Páginas

sexta-feira, 21 de novembro de 2025

Sob a sombra do Jequitibá: memórias do Macacu



O jequitibá já se erguia com majestade, suas raízes enredadas na terra fértil e seu tronco grosso carregando séculos de chuva e sol. Embora jovem para os padrões do mundo que viria, a árvore já dominava o vale, sua copa enorme lançando sombras frescas sobre o solo onde pequenos animais se escondiam. Ali, sob sua proteção, os povos da região vinham honrar os espíritos da floresta, colher frutos e aprender com os sinais da natureza.

Foi sob essa sombra que Araúna, guerreiro da tribo Guapixana, descansava após a caçada, observando o voo das araras sobre os rios. Seus passos eram firmes, mas respeitosos com a terra, pois desde criança aprendera que a vida se sustentava na harmonia com o mundo vegetal e animal.

Nesse mesmo dia, Itaní, da tribo Tamoio, aproximava-se do jequitibá, recolhendo frutos e ervas medicinais. Seus olhos negros refletiam a luz dourada do sol filtrada pelas folhas, e em seu coração batia uma inquietação. Ao tocar a casca da árvore, sentiu um pressentimento profundo — um futuro desconhecido, onde outros passos além dos humanos, de pele diferente da sua, viriam modificar o mundo que conhecia. Mas naquele instante, o vento apenas sussurrava segredos do presente.

Os olhos de Araúna encontraram os de Itaní. Um silêncio se fez, carregado de curiosidade e respeito. A menina da tribo Tamoio e o jovem Guapixana partilhavam, sem palavras, a linguagem que só a natureza compreende: o murmúrio do vento, o canto do sabiá, o farfalhar das folhas do jequitibá. Com o tempo, ali sob a árvore, começaram a se encontrar, trocando histórias de caçadas, rituais, danças e cantos. Aprenderam sobre os mitos de cada povo: a Guapixana reverenciava o jequitibá como um “guardião da memória dos ancestrais”, enquanto os Tamoio acreditavam que sob sua sombra os sonhos se transformavam em ensinamentos para as gerações futuras.

O namoro cresceu com a estação das chuvas e a seca, com a mesma constância das marés do rio. Cada encontro reforçava o respeito pela terra, o cuidado com as plantas e o equilíbrio com os animais. Itaní ensinava Araúna a reconhecer plantas medicinais e ervas de proteção; Araúna mostrava a força e a paciência da caça, sempre com reverência à vida que ceifava.

Chegou o dia em que, com o consentimento das duas tribos, Araúna passou a pertencer ao povo de Itaní. A união não era apenas de corpos, mas de culturas, línguas, crenças e histórias. Realizaram a cerimônia sob o jequitibá, oferendo frutos e flores ao espírito da árvore, pedindo que guardasse suas vidas e as vidas que viriam. A copa alta parecia abraçá-los, testemunhando aquele momento sagrado.

Ao longo dos anos, mais de cem ciclos solares, o casal assistiu ao nascimento de muitas gerações, cada uma aprendendo a respeitar o mundo natural como eles haviam aprendido. O jequitibá permaneceu firme, testemunha silenciosa das alegrias, tristezas e festas. Sob sua sombra, crianças brincavam, aprendiam as canções dos pássaros e os segredos das ervas. Itaní às vezes sentia o pressentimento do futuro: viajantes de pele clara que chegariam e mudariam o curso da floresta e das aldeias. Mas também percebia que a árvore guardaria a memória de seu povo, mesmo diante da mudança.

O casal ensinou aos descendentes que o jequitibá não era apenas árvore, mas ancestral vivo, guardião da memória da terra, das águas e do ar. E enquanto a terra respirava, enquanto os rios corriam, e enquanto os ventos carregavam sementes e canções, Araúna e Itaní souberam que sua história se entrelaçava para sempre com a do Patriarca que os abrigava.


Os Descendentes: História Continua


Araúna e Itaní já haviam partido há muito tempo, mas sob a copa do jequitibá, seus descendentes continuavam a trilhar os caminhos da floresta, aprendendo com os rios, os ventos e os espíritos das árvores. Os tamoios, agora espalhados por vales e serras, guardavam a memória dos ancestrais e a reverência pela natureza que seus antepassados haviam ensinado.

No século XVI, a chegada dos portugueses à Baía de Guanabara trouxe conflitos, que os cronistas chamariam depois de “Guerra dos Tamoios”. Os descendentes de Araúna e Itaní sentiram o peso da guerra e da doença, mas muitos escaparam para os sertões do Macacu, mantendo viva a cultura indígena. Ali, o jequitibá continuava a crescer, já uma árvore impressionante, testemunha de vidas, encontros e despedidas, guardando sob sua sombra histórias que o colonizador jamais compreenderia.

Com o tempo, a região ao redor do jequitibá começou a se transformar. As trilhas indígenas foram sendo vigiadas pela Coroa portuguesa, que mantinha o controle rigoroso de ingresso de pessoas, para combater contrabandistas que vinham das minas de ouro e de outros pontos do litoral. Boatos sobre um "bandido" apelidado de Mão de Luva corriam pelas serras, assustando viajantes e moradores, mas o vale do Macacu ainda oferecia refúgio a quem conhecia suas curvas e riachos.

No século XVIII, um jovem mestiço de nome Manoel, filho de pai negro e mãe indígena, escravizado em uma fazenda jesuítica de Santo Antônio de Sá, conseguiu escapar. Com passos cautelosos, ele se embrenhou pelos sertões do Macacu, carregando consigo as palavras e cantos que sua mãe lhe ensinara em língua indígena. Entre vales e riachos, chegou ao jequitibá, onde encontrou Potira, uma jovem indígena oriunda de uma tribo situada na atual Nova Friburgo. O encontro foi silencioso, carregado de curiosidade e reconhecimento mútuo entre as almas, como se a própria árvore os chamasse para se aproximar.

Ali, sob a sombra do Patriarca, o jovem mestiço e a indígena iniciaram um vínculo que cresceria com o tempo. Ele aprendeu os caminhos da mata, a língua do povo dela e os segredos das ervas medicinais. Ela, por sua vez, compartilhava o conhecimento dos ciclos da floresta, das estrelas e dos rios. Eventualmente, com o consentimento do povo de Potira, Manoel passou a integrar sua tribo, e a união foi celebrada com ofertas ao jequitibá, que guardava, como sempre, a memória dos ancestrais.

Ao longo de décadas, o casal assistiu à transformação do entorno. As florestas, no começo, ainda eram densas, mas as clareiras começaram a surgir no século XIX com a lavoura do café, que se expandia gradualmente para os vales férteis.

Pequenos sítios e fazendas como a Morro Queimado surgiram, mas, apesar disso, o casal conseguia viver em relativa paz, caçando, cultivando e celebrando os ciclos da natureza.

Quando já eram idosos, viram naturalistas estrangeiros, curiosos com a riqueza da Mata Atlântica, passando pelas serras, os quais admiravam a biodiversidade que florescia sob a guarda do Patriarca, sem imaginar que o jequitibá já tinha testemunhado séculos de histórias humanas.

Todavia, mudanças avançavam inexoráveis: a chegada dos colonos suíços e alemães trouxe novos assentamentos, estradas e plantações, fragmentando a floresta e alterando o curso de rios e trilhas. O café tornou-se cada vez mais dominante, e a pressão sobre as terras indígenas aumentou. Os descendentes do casal presenciaram a destruição gradual de grandes trechos de Mata Atlântica, a diminuição dos animais, e a morte de muitos membros de suas comunidades pelo contato forçado com os brancos, doenças e violência.

Manoel e Potira envelheceram sob o jequitibá, vendo as gerações se sucedendo e sobrevivendo, apesar da alta taxa de mortalidade, testemunhando também a devastação da terra que sempre fora sagrada. Ainda assim, eles permaneciam fiéis aos ensinamentos dos antepassados, cultivando respeito pelos espíritos da floresta, contando histórias às crianças e mantendo vivas as canções que ensinavam a ler os sinais da natureza.

Mesmo diante da chegada de novos povos, da transformação das florestas e da expansão das plantações, o jequitibá resistia, continuando a ser a testemunha silenciosa de séculos, carregando na casca e nas raízes a memória de indígenas, mestiços, negros e todos aqueles que sob sua sombra aprenderam a respeitar a terra e a vida.


Séculos de Memória




Com o passar dos anos, os descendentes de Potira e do jovem mestiço foram diminuindo em número e já não viviam em tribos. Muitos foram assassinados por fazendeiros ou colonos, enquanto outros tornaram-se escravizados de forma ilegal ou fugiam indo cada vez mais para o interior, e pouco a pouco a presença indígena tornou-se quase imperceptível nos vales e nas serras do Macacu. Ainda assim, a memória da terra, a reverência pelo jequitibá e os cantos antigos sobreviviam em alguns poucos, transmitidos de avós a netos.

No século XIX, com a influência do Barão de Nova Friburgo, a ferrovia chegou a Cantagalo, passando por Nova Friburgo e passando não muito distante do jequitibá. Menos de duas décadas depois, a Abolição da Escravatura mudaria novamente a paisagem social da região. Nova Friburgo cresceu, tornando-se uma cidade industrial e também turística, enquanto Cachoeiras de Macacu, após o fim do ciclo do café na década de 1930, mudava suas culturas agrícolas, com áreas de pasto, bananas e hortaliças.

A mata, aos poucos, começou a se regenerar espontaneamente, beneficiada pelas chuvas abundantes, mas os habitantes indígenas originais não mais estavam presentes. As onças grandes tornaram-se raras e algumas espécies desapareceram. A ferrovia precisou de cortes de árvores para fornecer combustível às locomotivas, mas com a construção da estrada de ferro moderna, a antiga linha foi desativada. 

Expansões urbanas deram origem a bairros e pequenas propriedades de veraneio. Apenas trechos da mata foram preservados nas áreas mais altas e por sorte as margens da rodovia mantiveram-se com poucas ocupações, em especial por causa de uma captação da CEDAE , garantindo água limpa e sombra para o trecho do vale.

No início do século XXI, mais precisamente em meados de 2002, durante a curta gestão de uma mulher negra que governou o Rio de Janeiro, foi criado o Parque Estadual dos Três Picos. A unidade de conservação passou a proteger fragmentos importantes da Mata Atlântica e, consequentemente o jequitibá.

Dez anos depois, em 2012, durante os dias da conferência Rio+10, um jovem chamado Roberto, morador de Nova Friburgo, descendente de uma das últimas indígenas da região — bisneto, portanto, de uma das últimas descendentes do casal ancestral — decidiu descer a serra com amigos para uma expedição na floresta.

O passeio era uma celebração da vida. Roberto havia sobrevivido à terrível enchente de janeiro de 2011, sendo resgatado pelos bombeiros apenas três dias depois. Agora recuperado, podia caminhar novamente, sentindo o cheiro da terra molhada e ouvindo o canto dos pássaros nas trilhas que seguiam o leito da antiga ferrovia.

Chegando em Boca do Mato, seus amigos decidiram pegar um ônibus de volta pela RJ-116, pois a noite se aproximava e o frio aumentava. Roberto, porém, continuou sozinho pelo caminho do antigo trem, determinado a encontrar o jequitibá que tantas histórias guardava.

Quando se aproximou da árvore, sentiu algo inesperado: uma presença antiga e familiar, mesmo que estranha. Sob a sombra imensa, encontrou uma jovem indígena do Acre, participante de alguns dos eventos da Rio+10. 

Seu nome era Yaraê, da tribo Kaxinawá, conhecida por sua ligação profunda com a floresta e os rios. Havia algo nos olhos dela, na maneira como tocava a casca da árvore, que o fez sentir que já se conheciam há séculos.

O encontro foi inevitável. Sem palavras, mas com uma compreensão profunda que transcendia o tempo, eles se aproximaram e se beijaram, sentindo correr o sangue indígena que ambos carregavam, mesmo que Roberto pouco soubesse sobre seus ancestrais já que conviveu tão pouco tempo com sua bisavó que, por sua vez, não nasceram numa tribo. 

Com promessas silenciosas, os dois combinaram de se reencontrar no Rio de Janeiro, durante a conferência, e mais tarde, em janeiro de 2013, numa viagem que Roberto faria até o Acre, onde começaria uma nova vida ao lado de Yaraê com quem se casou. 

O casal passou a trabalhar no projeto ambiental de uma ONG em Cruzeiro do Sul. Somente depois do fim da pandemia por COVID-19 é que voltaram a Nova Friburgo trazendo consigo os filhos para que eles conhecessem os avós paternos. No trajeto, fizeram questão de parar o carro no caminho a fim de mostrar às três crianças a grande árvore onde os pais se viram e se beijaram pela primeira vez.

O jequitibá, patriarca da serra e guardião das memórias do Macacu, permanece lá até os dias de hoje. Sempre imponente, como uma testemunha silenciosa de séculos de encontros, despedidas, amor, perdas e renascimentos.

Nenhum comentário:

Postar um comentário