Vivemos num mundo administrado pela razão e manipulado pelas emoções. Os nossos governantes são racionais. O povo, porém, é sentimental, capaz de tomar as mais importantes decisões existenciais através do impulso.
Não considero errado a maioria das pessoas ter sentimentos. Ruim e antiético é alguém querer manipulá-los conforme seus próprios interesses, aproveitando-se da inocência alheia.
"Ai do mundo, por causa dos escândalos; porque é inevitável que venham os escândalos, mas ai do homem pelo qual vem o escândalo!" (Mateus 18.7; ARA)
O termo skandalon, utilizado pelo escritor do evangelho para expressar comparativamente em grego as mensagens de Jesus, tinha o significado de "pedra de tropeço" (Mt 16.23), o que não encontra um correspondente exato dentro do nosso idioma. Pode-se dizer que seria causar uma "queda", induzir a outra pessoa em erro.
"A palavra grega originalmente designava o alimento colocado na haste de uma armadilha; veio a significar, depois, qualquer coisa que faz tropeçar e cair numa armadilha." (Comentários da Bíblia de Estudo de Genebra ao verso 1 do capítulo 17 do Evangelho de Lucas)
Aproveitar-se da inocência alheia é uma conduta que foi hiperbolicamente reprovada por Jesus. Se seguirmos o texto bíblico, encontraremos a agressiva figura da mutilação de órgãos cujo sentido choca tanto os valores de hoje quanto os da sociedade judaica da época do Segundo Templo. Ali o Senhor chega a dizer que é melhor a pessoa entrar na Vida sem a mão, o pé ou um dos olhos do que ser jogado inteiramente no "inferno" (Mt 18.8-9).
Na história eclesiástica, houve gente que, não compreendendo o ensino de Jesus, chegou a levar tais versículos ao pé da letra, mutilando partes do próprio corpo. Alguns homens, a exemplo de Orígenes, praticaram até a autocastração genital, provavelmente porque não se conformavam com o fato de sentirem o natural desejo pelo sexo, numa absurda deturpação de Mt 19.12.
Mas afinal, o que a mensagem do Evangelho quer dizer com o arrancar um olho ou cortar a mão?
Dentre várias explicações possíveis e não excludentes, tenho pra mim que tanto a ideia da automutilação corporal quanto o "fogo eterno" são igualmente figuras de linguagem, pois Jesus parecia até zombar da existência de um castigo infernal. O que na certa estava sendo demonstrado contextualmente em Mateus seria o mal que alguém pudesse causar a si mesmo plantando "escândalos" afim de causar tropeços ao seu irmão, conduta esta que gera desconexão com a vida e torna vazia a existência de quem age assim. Logo, é mais sensato afastar o mal hábito de colocar "cascas de banana" no caminho dos outros.
E quais seriam os tipos de tropeços que costumamos armar contra as pessoas?
Ao meditar sobre isto, vejo inúmeras possibilidades, sendo que tudo parece começar com maliciosas palavras capazes de envenenar a mente do outro. Palavras que não edificam, mas destroem relacionamentos causando feridas.
Além de palavras, colocamos escândalos nos caminhos de alguém através de condutas fraudulentas. Sem nada dizermos, podemos influenciar a decisão do outro apenas pelo que aparentamos ser. Os gestos, a maneira de vestir ou de olhar não deixam de ser expressões da comunicação humana.
Em regra, o sujeito enganador busca despertar bons sentimentos na outra pessoa. Ele sabe que está tentando manipular alguém que é sincero, de bom coração, capaz de valorizar sua honra, praticar prontamente a caridade, nutrir expectativas, agir com fidelidade na relação afetiva e não consentir com o mal. Então, como nem sempre os honestos são suficientemente prudentes a ponto de perceberem a maldade humana, eles acabam sendo vítimas das mentiras.
Quantos tropeços não existem hoje em dia no meio religioso em geral?!
E o que dizer da política nacional? Sem palavras...
Para vivermos neste mundo cheio de lobos ferozes temos que aprender a proteger nossas emoções. Jesus recomendou que fôssemos "simples como as pombas e prudentes como as serpentes" (Mt 10.16 e Evangelho de Tomé 39), o que significa preservarmos o bom caráter e, simultaneamente, termos percepção sobre a malícia por trás dos argumentos de uma conversa mole. Principalmente diante de apelos sentimentais.
Assim como o aforismo da pomba e da serpente serve para ilustrar o comportamento sábio que precisamos ter diante das situações da vida, pode-se afirmar que há um grande segredo implícito na conciliação entre a razão e a emoção. É que, embora seja a emoção aquilo que nos permite desfrutar plena e diretamente dos bens da existência, a razão serve como uma excelente armadura protetiva. E, deste modo, quem sabe investir juntamente na razão e na emoção torna-se apto para compreender o universo com maior amplitude e alcança o desejado discernimento.
Que possamos não só deixar de criar skandalon para o próximo, mas também ficarmos atentos contra as armadilhas emocionais que colocam no nosso caminho e livrarmos o nosso irmão de tropeçar em coisas que vão afetar seus sentimentos.
OBS: Ilustração acima extraída do site http://www.propheticrevelation.net/the_sin_of_adam.htm
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ResponderExcluirRodrigão, abordagem consistente de um tema perigoso.
ResponderExcluirO problema está nos extremos, racionalismo ou sentimentalismo.
Tanto um como outro pode se valer do expediente de manipulação.
Racionais que manipulam sentimentais pela persuasão, e sentimentais que manipulam racionais pela emoção.
Agora, se eu vivesse no tempo de Orígenes com toda certeza teria de fazer uma lista de qual membro começaria amputando em meu corpo para dar sequência a castração.
Porque o sexo sempre foi o "CAPETA MOR" dos cristãos heim?!
Vale apelar para Freud!
Bem lembrado, Franklin! Devemos nos lembrar da persuasão racional dos sofistas cujas vítimas, infelizmente, sempre foram os mais emocionais.
ResponderExcluirSobre Orígenes, li em sua biografia que ele chegou a ser banido de Alexandria pela comunidade cristã de sua época. Porém, seu ato de radicalismo influenciou várias gerações pelos séculos seguintes. Aliás, até hoje sacrifícios absurdos ocorrem em crucificações na Filipinas durante a chamada "Semana Santa".
Enfim, acho que nem Freud, amigo. Nem Freud...
Rodrigão, se depois de conviver tres anos com os discípulos ensinado-lhes como viver neste mundo, Jesus houvesse andado por caminhos opostos aos seus ensinamentos, é claro que Ele teria se tornado uma montanha de tropeço. E não seria por comportamentos contrários ao que se prega, que o que ainda está cego tropeça tanto nos que se dizem cristãos?
ResponderExcluir"Basta ao discípulo ser igual ao seu mestre."
"E não seria por comportamentos contrários ao que se prega, que o que ainda está cego tropeça tanto nos que se dizem cristãos?"
ResponderExcluirOlá, Guiomar.
Como vai?
Acredito que a má conduta daqueles que são referência na Igreja realmente estimula os que são mais fracos na fé. No entanto, a responsabilidade de cada é um individual.
Se um irmão decide afatar-se da congregação, entregar-se aos vícios ou às drogas, abandonar sua esposa e filhos para viver com a amante, praticar atos de mal caratismo, dentre outras coisas reprováveis, não foi porque o pastor fulaninho de tal corrompeu-se. Foi escolha da própria pessoa e que muitas das vezes prefere atribuir culpas aos que são lideranças para não enfrentarem a responsabilidae por suas próprias escolhas.
Se, depois de ter reunido seus discípulos e exercido seu ministério, Jesus tivesse optado por uma vida de pecado (tipo ter se aliado com os políticos da sua época, por exemplo), ainda assim a falha dele não seria motivo para que outras pessoas viessem a errar. Mas é lógico que um erro acaba influenciando outros.
Antes de Jesus outros messias de Israel, digo, outros reis e líderes do povo, chegaram a falhar. Um deles foi Salomão que trouxe a idolatria para dentro de Israel e todas as gerações seguintes até o exílio sofreram consequências de seus erros, sendo que a maioria dos reis que o sucederam escolheram o mal caminho.
De todos os reis de Judá, quem melhor andou nos preceitos da Torá foi Davi. Depois do maior salmista da Bíblia, poderíamos citar homens como Asa, Uzias, Ezequias ou Josias. Já nos reinados de Acaz e Manassés foram cometidos os maiores pecados quando então os pais chegaram a sacrificar os próprios filhos a Moloc.
Verdade é que os reis maus fizeram pecar quase que a nação inteira. Só que, ainda assim, houve homens justos em Israel. Tanto profetas quanto pessoas comuns do povo.
"Também consefvei em Israel sete mil, todos os joelhos que não se dobraram a Baal, e toda boca que o não beijou." (1Reis 19.18; ARA)
Felizmente Jesus foi obediente até a morte. E morte de cruz! Por isto Deus o exaltou colocando-o à sua direita, dando-lhe um nome que é sobre todo nome.
Bendito seja Deus!