Estamos em Mangaratiba, no dia 20 de novembro do longínquo anos de 1860. Lá havia um jovem a quem os moradores chamavam João, mas que nasceu Kauandá, numa terra onde o mar não tinha o sabor salgado que o condenaria para sempre — até ser resgatado, mais de um século e meio depois, pelos olhos atentos de quem decide aprender, não esquecer.
Era madrugada e o vento soprava do mar, frio e úmido, carregando cheiro de madeira molhada, café recém-descarregado e suor humano. O Povoado do Saco ainda dormia em silêncio, exceto pelos sons que nunca descansavam: ondas, cordas tensionadas, mastros rangendo e, ao longe, a tosse insistente dos homens que trabalhavam sem sol e sem lua.
No alojamento dos carregadores, João despertou antes de ser chamado. Não era o despertador do feitor que o tirava do sono, mas a febre da memória — do outro lado do Atlântico.
Ele sentou-se devagar, pressionando os dedos sobre a pele marcada no peito. A queimadura, feita com ferro em brasa, nunca cicatrizara por completo. Era um brasão de dor imposto para que esquecesse o que foi. Ironia cruel: aquilo, para ele, era a única prova de que não pertencia àquele lugar.
Sussurrou para si mesmo:
— Kauandá… eu ainda sei quem sou.
De tanto repetir, temia que um dia o som fugisse de sua boca e encontrasse ouvidos errados. Por isso, guardava o nome nas frestas do pensamento, como semente escondida em solo de pedra.
Corpos exaustos se levantaram sem reclamar. Queixumes eram punidos.
Lá fora, o céu estava roxo, misto de noite e manhã. O trapiche, iluminado por lamparinas e pela névoa marítima, parecia um palco ritual de sacrifícios. Grandes canoas encostavam carregadas de sacas vindas de São João Marcos, onde o ouro negro das plantações escorria como destino.
E então, como se o mar lhe soprasse imagens, voltou a ouvir:
A canção da travessia.
Kauandá crescera numa aldeia às margens de um grande rio africano, onde homens pescavam com lança e mulheres contavam histórias ao redor do fogo. Era filho de pescadores respeitados, neto de contadores de mitos, e guardava herança de água, não de ferro.
Recordava o cheiro da palha, o canto das mulheres secando peixes, a dança em noites de lua cheia. Nunca houve pressa. Nunca houve correntes.
Até o dia em que cães de fogo invadiram a aldeia — assim chamavam os homens brancos e seus aliados africanos que negociavam vidas.
Mas havia mais.
Uma voz feminina, fina como fio de esperança, cantava todas as noites uma canção de resistência espiritual, não traduzida em língua portuguesa, cuja essência dizia:
“Ninguém morre enquanto o nome viver.”
Por isso, a primeira coisa que ele se prometeu guardar não foi o corpo, mas o nome.
O Povoado do Saco prosperava: comércio pulsante, trapiches sólidos, armazéns apinhados, barcaças indo e vindo, senhores enriquecendo com o café do Vale do Paraíba. A economia gotejava riqueza, enquanto homens marcados, comprados, renomeados, carregavam o mundo nas costas.
E, mesmo assim, sementes cresciam em lugares que ninguém via.
Durante o pouco descanso permitido, Bastião, um velho cuja idade ninguém sabia, perguntou:
A ideia de liberdade começou, então, a tomar forma em seus pensamentos — ainda tímida, porém firme como casco de árvore.
Séculos depois, embora de uma maneira diferente, as descendências daquela semente estariam de pé em Mangaratiba:
- Quilombo da Ilha da Marambaia
- Quilombo de Santa Justina / Santa Izabel
O que era rumor virou território reconhecido, e o que era sussurro virou história declarada.
Cerca de 165 anos depois, o antigo povoado do Saco já não mais existia. Porém, ali perto, uma escola da rede municipal de ensino prepara a sua celebração.
A professora escreve no quadro:
“137 anos após a abolição: reparar, lembrar, honrar.”
O jovem franze a testa, sente uma pontada estranha no peito, fecha os olhos e sussurra, sem saber por quê:
— Kauandá.
Alguns nomes são escritos.Outros, sobrevivem.Kauandá sobreviveu.





Nenhum comentário:
Postar um comentário