No Evangelho de Mateus, são contados três ensinamentos em sequência, atribuídos a Jesus, os quais nos falam acerca da percepção do valor do "Reino de Deus". Tratam-se das parábolas do "Tesouro Escondido", da "Pérola" e da "Rede". A primeira delas, que tem um paralelo interessante com o Evangelho de Tomé nos diz que:
"O reino dos céus é semelhante a um tesouro oculto no campo, o qual certo homem, tendo-o achado, escondeu. E, transbordante de alegria, vai, vende tudo o que tem e compra aquele campo". (Mt 13.44; ARA)
"Jesus disse: O Reino é como o homem que tinha um tesouro [escondido] em seu campo sem saber. Após sua morte, deixou o campo para seu [filho]. O filho não sabia [a respeito do tesouro]. Ele herdou o campo e o vendeu. O comprador ao arar o campo encontrou o tesouro. Começou então a emprestar dinheiro a juros a quem queria." (To 109)
Analisando esta história, notamos que o antigo proprietário do campo era alguém que jamais conheceu a enorme riqueza que havia no subsolo de suas terras e deixou de maneira cega que ela escapasse de suas mãos. Então, ele a entregou para outro vendendo o tesouro desapercebidamente.
Ora, como que alguém pôde ser tão negligente a ponto de ter utilizado o seu campo com extrema superficialidade sem jamais tomar a iniciativa de arar o solo com mais cuidado? Talvez o vendedor do terreno tivesse ocupado demais para se preocupar com coisas que julgasse improváveis de ocorrer ou então era um tremendo de um preguiçoso que preferiu arrendar aquilo que possuía para que outro plantasse e colhesse. Porém, o certo é que seus horizontes eram bem restritos e ele foi incapaz de ao menos indagar criticamente por que razão o comprador desfizera-se de tudo o que tinha para se tornar dono daquele sítio.
Acontece que este vendedor desatento muitas das vezes somos nós mesmos em relação às preciosidades da vida. Deixamos de experimentar as melhores atrações da existência humana para nos distrairmos com coisas bem pequenas tipo comprar o novo modelo dos televisores expostos na vitrine de uma loja de eletrodoméstico, exibir um carro novo pelas ruas da cidade ou vestir a roupinha da moda, ainda que nos endividando com prestações a perder de vista, colaborando com um sistema financeiro que escraviza tanto os consumidores quanto os trabalhadores, empresários e a economia global.
Uma questão deve ser levantada: até quando vamos ficar sonhando com o estilo de vida perdulário e vazio dos norte-americanos?
Afim de satisfazermos o nosso ego insaciável, destruímos tudo em volta e a própria vida que temos. Abrimos mão da paz interior e de compartilharmos um mundo melhor com o próximo. E estudos demonstram que, se todos os habitantes do globo terrestre tivessem o mesmo padrão de consumo dos ianques, nem dois planetas seriam suficientes para suprir a demanda por recursos naturais. Pois, se prosseguirmos nesta ambição, em que condições a humanidade viverá num futuro próximo?
Contudo, o homem que se desfez alegremente de tudo o que tinha afim de de adquirir o campo, demonstrou profunda sensibilidade em relação à vida. Pois, para encontrar o tesouro, ele precisou transcender a superficialidade quando se dispôs a arar a terra e a prestar atenção em alguma coisa estranha no subsolo. Talvez a sua enxada tenha batido em algo duro que ele poderia até ter pensado que se tratasse de um pedregulho e não se importado. Só que a sua curiosidade e interesse foram maiores, levando-o a cavar com persistência e fé até descobrir algo de grande valor.
No Comentário Bíblico Africano, Joe M. Kapolyo, teólogo batista de Zâmbia, conta-nos uma história ocorrida em seu país, na primeira metade do século passado, e que de certa maneira tem a ver com a parábola do tesouro:
"A extração de cobre em grande escala em Copperbelt, na Zâmbia, começou em 1922. Dizem que uma das maiores minas, a Luanshya, começou quando um explorador [William Collier] atirou em um antílope e descobriu sinais escritos com cobre numa rocha próxima ao corpo do animal. Grandes esforços foram empreendidos para remover os proprietários originais do local e abrir caminho para a instalação da nova mina. O explorador percebeu o valor dos depósitos de cobre e vislumbrou a possibilidade de grandes riquezas, por isso ele e seus associados fizeram de tudo para adquirir a terra e os direitos de exploração sobre ela. A parábola do tesouro enterrado num campo é a versão palestina do século I para a história dos depósitos de cobre na Zâmbia. O tesouro oculto claramente não pertence ao dono da terra, pois, se pertencesse, ele jamais a venderia. Ao encontrar o tesouro, o homem vendeu tudo o que possuía para comprar a terra, sabendo que havia algo muito mais valioso enterrado ali (13:44)" - com adaptações, sendo meu o destaque em negrito
Por mais chocante que seja esta história para os valores de hoje, ainda mais porque o autor fala em caça de animais, sendo implícito que, na época (década de 20), havia uma repugnante relação exploratória de colonialismo e de usurpação dos recursos naturais dos povos nativos africanos, devemos nos prender no sentido da parábola, abrindo as portas da nossa compreensão para o ensinamento proferido. E, assim como no caso do tesouro escondido, o comerciante de pérolas (Mt 13.45-46) soube canalizar o seu desejo para alcançar as melhores coisas. Ao achar a joia de grande valor, nada mais lhe importou a não ser conseguir aquela preciosidade, a qual, certamente, deve ter sido vendida por quem não soube avaliar a fineza do material:
"O reino dos céus é também semelhante a um que negocia a procura de boas pérolas; e, tendo achado uma pérola de grande valor, vende tudo o que possui e a compra." (Mt 13. 45-46; ARA)
Na vida, quando procuramos por algo que realmente será bom para nós, devemos empreender uma busca intensa. Nenhuma outra coisa pode nos distrair do objetivo almejado. Temos que aprender a focar e sermos verdadeiros naquilo que decidimos fazer.
Neste sentido, a terceira história contada por Jesus (Mt 13.47-50) tem muito a nos ensinar. A Parábola da Rede, a meu ver, transmite a ideia de pescadores sábios que descartam as coisas ruins que apanham durante o trabalho no mar, selecionando e armazenando somente os peixes bons. Aliás, neste dito atribuído a Jesus, se forem desconsiderados os dois versículos seguintes, pode guardar mais semelhanças com as duas histórias anteriores do que com a do joio e do trigo (Mt 13.24-30). Pois para mim, os redatores do 1º Evangelho talvez tenham se equivocado ao posicionarem os versos 49 e 50 ali e não depois do 30. Tanto é que a sentença 8 do Evangelho de Tomé passa uma visão que não tem muito a ver com a ideia escatológica que, possivelmente, foi a Igreja quem tentou transmitir e não Jesus. Senão vejamos comparando apenas os versos 47 e 48 do capítulo 13 de Mateus com o texto não aceito pelo cânon católico do Novo Testamento:
"O reino dos céus é ainda semelhante a uma rede que, lançada ao mar, recolhe peixes de toda espécie. E, quando já está cheia, os pescadores arrastam-na para a praia e, assentados, escolhem os bons para os cestos e os ruins deitam fora." (Mt 13.47-48; ARA)
"E ele disse: O homem é como pescador sábio que lança sua rede ao mar e a retira cheia de peixinhos. O pescador sábio encontra entre eles um peixe grande e excelente. Joga todos os peixinhos de volta ao mar e escolhe o peixe grande sem dificuldade. Quem tem ouvidos para ouvir, ouça." (To 8)
Atentando para este ensino do evangelho lamentavelmente tido como "apócrifo" por católicos e protestantes, percebe-se que a sabedoria do pescador reside em sua concentração no peixe grande e proveitoso. Tanto é que os pequenos são devolvidos ao mar e ele não perde seu tempo tentando colecionar coisas inúteis.
Igualmente, nós também devemos aprender a pescar o "peixe grande" afim de não nos ocuparmos com coisas irrelevantes que nada acrescentarão à nossa evolução pessoal e experimentação da vida. Pois, todas as vezes em que dispersamos energia em busca dos "peixinhos", estamos é atendendo aos caprichos
do ego e perdendo oportunidades incríveis de crescimento espiritual através das circunstâncias que nos são oferecidas a cada dia.
Confirmando o valor do Reino de Deus, a Epístola aos Filipenses mostra-nos o quanto o apóstolo Paulo parece ter compreendido esta verdade:
"Mas o que para mim, era lucro, isto considerei perda por causa de Cristo. Sim, deveras considero tudo como perda, por causa da sublimidade do conhecimento de Cristo Jesus, meu Senhor; por amor do qual perdi todas as coisas e as considero como refugo, para ganhar a Cristo". (Fp 3.7-8; ARA)
Como se vê, Paulo considerou como "refugo" (lixo ou esterco) qualquer coisa que interferisse em sua busca pelo que chamou de "sublimidade do conhecimento de Cristo", o que, em outras palavras, significa não uma compreensão intelectual de algum assunto, mas sim a experimentação do Reino de Deus em sua vida, o que podemos compreender como a verdadeira salvação e libertação do ser.
Desejo que nós possamos assimilar este aprendizado de Paulo e as esclarecedoras palavras de Jesus, fazendo os nossos ouvidos atentos e procurando aquilo que é incomparavelmente melhor a qualquer outra coisa desta vida.
Tenha um ótimo descanso neste final de semana!
OBS: A primeira ilustração acima trata-se do quadro Parábola do Tesouro Escondido, pintado por Rembrandt por volta de 1630. Já a terceira imagem refere-se à obra do italiano Domenico Fetti (1589 - 1623), a Pérola de Grande Valor. E a quarta ilustração é uma gravura do holandês Jan Luyken (1649 - 1712) representando a Parábola da Rede. Todas elas extraídas da Wikipédia. Somente a segunda, que mostra William Collier abatendo o antílope é que foi retirada de um site oriundo da Zâmbia: http://lindasmith.co.za/pages/gallery/copperbelt-219.php
Quanto às citações do Evangelho de Tomé, as tais foram extraídas da seguinte página na internet http://www.igrejavaroesdeguerra.com.br/LIVROS/Apocrifo_Evangelho_Tome.pdf
Rodrigão, vejo que apesar das ansiedades do espírito por coisas excelentes, muitas pessoas não se apercebem, e buscam tapar esse grito com coisas supérfluas. Na medida que o vazio vai crescendo, as dívidas também vão aumentando sem contudo trazer alívio.
ResponderExcluir"Uma questão deve ser levantada: até quando vamos ficar sonhando com o estilo de vida perdulário e vazio dos norte-americanos?"
Eu me pergunto: seria mesmo o sonho...? Ou este mal é peculiar a uma grande parte dos humanos?
Amei o estudo. Aprendo muito com você mestre.
Beijo.
Rodrigão, existem coisas boas e legítimas que se não forem bem administradas no nosso interior acabam se tornando destrutivas pra nossa alma.
ResponderExcluirComo está escrito: “Mas Deus lhe disse: Louco! esta noite te pedirão a tua alma; e o que tens preparado, para quem será?” (Lucas 12:20)
“Pois que aproveita ao homem ganhar o mundo inteiro, se perder a sua alma? ou que dará o homem em recompensa da sua alma?” (Mateus 16:26)
Perdemos nossa alma quando ela não chora mais com os que choram, quando as calamidades não nos assombram, quando a dor não nos dói e o olhar do desespero não nos desespera.
Perdemos nossa alma quando não nos sensibilizamos mais em perceber a vida e tratá-la com dignidade.
Bom fim de semana pra vc tbm.
rodrigo, você vai postar na confraria? se for, já é a sua vez, já que o próximo depois do levi seria o márcio, que está ausente. depois volto para comentar teu texto. abraços
ResponderExcluirGuiomar,
ResponderExcluirPor que você me chama de "mestre"?! (rsrsrs)
Penso que nem Jesus gostava que o chamassem assim, visto que ele sempre desejou que fôssemos irmãos e semelhantes a ele, sem jamais ter estabelecido um relacionamento de inferioridade ou de superioridade com os seus discípulos, estabelecendo um princípio de igualitarismo.
"(...) vejo que apesar das ansiedades do espírito por coisas excelentes, muitas pessoas não se apercebem, e buscam tapar esse grito com coisas supérfluas (...)"
Exato! As pessoas estão dormindo, imersas num sonambulismo, inconscientes. Pois, como aparece no versículo 113 do Evangelho de Tomé, "o Reino do Pai está espalhado pela terra e os homens não o vêem".
"Eu me pergunto: seria mesmo o sonho...? Ou este mal é peculiar a uma grande parte dos humanos?"
Não estar consciente da realidade do Reino entre nós e em nós faz parte da característica humana. Não concorda?
Grande abraço!
"existem coisas boas e legítimas que se não forem bem administradas no nosso interior acabam se tornando destrutivas pra nossa alma." (Franklin)
ResponderExcluirCom certeza, amigo! Uma delas é a internet que usamos para nos comunicar e até mesmo compartilhar a Palavra de Deus. Se eu me torno viciado no computador, deixando de lado outros aspectos de minha existência, como relacionar-me presencialmente com minha família e amigos, ouvir quem está próximo, contemplar um pouco a natureza ou dar atenção à minha saúde ou ao meu trabalho, aquilo que poderia ser bênção e uma ferramenta para o meu crecimento, acaba tornando-se prejudicial.
Você lembrou oportunamente das duas citações do Evangelho que foram citadas no comentário que postou. Foi através do paralelo de Marcos 8.36, "de que vale a um ser humano ganhar o mundo inteiro, se ele perder a alma?", que as palavras de Inácio de Loyola tocaram o coração de Francisco Xavier conforme li num livro do ex-padre norte-americano Ron Miller. E aí pergunto:
Tem algo mais realista do que a morte? Ela nos convence acerca da falibilidade de todos os nossos projetos! E não é por menos que o autor de Eclesiastes diz que "Melhor é ir à casa do luto do que ir à casa onde há banquete, pois naquela se vê o fim de todos os homens; e os vivos que o tomem em consideração" (Ec 7.2; ARA)
E aí o referido autor compartilha algo bem interessante, dizendo: "O adentrar no Reino de Deus é algo que nos desperta da inconsciência espiritual cujo aspecto de prazer é definido pela sociedade e, infelizmente, tal deleite é uma espécie de droga na qual a maioria de nós se encontra viciada". (O evangelho de Tomé: uma bússola para a evolução espiritual; tradução de Claudinei dos Santos. Rio de Janeiro: Nova Era, 2006, pág. 163)
"Perdemos nossa alma quando ela não chora mais com os que choram, quando as calamidades não nos assombram, quando a dor não nos dói e o olhar do desespero não nos desespera. Perdemos nossa alma quando não nos sensibilizamos mais em perceber a vida e tratá-la com dignidade." (Franklin)
Estou de pleno acordo, mano! E, às vezes, tal coisa ocorre quando estamos vivendo uma vida religiosa fazendo do ativismo eclesiástico uma compulsão tão prejudicial quanto o frenético consumismo. Quantas vezes, num desses "cultos" que se vê por aí em certas "igrejas", uma pessoa está triste e necessitada de um apoio, mas não encontra um ombro amigo. O irmãozinho do lado nem ao menos percebe a dor do outro e nem entende qual o seu papel naquela hora na satisfação da necessidade psicológica do próximo, mas se entrega a uma emburrecida "adoração" e simplesmente diz que "vai dar tudo certo".
"Se um irmão ou uma irmã estiverem carecidos de roupa e necessitados do alimento cotidiano, e qualquer dentre vós lhes disser: Ide em paz, aquecei-vos e fartai-vos, sem, contudo, lhes dar o necessário para o corpo, qual é o proveito disso?" (Tiago 2.15-16; ARA)
Valeu aí pela participação!
Abração!
Caro Edu,
ResponderExcluirObrigado aí pela lembrança. Porém, desta vez vou abster-me de publicar algo no blogue da Confraria. Pois, embora eu possa escolher um texto meu já escrito aqui no blogue, vou deixar a desejar caso não venha a estar presente na resposta aos comentários. E, por outro lado, prefiro não fazer algo superficialmente.
Caso você deseje, pode publicar em meu lugar e deixar lá qualquer texto de minha autoria aqui do blogue. Aliás, qualquer texto meu você, o Franklin, a Guiomar e os demais amigos que costumam participar podem divulgar nos seus respectivos sítios na internet. E tenho gostado de ver o desenvolvimento do seu blogue "Caminhos da Teologia" e espero que o site se torne um amplo espaço para estudos teológicos.
Forte abraço!