dar vazão à sua subjetividade na investigação do objeto a sua frente afim de situar-se com consciência na realidade. E, com isto, também permitiu que a verdade se estabelecesse nele de maneira libertadora, rompendo todas as correntes da opressão escravocrata e da dependência ideológica, as quais incutem o medo nas consciências, ferindo, humilhando, rebaixando a autoestima, silenciando a dança e a palavra de um povo afim de coisificar o ser.

Contudo, a investigação do sagrado requer do sujeito uma profunda reverência. E foi o que Moisés aprendeu. Após perceber seu chamado quando se aproximou da sarça, ele se deparou com a advertência que todos nós precisamos interiorizar:

"Vendo o SENHOR que ele se voltava para ver, Deus, no meio da sarça, o chamou e disse: Moisés! Moisés! Ele respondeu: Eis-me aqui! Deus continuou: Não te chegues para cá; tira as sandálias dos pés, porque o lugar em que estás é terra santa." (versos 5 e 6; mesma tradução bíblica)

Ao experimentarmos o Deus vivo, devemos lembrar que não estamos diante de qualquer pessoa e muito menos diante de uma força da natureza. Ele é o Santíssimo e subsiste em seu próprio existir, sendo infinito e absolutamente transcendente. Pois até os termos "Santo", "Eterno", "Pai" ou o impronunciável Tetragrama YHWH (consoantes de Yahweh), bem como outras possíveis representações, tornam-se todas insuficientes para definir quem as diversas tradições religiosas do planeta entendem ser o "Criador e Rei do Universo" por serem conceitos construídos conforme a nossa imagem e semelhança.

"Tirar as sandálias" é fundamental para que possamos incessantemente buscar o Deus vivo ao invés de encontrarmos um ídolo mudo, motivo pelo qual o Pai Nosso é iniciado pelo reconhecimento da santidade do Nome de Deus (conf. Mt 6.9). Porém, o célebre episódio da Torá mostra-nos o quanto descalçar os pés é ato simbólico e que todos os métodos de participação do Mistério poderão ser insuficientes por mais disciplinados que busquemos ser. Isto porque não existe receita espiritual para um encontro com o Eterno como se pudéssemos achá-lo frequentando um "lugar sagrado", ouvindo um louvor específico, sentando numa posição como a da ioga ou pronunciando palavrinhas mágicas. Pois, ainda que algumas boas práticas de vivência ajudem a relaxar a mente, elas jamais serão a real experiência.

O conto bíblico em análise, tido como proveniente da tradição javista pela Teoria Documentária e que corresponde aos seis primeiros versículos do capítulo 3 de Êxodo, seria antes de mais nada uma mera narrativa que nos ensina de maneira romanceada a aproximação mística do homem com Deus. Ela parece ser despida de qualquer historicidade, sendo, evidentemente, fruto do imaginário de um povo em que a oralidade precedeu o registro nas Escrituras. Aliás, o próprio nome hebraico do segundo livro da Torá (Shemot), tem por objetivo focar nos chamados de Moisés e de Israel.

Hoje, se formos visitar a Península do Sinai, e procurarmos pelo monte sagrado da revelação, certamente que não encontraremos ali nem anjos ou plantas queimando misteriosamente. Até a localização exata do Horebe é algo incerto e bastante discutível entre os estudiosos. Contudo, quem pagar por um turismo exótico desses, certamente voltará para casa ou frustrado, ou convicto de que a Luz Divina não está restrita a um lugar específico do globo terrestre.

Com esta maravilhosa historia judaica aprendemos basicamente que precisamos olhar atentamente os fatos ao nosso redor e agirmos com reverência em relação ao Mistério Sagrado que a todo instante fala em qualquer local com os homens. Deus está em você, em mim, na natureza, nos animais, nas estrelas e em cada acontecimento. Sua glória pode manifestar-se até nos momentos mais ociosos do cotidiano. Seja na fila de um banco, quando nos encontramos presos num congestionamento, durante as tarefas domésticas ou na conversa mantida com alguém. Então, se prestarmos a atenção, talvez encontraremos um "arbusto em chamas" diante de nosso rosto.


OBS: A ilustração acima refere-se a uma pintura de 1848 na Catedral de São Isaac, em São Petersburgo, cuja autoria é atribuída ao artista russo Eugène Pluchart (1809-1880). A obra retrata Deus aparecendo a Moisés no episódio da sarça ardente (Êxodo 3). Parte da inspiração deste artigo veio de uma leitura do sugestivo livro Experimentar Deus: a transparência de todas as coisas, editora Vozes, do pensador Leonardo Boff, bem como de The Gospel of Thomas: a Guide for Spiritual Practice, de Ron Miller.

7 comentários:

  1. A história de Moisés parece ser despida de qualquer historicidade, sendo, evidentemente, fruto do imaginário de um povo em que a oralidade precedeu o registro nas Escrituras. (Rodrigo)

    Concordo com sua assertiva acima.

    A história conta que no Egito, Moisés entrou em contato com a religião de Aten, que era um espécie de monoteísmo incipiente.
    Aten introduzira no Egito um deus universal, Em um de seus hinos, ele declara expressamente: “Ó tu, único Deus, ao lado de quem nenhum outro existe”.

    Esse quadro religioso pode ter influenciado Moisés no seu projeto político de formar uma nova nação, O deus de Aten, era representado pelo sol – astro que a visão humana não consegue enxergar por um tempo maior, pois pode incorrer em cegueira.

    Talvez, no inconsciente de Moisés, a imagem forte do sol (fogo) tenha projetado em sua consciência a visão de uma sarça resplandecente e ardente (um sucedâneo do deus da religião de Aten)

    No Egito, esse deus só poderia ser apreciado no ocaso (quando ia embora), daí a razão do inconsciente de Moisés projetar a imagem de um deus que ele só pode ver pelas costas – justamente correspondendo ao por do sol do Egito, quando se podia apreciar o astro-rei sem o perigo de ficar cego. (Vide Moisés e o Monoteísmo - - volume XXIII da coleção standard de Freud – Editora Imago)

    Depois eu apareço para ler os demais comentários...

    ResponderExcluir
  2. Prezado Levi,

    Você veio a focar justamente neste detalhe?! (rsrsrs)

    Embora me pareça pela análise das Escrituras que foram os hebreus quem influenciaram o breve período de monoteísmo egípcio (vide Gn 41.45 em que José teria se tornado genro do sacerdote de Om, onde era o centro da celebração do culto ao deus sol - Ra), o que você colocou tem fundamento. Inclusive porque, de acordo com a Torá, Moisés teria vivido bem depois dos patriarcas e a sua cosmovisão torna-se fruto de uma interatividade.

    A ideia de Deus como um ser radiante, tal como é o Sol que envia a sua luz para a Terra encotnra-se bem relacionada em diversas ttradições religiosas. Uma possível tradução para o nome Israel, conforme compartilohou num amigo na rede social dos Irreligiosos seria "aquele que lutou com um ser celeste". Segundo ele:

    "Deus deriva de dius (Dic. de Nomes, Antenor Nascentes), que significa 'brilhante' como o Sol, a fonte da vida na Terra. A palavra 'deus' tem sua origem no mito do deus abstrato, o deus solar. Ao passo que a terminação El significa 'ser celeste' (Dic. Bíblico Makenzie). Ser celeste significa o ser que veio de fora, porque céu é uma ilusão de ótica e os antigos sabiam muito bem disso. Dois conceitos diferentes unidos por um confronto cultural. Nada mais estranho."
    (Ivani Medina, extraído de http://irreligiosos.ning.com/profiles/blog/show?id=2626945%3ABlogPost%3A20846&commentId=2626945%3AComment%3A21725)

    Na Bíblia, tem-se a comparação da glória divina, a Shekhinah (transliteração da raiz hebraica shkn = habitar), com o brilho solar e, por sua vez, entende-se que a mesma possa também chamar-se "Divina Presença" ou "Luz Divina". E diz as Escrituras:

    "Moisés não podia entrar na tenda da congregação, porque a nuvem permanecia [Shakhan] sobre ela, e a glória do SENHOR enchia o tabernáculo" (Êxodo 40.35; ARA)

    ResponderExcluir
  3. Em tempo!

    Para o judaísmo, a Shekhinah é uma energia cósmica poderosíssima em si mesma e que habita no "interior" do Universo vivificando-o, sendo, portanto, a sua "alma" ou "espírito".

    Curiosamente a palavra Shekhinah não se encontra na Bíblia. Ela é uma construção da literatura rabínica, influenciada sobretudo pelos cabalistas e mestres hassídicos. Muitos a consideram como a face feminina da revelação divina, a "mulher de cima" que, segundo O Zohar, acompanha os homens em suas viagens, suprindo suas necessidades afetivas, quando estes estão distantes de suas companheiras.

    Abraços.

    ResponderExcluir
  4. Rodrigão, a multiforme graça e sabedoria Divina não está confinada a programações, grifes ou padronizações religiosas, e as vezes é tão sutil que somente os que se desarmaram da prepotência de querer engarrafar sua ação é que percebem a sarça queimando no coração.

    Abçs e bons estudos!

    ResponderExcluir
  5. Olá, Franklin! Você soube resumir bem a questão. E não há como engarrafar a ação da Shekhinah. Bendito seja o Eterno!

    Abração!

    ResponderExcluir
  6. rodrigo,

    belo e informativo texto!

    cito aqui para contribuir com as lições que podem ser tiradas desse profundo conto hebraico, o comentário na torá de moisés, ed. sêfer:

    "(...)a sarça tem espinhos e o espinho é a planta da dor, tal como israel é o povo do sofrimento. a sarça ardia no fogo mas não se consumia; assim a dor pode arder no povo de israel, mas sem destruí-lo jamais"

    o comentário do levi também foi providencial; também acredito que historicamente, o monoteísmo é uma invenção egípcia e não judaica.

    ResponderExcluir
  7. Olá, Edu!

    Na verdade, o que eu mais desejei enfatizar com o texto foi a autoexperimentação, em que cada um, na qualidade de pesquisador livre, busca com amor o conhecimento da Verdade.

    Também tenho a Torá – A Lei de Moisés do rabino Meir Matzliah Melamed. Os comentários, embora expressem uma visão judaica a meu ver bem ortodoxa, são bem enriquecedores para pessoas como nós que viemos de uma cultura cristã e que, portanto, temos um conhecimento ainda muito limitado em matéria de judaísmo. E aí as interpretações baseadas no Talmude e nos mestres medievalistas acabam enriquecendo bem o nosso conhecimento pessoal.

    Sinceramente, ainda não consigo ver o monoteísmo como uma invenção egípcia, mas posso admitir que a concepção de Israel possa ter recebido alguma contribuição.

    Como toda nação politeísta, o Egito tinha sacerdotes de diversos deuses e, obviamente, cada qual puxava sardinha para o deus a quem se devotava. E às vezes a devoção ou pertença a um deus estava relacionada à astrologia, isto é, ao dia de nascimento da pessoa.

    De acordo com Gênesis, o nome da esposa de José dava a entender que ela era devota da deusa Neith. O nome do sogro dele, Potífera ou Putifar, significa "Dom de Rã" que seria o deus solar. E como sacerdote de On, que em grego seria Heliópolis (helio = sol; polis = cidade), fica evidente que se tratava de um devoto do deus Sol.

    Mas considerando a origem mesopotâmica dos hebreus, teríamos que admitir que eles eram inicialmente politeístas. Só que aí fica uma indagação:

    Os hebreus desenvolveram o monoteísmo no Egito ou antes?

    Levando em conta a história de Abraão, teria sido antes, sendo que seus familiares, assim como as esposas de Isaque e de Jacó, seguiam tradições politeístas. O fato de Jacó ter dito à sua família que de desfizesse dos ídolos do lar (Gn 35.2) dá a entender que o monoteísmo começou a ser praticado antes da entrada no Egito.

    Ainda asism, estamos diante de uma questão que carece de invesigação histórica mais aprofundada para sabermos quem influenciou quem primeiramente. Se foram os hebreus ou os egípcios, sendo que, de acordo com a Torá, os dois povos não se misturavam e para os egípcios era considerado uma abominação comer junto com os hebreus ou mesmo presenciar o culto israelita. Na certa por causa do consumo de carne animal.

    Abraços.

    ResponderExcluir