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segunda-feira, 29 de julho de 2013

Uma "Belíndia" ainda pouco melhorada

Da varanda de seu barraco, na Baixada Fluminense, Juninho tentava lavar o seu caneco através da goteira que caída do telhado. Chovia, mas a sua casa permanecia sem água. A companhia de águas e esgoto não tomava as providências necessárias para regularizar o abastecimento das residências da comunidade. Mesmo após três exibições do problema pelo telejornal que havia começado a acompanhar o caso há um ano.

"Dizem que aqui sempre foi desse jeito", comentou dona Maria, mãe de Juninho, a qual usava até água suja do rio para cozinhar e lavar as roupas das crianças enquanto o seu marido arrumava uns trocados vendendo picolés ilegalmente no trem da Supervia por apenas um real.

Seu Tião, o chefe da casa, andava desempregado fazia dois anos. Morava antes numa favela mais próxima do Centro da cidade do Rio de Janeiro mas, com a tal da "pacificação", teve que sair do morro porque os aluguéis aumentaram muito. Por causa disto, ele precisou sujeitar-se novamente à ditadura dos traficantes que não acabou, continuando a dormir todas as noites com o barulho de tiro.

- "Esta noite a PM matou o chefe do tráfico aqui na área. Cabeças vão rolar! Ora pra Jesus proteger meu filho", assim falou dona Isabel, vizinha do seu Tião e de dona Maria que buscava, com insistência, levar o casal para a sua igreja pentecostal e lamentava o fato do seu filho mais velho ter entrado nas drogas.

Antes de virar crente, ela tinha sido mãe solteira por três vezes. Agora que tinha deixado o mundão, já era também avó sem nem ao menos ter chegado aos 40. Sua filha Michele, com apenas 14 anos, cuidava de um bebê de seis meses cujo pai conheceu num baile funk. Juninho antes dizia que a bela adolescente com o corpão de mulher era sua namorada mas ela logo botou um parzinho de chifres na cabeça pretensiosa do moleque, após ter lhe dado falsas esperanças. "Quando você crescer eu me caso contigo", brincava a adolescente.

Juninho mal sabia o que era sexo, mas a sua boca pronunciava inúmeros palavrões. Repetia tudo o que os pais e os demais adultos diziam na comunidade. Até a dona Isabel soltava uns nomes feios uma vez ou outra quando acabava a água: "Essa CEDAE é uma eme..."

À tardinha, quando a chuva deu uma trégua e o sol apareceu, estavam todas as crianças brincando. Juninho observava as pipas no céu doido para aprender a empinar a sua e, de repente, passou um helicóptero sobrevoando o local. Todos pararam e viram o veículo aéreo pousando num campo de futebol perto da outra margem do rio. Para lá vieram várias viaturas da polícia, repórteres e um agente policial sem farda, num canto, dava notas altas de dinheiro a quem seria o novo chefe do tráfico para que ele não causasse problemas contra a ilustre personalidade que logo desembarcaria. A bandidagem poderia ficar tranquila que nada iria acontecer:

"Aqui não faremos nenhuma UPP! Vocês podem ficar vendendo o bagulho porque os gringos virão para a Copa sem saberem que este lugar existe. Nas eleições do ano que vem tem mais dinheiro. O governador só pede que coloquem pra fora daqui aquele líder comunitário chato. Hoje estamos aqui por causa da enchente da semana que saiu no jornal"

Naquele mesmo instante, um morador idoso olhava de sua janela para o helicóptero. Era seu Manoel, um dos mais habitantes da área e que estava ali desde quando a localidade ainda era zona rural e ele trabalhava nos antigos pomares de laranja. Vivia quieto no seu canto e assistia à degradação sócio-ambiental da Baixada. Nas décadas de 60 e 70, ajudou uns comunistas que lutavam contra a ditadura a se esconderem nas matas da Serra do Mar não muito distantes dali. Guardava muitas histórias para contar, mas sabia que precisava se conter e que aquela vizinhança nova não tinha consciência do passado.

A esta altura, Juninho já estava subindo numa árvore atacando as goiabas do velho e ele assim  advertiu:

- "Segure a carteira menino! Olha o ladrão!"

- "Pra que, seu Manoel? Mamãe diz que aqui na favela não tem assalto!"

- "Mas agora tem. É que o governador chegou..."


OBS: O termo "Belíndia" foi inventado no ano de 1974 pelo economista Edmar Lisboa Bacha, em sua fábula de fundo ideológico O Rei da Belíndia, na qual argumentava que o regime militar estava criando um país dividido entre os que moravam em condições similares à Bélgica e aqueles que tinham o padrão de vida da Índia.

2 comentários:

  1. Bom dia, amigos.

    Postei esta mensagem originalmente no blogue Confraria dos Pensadores Fora da Gaiola. Quem desejar comentar, pode, se preferir, deixar mensagens lá referentes a esta publicação:

    http://cpfg.blogspot.com.br/2013/07/uma-belindia-ainda-pouco-melhorada.html

    Pretendo acompanhar com comentários lá e aqui.

    Abraços.

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  2. Seja bem vindo, Antonio!

    Obrigado pelo convite de conhecer a sua página.

    Volte sempre.

    Abraços fraternos,

    Rodrigo.

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