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quarta-feira, 26 de novembro de 2025

🌊❄️ “O Eco do Norte” — A Jornada Dramática de Tupi

 


Prólogo — O Som da Colônia

Eu me chamo Tupi, filho de Auréu e Malena, nascido entre as pedras cinzentas de Punta Tombo.
Minha vida inteira, antes do grande desvio, cabia em três sons:

  • o rugido do vento,
  • o quebrar das ondas,
  • e o eco das vozes dos meus pais.

Minha mãe dizia sempre:

Tupi, o mar é generoso, mas nunca esquece quem desafia sua vontade.

E meu pai completava:

Por isso, respeite-o. O mar é maior que todos nós juntos.

Eu os ouvi.
Eu acreditei.
Mas há dias em que o mar não está interessado no que você acredita.


1. A corrente que não devia existir

Tudo aconteceu durante a grande migração anual que fazíamos até o Brasil. Eu treinava mergulhos com meus dois melhores amigos, Nimbo e Nhoque, tentando alcançar o fundo sem perder o fôlego.

O mar parecia um espelho perfeito.

Até que não parecia mais.

Primeiro, o frio cortante da água mudou para um calor incômodo — como se eu tivesse nadado para dentro de um rio quente. Depois, a pressão das ondas ficou estranha, pulsando como um coração gigante.

Eu senti o puxão.

Não era a maré normal.
Não era maré nenhuma que eu conhecesse.

Uma força invisível me arrebatou, como se mãos gigantes tivessem agarrado minhas nadadeiras e me arrastado para longe.

Eu tentei voltar.
Bati os pés com desespero, as asas com dor.
Chamei meus amigos.

Nimbo! Nhoque! Esperem! Eu…

A água entrou em meu bico. Eu engasguei.
A corrente me engoliu.

E então o mundo virou um borrão de azuis e cinzas.


2. Dias de deriva: o mar como inimigo

Não sei quantos dias se passaram.
No mar aberto, o tempo perde nome.

Durante muito tempo vi apenas céu e água, e o vento quente que soprava do norte me deixava atordoado. A comida era pouca; os peixes fugiam rápido demais. Muitas vezes, a única coisa que me mantinha nadando era lembrar a voz de Malena:

Respire. Lembre-se de respirar, meu pequeno.

Eu nadava.
E nadava.
E nadava.

No terceiro ou quarto dia — nunca saberei — vi luzes vermelhas no horizonte. Pensei que eram estrelas caindo no mar. Só depois entendi: eram barcos de pesca humanos.

Tentei segui-los, mas desapareceram na velocidade de um sonho.

Comecei a aceitar que talvez estivesse destinado a morrer ali, naquele mar que já não reconhecia.


3. A ilha do vento hostil

Mas o mar, caprichoso como sempre, me jogou contra rochas negras. Lutei com as ondas, usei o bico para me segurar nas pedras e, com esforço, me puxei para cima.

A praia cheirava a algas estranhas.

E o vento…
O vento era diferente.
Assobiava em outra língua.

Eu estava no Hemisfério Norte, embora nessa época eu ainda não soubesse o que isso significava.

Minhas penas estavam molhadas demais, meu corpo tremia. Dormi sem saber se acordaria.

Acordei com olhos brilhantes me observando.

Eram aves — mas não eram pinguins. Tinham olhos vivos e bicos coloridos, vibrantes como pedras de fogo.

Eu tentei falar:

Quem… quem são vocês?

Eles responderam com grasnidos rápidos, uma língua impossível, mas havia curiosidade, não ameaça.

Mais tarde, descobri quem eram: frailecillos. Puffins.
Pareciam divertidos com a minha presença.

Mas o resto da ilha…
A ilha não me queria ali.


4. O Norte prova seus dentes

No primeiro dia, vi uma sombra branca deslizando entre as pedras. Quando a sombra se aproximou, percebi olhos azuis, frios como a manhã do inverno: uma raposa ártica.

Ela me cheirou.
Eu gritei.
Ela avançou.

Corri.
Eu nunca corri tão rápido na vida.

Pinguins não foram feitos para correr — mas o medo muda qualquer criatura. Desviei, escorreguei nas pedras, mergulhei na água. A raposa parou na beira, irritada. Eu sobrevivi.

Mas não era a única ameaça.

Havia gaivotas enormes, maiores que qualquer ave que eu já tinha visto. Seus bicos eram lâminas. Uma delas me atacou pelas costas, tentando arrancar minhas penas. Eu mergulhei com dificuldade. Saí sangrando, mas vivo.

E uma vez, na maré baixa, uma foca-nariguda de quase meia tonelada olhou para mim como quem observa um intruso inconveniente.

O mar do Norte não é gentil.
E a terra também não.


5. A solidão que dói mais que o frio

Ninguém fala disso, mas vou dizer:
a pior parte de estar perdido não é ter medo.
É não ter quem te ouça.

Eu falava com o vento.
Com as ondas.
Com as pedras.

Em algumas noites, eu fechava os olhos e tentava imaginar o cheiro do ninho, o calor de Malena, o olhar preocupado de Auréu, as piadas estúpidas de Nhoque.

Eu tentava recordar suas vozes.
Mas o vento do Norte abafava tudo.

Era como se minha memória estivesse sendo apagada.


6. A chegada dos humanos do casaco amarelo

Quando já começava a perder forças, ouvi o ruído de um motor. Olhei e vi um barco pequeno se aproximando. Dois humanos desceram.
Um deles era uma mulher de olhos escuros; o outro, um homem de barba curta.

Eles olharam para mim com espanto, depois com ternura.

“Inacreditável… um Magalhães aqui.”
“Se tentarmos deixá-lo, vai morrer.”

Eles se aproximaram devagar, oferecendo peixes frescos. Meu instinto dizia para fugir. Mas meu corpo… meu corpo gritava por alimento.

Comi.

E naquele momento, entendi algo simples:
eles queriam me ajudar.

A mulher sorriu:

“Vamos te levar para casa, pequeno.”

Eles me chamavam de pequeno explorador.
E eu, pela primeira vez em semanas, me senti seguro.


7. A longa cura e a longa volta

Fui levado para um centro de pesquisa. Humanos me examinaram, limparam minhas feridas, trataram minha desidratação, escovaram minhas penas. Eu me sentia fraco, mas acolhido.

A mulher — que se chamava Lúcia — me alimentava com cuidado.
O homem — Hiroshi — registrava tudo, mas sempre me dava tapinhas suaves nas costas.

Eles conversavam comigo:

“Logo você volta para o Sul.”
“Seu povo deve estar te procurando.”
— “Provavelmente ele foi vítima das circunstâncias causadas pelo El Nino severo deste ano, devido às mudanças climáticas.”

Eu não conhecia muitas palavras humanas, mas reconhecia a emoção nelas.

E isso era suficiente.

Depois de semanas, me colocaram em um barco maior, com uma caixa gelada confortável, peixes frescos e até brinquedos — pedras arredondadas que eu podia empurrar.

E viajamos.

Para o sul.
Para cada vez mais frio.
Para cada vez mais familiar.

Eu sentia o cheiro de casa antes mesmo de ver a costa.


8. O retorno — o eco que nunca se perde

Quando o barco chegou a Punta Tombo, meu coração disparou. Lucía me colocou na areia com um sorriso triste.

“Vai. Este é o seu lugar.”

Eu ainda tremia — não de frio, mas de emoção.

Dei alguns passos.
E gritei o mais alto que pude:

Mãe! Pai! Eu voltei!

As respostas vieram em segundos.

Malena surgiu primeiro, correndo com as asas abertas, chorando e reclamando ao mesmo tempo:

Tupi! Meu filhote! Onde você esteve? Como pôde sumir assim? Eu… eu…

Auréu veio logo atrás, duro, sério — até chegar perto demais.

Ele bateu a testa na minha.

Você me assustou, filho.
Nunca mais faça isso.

Seus olhos brilhavam.

Nimbo e Nhoque apareceram correndo, fazendo piadas, empurrando-me com as asas.

Sabíamos que você era resistente!
Ou que pelo menos dava azar demais para morrer!

E ali, cercado por família e amigos, eu entendi:

O mar pode me levar para longe.
Pode me testar.
Pode até tentar me apagar.

Mas o eco da minha colônia sempre me encontrará.

Porque eu sou Tupi.
Sou do Sul.
E sempre voltarei.

Fim.


OBS: Créditos de imagem atribuídos à Don Faulkner/Flickr-Creative Commons, conforme extraído de https://catracalivre.com.br/viagem-livre/conheca-a-maior-colonia-de-pinguim-de-magalhaes-do-mundo/

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