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quarta-feira, 31 de julho de 2013

A família e a obra missionária do Reino

"As raposas têm seus covis e as aves do céu, ninhos; 
mas o Filho do Homem não tem onde reclinar a cabeça
(Lucas 9:58; ARA)

Como vimos no artigo O progresso no Reino de Deus e a família, Maria e os irmãos de Jesus parecem não ter participado de sua obra ministerial. Alguns supõem que, naqueles dias, o Mestre chegou a fixar residência temporária em Cafarnaum mas é possível considerar também que ele teria feito de tal cidade um estratégico ponto de apoio para as viagens empreendidas pelo Mar da Galileia e visitar as aldeias circunvizinhas dali. E o que realmente é demonstrado pela leitura dos evangelhos sinóticos foi que o Senhor atuou mesmo como um pregador ambulante sem morada certa nesta Terra.

No contexto da caminhada para Jerusalém (9:51-19:44), como é confirmado pelo versículo 57 do capítulo 9 de Lucas, apresenta-se uma pessoa prometendo seguir a Jesus para onde quer que ele fosse. Porém a resposta que lhe é dada na citação acima deixa bem claro o caráter do discipulado cristão missionário. Quem desejasse seguir após o Mestre deveria estar plenamente consciente de que a obra revolucionária do Reino exige um desprendimento de quem decide tomar a frente da causa.

Nem todos estavam preparados para seguir Jesus no padrão discipular missionário exigido alcançando um nível elevado de desapego. Quando comissionou os doze apóstolos, o Mestre não quis que eles dependessem de recursos materiais para fazerem a obra de Deus. Já nos versos 57 a 62, ele pede uma desvinculação com a casa paterna e há quem o critique por ter desprestigiado a família, mas o certo é que nenhuma passagem do Novo Testamento diz que pessoas foram obrigadas a romperem os laços com ascendentes, descendentes, colaterais e cônjuges. Ainda assim, suas palavras foram bem duras quando um outro candidato a discípulo para ir primeiro sepultar o pai:

"Deixa aos mortos o sepultar os seus próprios mortos. Tu, porém, vai e prega o reino de Deus" (verso 60)

Outro dia eu estava refletindo sobre a maneira como padres e freiras são condicionados ao celibato e a um afastamento de suas respectivas famílias. Trata-se de algo que contraria princípios basilares da vida que, a meu ver, ganharia apenas uma ressalva excepcional dentro de um contexto realmente missionário. Ou seja, seria quando um discípulo de fato vocacionado passa a se dedicar integralmente à causa do Reino por assumir riscos não podendo conciliar o ministério com os cuidados de sua casa. Ainda assim, não se pode proibir ninguém de se casar.

A questão, todavia, parece se resolver por meio de uma reflexão ética. Será que é justo um homem procurar o casamento para fazer a sua esposa infeliz deixando de lhe prestar a devida atenção em virtude de viagens constantes e de compromissos pastorais capazes de preencher quase todos os espaços em sua agenda? Como fica o papel na educação dos filhos de um ministro do Evangelho ausente em sua própria casa? Quem vira as costas para a família dessa maneira não estaria pecando?

Penso que sim. É pecado virar as costas para a família tendo responsabilidades domésticas a cumprir. Daí eu entender que, exceto quando marido e mulher se envolvem juntos na obra (não tendo filhos pequenos ou adolescentes), o comprometimento ministerial de quem tem o seu ninho familiar deverá ser, em via de regra, bem relativo. Não vislumbro possibilidades de alguém nesta condição tornar-se um agente da revolução do Reino, mas apenas um colaborador que desenvolve ações menores sacrificando a novela ou o futebol com os amigos no domingo. Um pastor ligado à família e sem trabalho secular, por mais que receba o suficiente da Igreja para uma dedicação exclusiva, ainda precisará destinar uma parte de seu tempo para cuidar dos seus. É inevitável!

Todavia, estar à frente de uma congregação não é o mesmo que virar um militante do Reino. Ser chefe de uma igreja, dá trabalho mas corresponde à função de um grande pai. Neste sentido, a experiência de ter se casado e criado filhos será de enorme utilidade para fins de aconselhamento. Como nem todo mundo tem aptidão para ser um agente da tropa de elite de Cristo, o desempenho pastoral na família eclesiástica cabe aos que não são (ou estão) totalmente aptos para serem missionários em campos desconhecidos.

Retornando ao texto bíblico em estudo (vv. 57-62), podemos ver como que Jesus pode ter sido hiperbólico e propositalmente radical para que os interessados estivessem conscientes acerca do discipulado proposto. Se um deles queria sepultar o pai (não sabemos se ele pretendia cuidar do genitor até a sua morte ou se o mesmo já estava para ser enterrado), o terceiro pediu somente para despedir-se dos familiares (v. 61). A este o Mestre respondeu em tom semelhante:

"Ninguém que, tendo posto a mão no arado, olha para trás é apto para o reino de Deus." (v. 62)

Vejo aqui que o Senhor não apenas pode ter identificado supostas desculpas psicológicas no indivíduo que resolve adiar a sua decisão de segui-lo na radicalidade como também ele pode ter pretendido tornar conscientes as escolhas feitas. É lógico que o Jesus não estrava proibindo o candidato a discípulo comparecer ao funeral do pai ou se despedir da família como Elias havia permitido a Eliseu na vocação deste (1Rs 19:20). As respostas que o Mestre deu serviram justamente para provocar o impacto necessário nas pessoas e elas entenderem a dimensão e a seriedade do trabalho para o qual estavam sendo chamadas.

Como alguém pode assumir um compromisso missionário se ele ou ela tem planos de se casar, arranjar um bom emprego, ter filhos e curtir a companhia dos pais, avós, tios e sobrinhos? Fazer missão não é excursionar pelo mundo conhecendo novas culturas em outros países para colocar depois num álbum de fotografias e exibir no Facebook. Trata-se, pois, da promoção do Reino de Deus, o que significa entrar de corpo e alma numa batalha espiritual com fortes reflexos dentro de cada sociedade alcançada. Algo que se faz não apenas com orações mas também por meio de atitudes ousadas que podem incluir os mais variados riscos como a vulnerabilidade a doenças, guerras, acidentes nos meios de transportes, necessidades alimentares e também as perseguições.

Sinceramente, não aprovo a maneira como boa parte dos padres e freiras católicos vivem até porque muitos deles não têm nada a ver com a obra missionária. Quem dirige uma paróquia ou administra uma região de igrejas ainda não está no nível de um agente revolucionário como ensinado por Jesus. Muito menos os que optam pelo refúgio num monastério e daí eu entender que o celibato em tais circunstâncias torna-se até perigoso para induzir o monge a uma vida de pecados sexuais. A luta contra um desejo que é natural pode tornar a pessoa espiritualmente improdutiva.

Como se vê, tanto a igreja católica quanto as denominações evangélicas ainda estão bem distantes do ideal revolucionário do Reino. Observo que o verdadeiro missionário acaba por depender muito pouco do apoio institucional e, na prática, grande parte desses heróis do Evangelho estão esquecidos em seus campos. Congregações que se comprometem em sustentá-los financeiramente nem sempre cumprem com o prometido. E talvez aí esteja a receita das ações bem sucedidas quando o guerreiro de Cristo precisa usar de sua fé sem bordão, alforje, pão ou dinheiro, vestindo uma só túnica.

Certamente eis aí uma questão para refletirmos e orarmos. Como a revolução do Reino ainda não está concluída, admito que ainda precisaremos de corajosos missionários dispostos a evangelizarem o mundo. Talvez a Igreja jamais teria sobrevivido aos primeiros séculos, debaixo da violenta perseguição romana, se não contasse com almas tão dedicadas a exemplo do apóstolo Paulo e tantos outros mártires que o imitaram.

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