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terça-feira, 18 de novembro de 2025

Mangaratiba, Atlântico e Memória



Há nomes que o vento leva; há nomes que a correnteza engole.
Porém, há nomes que, mesmo silenciados por ferro, corrente e decreto, permanecem como pedra viva de memória.

Estamos em Mangaratiba, no dia 20 de novembro do longínquo anos de 1860. Lá havia um jovem a quem os moradores chamavam João, mas que nasceu Kauandá, numa terra onde o mar não tinha o sabor salgado que o condenaria para sempre — até ser resgatado, mais de um século e meio depois, pelos olhos atentos de quem decide aprender, não esquecer.

Era madrugada e o vento soprava do mar, frio e úmido, carregando cheiro de madeira molhada, café recém-descarregado e suor humano. O Povoado do Saco ainda dormia em silêncio, exceto pelos sons que nunca descansavam: ondas, cordas tensionadas, mastros rangendo e, ao longe, a tosse insistente dos homens que trabalhavam sem sol e sem lua.

No alojamento dos carregadores, João despertou antes de ser chamado. Não era o despertador do feitor que o tirava do sono, mas a febre da memória — do outro lado do Atlântico.

Ele sentou-se devagar, pressionando os dedos sobre a pele marcada no peito. A queimadura, feita com ferro em brasa, nunca cicatrizara por completo. Era um brasão de dor imposto para que esquecesse o que foi. Ironia cruel: aquilo, para ele, era a única prova de que não pertencia àquele lugar.

Sussurrou para si mesmo:

Kauandá… eu ainda sei quem sou.

De tanto repetir, temia que um dia o som fugisse de sua boca e encontrasse ouvidos errados. Por isso, guardava o nome nas frestas do pensamento, como semente escondida em solo de pedra.

O feitor abriu a porta com um chute.
— Pra fora, cães! O café chegou da serra!

Corpos exaustos se levantaram sem reclamar. Queixumes eram punidos.

Lá fora, o céu estava roxo, misto de noite e manhã. O trapiche, iluminado por lamparinas e pela névoa marítima, parecia um palco ritual de sacrifícios. Grandes canoas encostavam carregadas de sacas vindas de São João Marcos, onde o ouro negro das plantações escorria como destino.

João, com o ombro machucado, colocou o primeiro saco nas costas.
O peso lhe esmagou mais do que o corpo: esmagou lembranças.

E então, como se o mar lhe soprasse imagens, voltou a ouvir:

A canção da travessia.

Antes da dor e do sal, havia água doce.
Água de rio, não de oceano.

Kauandá crescera numa aldeia às margens de um grande rio africano, onde homens pescavam com lança e mulheres contavam histórias ao redor do fogo. Era filho de pescadores respeitados, neto de contadores de mitos, e guardava herança de água, não de ferro.

Recordava o cheiro da palha, o canto das mulheres secando peixes, a dança em noites de lua cheia. Nunca houve pressa. Nunca houve correntes.

Até o dia em que cães de fogo invadiram a aldeia — assim chamavam os homens brancos e seus aliados africanos que negociavam vidas.

Ele fora arrastado, gritando o nome da mãe, enquanto a poeira subia como fumaça de espírito.
No navio tumbeiro, após dias de desespero, conheceu o som do mar infinito.
E aprendeu a verdade cruel:
a água que antes nutria, agora punha medo.

Mas havia mais.

Uma voz feminina, fina como fio de esperança, cantava todas as noites uma canção de resistência espiritual, não traduzida em língua portuguesa, cuja essência dizia:


“Ninguém morre enquanto o nome viver.”


Por isso, a primeira coisa que ele se prometeu guardar não foi o corpo, mas o nome.



O Povoado do Saco prosperava: comércio pulsante, trapiches sólidos, armazéns apinhados, barcaças indo e vindo, senhores enriquecendo com o café do Vale do Paraíba. A economia gotejava riqueza, enquanto homens marcados, comprados, renomeados, carregavam o mundo nas costas.

O teatro local fazia apresentações para os homens livres, os comerciantes e os filhos de fazendeiros.
O riso deles ecoava enquanto os escravizados dormiam no chão duro, com o gosto metálico do cansaço preso na boca.

E, mesmo assim, sementes cresciam em lugares que ninguém via.

Durante o pouco descanso permitido, Bastião, um velho cuja idade ninguém sabia, perguntou:

— Tu fala sozinho, João?
— Eu falo com quem eu era — respondeu baixinho.
— Quem tu era?
Kauandá.

Bastião fechou os olhos.
E, naquele instante, ambos compreenderam: nem tudo estava perdido.

Próximo da mata, correu um boato:
— Há negros vivendo longe das vistas dos senhores. Vivendo como se fossem donos do próprio nome.

A ideia de liberdade começou, então, a tomar forma em seus pensamentos — ainda tímida, porém firme como casco de árvore.

Séculos depois, embora de uma maneira diferente, as descendências daquela semente estariam de pé em Mangaratiba:


  • Quilombo da Ilha da Marambaia
  • Quilombo de Santa Justina / Santa Izabel


O que era rumor virou território reconhecido, e o que era sussurro virou história declarada.



Cerca de 165 anos depois, o antigo povoado do Saco já não mais existia. Porém, ali perto, uma escola da rede municipal de ensino prepara a sua celebração.

A professora escreve no quadro:

“137 anos após a abolição: reparar, lembrar, honrar.”

Um aluno abre um caderno e lê uma referência mínima no material didático:
“Escravizado chamado João — Porto do Saco, séc. XIX.”

O jovem franze a testa, sente uma pontada estranha no peito, fecha os olhos e sussurra, sem saber por quê:

Kauandá.

E, pela primeira vez em mais de um século,
um nome respira com ar próprio.

 

Alguns nomes são escritos.
Outros, sobrevivem.

Kauandá sobreviveu.

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