Prólogo — O Som da Colônia
- o rugido do vento,
- o quebrar das ondas,
- e o eco das vozes dos meus pais.
Minha mãe dizia sempre:
— Tupi, o mar é generoso, mas nunca esquece quem desafia sua vontade.
E meu pai completava:
— Por isso, respeite-o. O mar é maior que todos nós juntos.
1. A corrente que não devia existir
Tudo aconteceu durante a grande migração anual que fazíamos até o Brasil. Eu treinava mergulhos com meus dois melhores amigos, Nimbo e Nhoque, tentando alcançar o fundo sem perder o fôlego.
O mar parecia um espelho perfeito.
Até que não parecia mais.
Primeiro, o frio cortante da água mudou para um calor incômodo — como se eu tivesse nadado para dentro de um rio quente. Depois, a pressão das ondas ficou estranha, pulsando como um coração gigante.
Eu senti o puxão.
Uma força invisível me arrebatou, como se mãos gigantes tivessem agarrado minhas nadadeiras e me arrastado para longe.
— Nimbo! Nhoque! Esperem! Eu…
E então o mundo virou um borrão de azuis e cinzas.
2. Dias de deriva: o mar como inimigo
Durante muito tempo vi apenas céu e água, e o vento quente que soprava do norte me deixava atordoado. A comida era pouca; os peixes fugiam rápido demais. Muitas vezes, a única coisa que me mantinha nadando era lembrar a voz de Malena:
— Respire. Lembre-se de respirar, meu pequeno.
No terceiro ou quarto dia — nunca saberei — vi luzes vermelhas no horizonte. Pensei que eram estrelas caindo no mar. Só depois entendi: eram barcos de pesca humanos.
Tentei segui-los, mas desapareceram na velocidade de um sonho.
Comecei a aceitar que talvez estivesse destinado a morrer ali, naquele mar que já não reconhecia.
3. A ilha do vento hostil
Mas o mar, caprichoso como sempre, me jogou contra rochas negras. Lutei com as ondas, usei o bico para me segurar nas pedras e, com esforço, me puxei para cima.
A praia cheirava a algas estranhas.
Eu estava no Hemisfério Norte, embora nessa época eu ainda não soubesse o que isso significava.
Minhas penas estavam molhadas demais, meu corpo tremia. Dormi sem saber se acordaria.
Acordei com olhos brilhantes me observando.
Eram aves — mas não eram pinguins. Tinham olhos vivos e bicos coloridos, vibrantes como pedras de fogo.
Eu tentei falar:
— Quem… quem são vocês?
Eles responderam com grasnidos rápidos, uma língua impossível, mas havia curiosidade, não ameaça.
4. O Norte prova seus dentes
No primeiro dia, vi uma sombra branca deslizando entre as pedras. Quando a sombra se aproximou, percebi olhos azuis, frios como a manhã do inverno: uma raposa ártica.
Pinguins não foram feitos para correr — mas o medo muda qualquer criatura. Desviei, escorreguei nas pedras, mergulhei na água. A raposa parou na beira, irritada. Eu sobrevivi.
Mas não era a única ameaça.
Havia gaivotas enormes, maiores que qualquer ave que eu já tinha visto. Seus bicos eram lâminas. Uma delas me atacou pelas costas, tentando arrancar minhas penas. Eu mergulhei com dificuldade. Saí sangrando, mas vivo.
E uma vez, na maré baixa, uma foca-nariguda de quase meia tonelada olhou para mim como quem observa um intruso inconveniente.
5. A solidão que dói mais que o frio
Em algumas noites, eu fechava os olhos e tentava imaginar o cheiro do ninho, o calor de Malena, o olhar preocupado de Auréu, as piadas estúpidas de Nhoque.
Era como se minha memória estivesse sendo apagada.
6. A chegada dos humanos do casaco amarelo
Eles olharam para mim com espanto, depois com ternura.
Eles se aproximaram devagar, oferecendo peixes frescos. Meu instinto dizia para fugir. Mas meu corpo… meu corpo gritava por alimento.
Comi.
A mulher sorriu:
— “Vamos te levar para casa, pequeno.”
7. A longa cura e a longa volta
Fui levado para um centro de pesquisa. Humanos me examinaram, limparam minhas feridas, trataram minha desidratação, escovaram minhas penas. Eu me sentia fraco, mas acolhido.
Eles conversavam comigo:
Eu não conhecia muitas palavras humanas, mas reconhecia a emoção nelas.
E isso era suficiente.
Depois de semanas, me colocaram em um barco maior, com uma caixa gelada confortável, peixes frescos e até brinquedos — pedras arredondadas que eu podia empurrar.
E viajamos.
Eu sentia o cheiro de casa antes mesmo de ver a costa.
8. O retorno — o eco que nunca se perde
Quando o barco chegou a Punta Tombo, meu coração disparou. Lucía me colocou na areia com um sorriso triste.
— “Vai. Este é o seu lugar.”
Eu ainda tremia — não de frio, mas de emoção.
— Mãe! Pai! Eu voltei!
As respostas vieram em segundos.
Malena surgiu primeiro, correndo com as asas abertas, chorando e reclamando ao mesmo tempo:
— Tupi! Meu filhote! Onde você esteve? Como pôde sumir assim? Eu… eu…
Auréu veio logo atrás, duro, sério — até chegar perto demais.
Ele bateu a testa na minha.
Seus olhos brilhavam.
Nimbo e Nhoque apareceram correndo, fazendo piadas, empurrando-me com as asas.
E ali, cercado por família e amigos, eu entendi:
Mas o eco da minha colônia sempre me encontrará.
Fim.
OBS: Créditos de imagem atribuídos à Don Faulkner/Flickr-Creative Commons, conforme extraído de https://catracalivre.com.br/viagem-livre/conheca-a-maior-colonia-de-pinguim-de-magalhaes-do-mundo/



Nenhum comentário:
Postar um comentário