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domingo, 16 de novembro de 2025

O Brasil precisa atualizar a competência territorial nos Juizados Especiais e nas ações de consumo

 


Em tempos de relações sociais totalmente digitalizadas, precisamos refletir se nossas leis processuais ainda acompanham a realidade da vida moderna. 

Um exemplo que parece simples, mas traz profundas consequências, envolve a forma como se determina o local onde um processo deve tramitar — a chamada competência territorial. Aparentemente algo técnico e distante do cidadão comum, na verdade ela pode definir se uma pessoa terá ou não condições reais de se defender em um processo, principalmente quando se trata dos Juizados Especiais Cíveis, onde as partes devem comparecer pessoalmente.

Hoje, pela Lei Federal n.º 9.099/1995, muitos entendem que o autor pode ajuizar ação no seu próprio domicílio nas demandas indenizatórias, mesmo quando o réu reside a milhares de quilômetros de distância e não possui representação jurídica profissional. É nessa lacuna que podem surgir distorções, injustiças e efeitos práticos severos.

Imaginem a seguinte situação. João, morador de Oiapoque (AP) — extremo Norte do Brasil — se sente ofendido por um comentário na internet feito por José, morador do Chuí (RS) — extremo Sul do país. Irritado, João resolve processar José no Juizado Especial Cível do seu domicílio, localizado no Oiapoque requerendo que ele lhe pague uma indenização de R$ 30 mil reais por danos morais.

À primeira vista, parece um exercício legítimo do direito de ação com amparo no texto da legislação vigente. Porém, se o processo for aceito nesse foro, José terá que viajar milhares de quilômetros de um extremo ao outro do Brasil para comparecer às audiências, já que no Juizado Especial a regra é o comparecimento pessoal, e pessoas físicas, diferentemente das empresas, não podem nomear prepostos. Se não comparecer, corre risco de ser condenado à revelia, isto é, perder a causa sem sequer conseguir se defender.

Esse exemplo extremo pode parecer improvável, mas a legislação atual não é clara o suficiente para impedir situações semelhantes, deixando margem para decisões divergentes em diferentes juizados do país.


Mas como funciona hoje?

Atualmente, a Lei nº 9.099/1995, que rege os Juizados Especiais Cíveis, criou um microssistema pautado pela simplicidade, economia e oralidade, destinado a solucionar conflitos de menor complexidade e menor valor. Entretanto, a aplicação do critério territorial tornou-se controversa, especialmente com a ampliação dos litígios envolvendo internet, redes sociais e relações remotas.

Já o Código de Defesa do Consumidor (Lei Federal n.º 8.078/1990) prevê que o consumidor pode ingressar com ação no seu domicílio, certamente tendo considerado a sua hipossuficiência presumida para fins de acesso à Justiça, e tais demandas podem ocorrer tanto no Juizado Especial Cível quanto na Justiça comum.

Contudo, essa regra foi pensada para proteger quem se encontra em posição desfavorável em relação aos bancos e às grandes empresas, mas não para permitir que o cidadão utilize o Juizado como ferramenta potencial de coerção territorial, especialmente quando a outra parte é uma pessoa física comum.

Desse modo, algumas mudanças se fazem necessárias no sentido de restringirem o foro do autor onde não há consumo e ampliar onde há hipossuficiência.

Com base nisso, proponho uma adequação legislativa que contemple dois objetivos centrais:


  1. Restringir a competência territorial pelo domicílio do autor, quando o réu for pessoa física e não houver relação de consumo, evitando abusos e preservando o direito de defesa.

  2. Ampliar as opções de foro para o consumidor, permitindo ajuizar ações no domicílio, no local do fato ou no domicílio do réu e também no local de sua atividade profissional, fortalecendo, assim, o acesso à Justiça.


Essa adaptação seria justa e coerente com a finalidade tanto do CDC, quanto da Lei 9.099/1995 e da própria Constituição Federal, que assegura o contraditório e ampla defesa como direitos fundamentais, além do direito de acesso à Justiça.


E a vida profissional?

Hoje, com a multiplicidade de formas de trabalho — presencial, híbrido, remoto, itinerante e digital — o domicílio civil nem sempre representa o centro da vida econômica da pessoa.

Há casos em que alguém mora em uma cidade, trabalha em outra, e mantém sua vida prática em um terceiro local. Logo, se essa pessoa precisar litigar judicialmente, pode enfrentar alta dificuldade logística e financeira, além de incompatibilidade com seus horários laborais, caso seja obrigada a comparecer pessoalmente em um foro distante de sua rotina profissional, o que também pode afetar a empresa empregadora.

Ou seja, além de proteger o réu, a proposta também favorece o acesso efetivo à justiça pelo consumidor, que poderá escolher o foro mais adequado à sua realidade conforme os novos critérios a serem estabelecidos em Lei. Logo, teremos um acesso à Justiça territorialmente equilibrado promovendo aquilo que poderemos chamar de uma Justiça real.

Ressalto que a proposta não busca criar obstáculos ao cidadão que deseja ingressar com uma ação judicial; ao contrário, ela pretende evitar desigualdades processuais e harmonizar a legislação com a realidade contemporânea.

O caso imaginário de João e José serve como alerta de que ninguém pode ser submetido a uma situação juridicamente inviável apenas por estar longe no mapa. Pois Justiça que não pode ser exercida na prática não é Justiça!

Portanto , eis que o Brasil precisa avançar em uma legislação que reconheça a complexidade da vida digital, a mobilidade territorial das pessoas e o respeito ao direito de defesa. E, enquanto isso não acontecer, situações absurdas continuarão sendo processualmente possíveis.

A legislação deve ser instrumento de proteção, nunca de surpresa!

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