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terça-feira, 23 de julho de 2013

"Quem dizeis que sou eu?"

"Estando ele orando à parte, achavam-se presentes os discípulos, a quem perguntou: Quem dizem as multidões que sou eu? Responderam eles: João Batista, mas outros, Elias; e ainda outros dizem que ressurgiu um dos antigos profetas. Mas vós, perguntou ele, quem dizeis que eu sou? Então, falou Pedro e disse: És o Cristo de Deus. Ele, porém, advertindo-os, mandou que a ninguém declarassem tal coisa, dizendo: É necessário que o Filho do Homem sofra muitas coisas, seja rejeitado pelos anciãos, pelos principais sacerdotes e pelos escribas; seja morto e, no terceiro dia, ressuscite" (Lucas 9:18-22; ARA)


A identidade do ser humano é algo de enorme importância para a convivência entre as pessoas dentro de qualquer sociedade. Em praticamente todos os lugares, o nome de alguém possui um significado capaz de expressar um sentimento ou desejo dos pais, mesmo que estes tiveram por objetivo homenagear alguém. Em certas culturas, faz parte dos costumes atribuir nomes conforme as experiências de vida dos membros da comunidade enquanto que, entre nós, recebemos outras identificações.

De acordo com o Evangelho de Lucas, antes do Mestre ser concebido por Maria, o anjo revelou que o seu nome seria Jesus significando que "Deus é a salvação" e predizendo que ele seria chamado "Filho do Altíssimo" (ver Lc 1:31-32). Tal foi a expressão divina a seu respeito, apresentada ao leitor logo no início do livro, e que se cumprirá na sequência da narrativa. Quando, então, ocorre o nascimento aguardado, é comunicado aos pastores o recado celestial de que "hoje vos nasceu, na cidade de Davi, o Salvador, que é Cristo, o Senhor" (2:11).

Passados os acontecimentos do Natal, é como se as cortinas do teatro se abrissem e a história de Jesus recomeçasse até Maria esquecer do propósito da missão de Jesus e não compreender as palavras ditas pelo filho de que lhe "cumpria estar na casa de meu Pai". João Batista testemunhará que viria alguém mais poderoso do que ele (3:16-17), mas, para os moradores de Nazaré, cidade onde o Salvador foi criado, ele era apenas "o filho de José" (4:22).

A identidade de Jesus já havia sido testada durante a tentação no deserto. Por duas vezes, antes de lhe propor algo errado, o diabo iniciou a pergunta desta maneira: "se és filho de Deus???" (4:3,9). Porém, nos casos de pessoas assediadas por espíritos malignos, os demônios declaravam  ser ele "o Filho de Deus", embora tais testemunhos fossem censurados (4:41). Os fariseus ainda indagariam "quem é este que diz blasfêmias?" (5:21), os habitantes de Naim reconheceriam-nos como "grande profeta" (7:16), João duvidaria se de fato ele era "aquele que estava para vir" (7:19) e, quando a tempestade foi acalmada no Mar da Galileia, os discípulos se admiraram dizendo: "Quem é este que até aos ventos e às ondas repreende, e lhe obedecem?" (8:25).

 No capítulo 9, Jesus quer então saber o que aqueles homens, os quais andavam com ele, pensavam a seu respeito. Primeiro pergunta a respeito das ideias expressadas pelas multidões para, em seguida, ouvir dos mais chegados (sua nova família) sobre o que ele era para os membros do grupo que formou. Assim, o verso 19 repete o que já havia sido colocado anteriormente no 7 e no 8 quando fala da preocupação do rei Herodes: uma ressurreição de João Batista, de Elias ou de algum dos antigos profetas.

"Mas vós quem dizeis que sou eu?" (verso 20)

Creio que, quando formulou tal pergunta dirigida aos seguidores próximos, num íntimo momento de oração longe das multidões, nosso Mestre desejava ouvir algo sincero. Queria saber o que estava nos corações deles pois, pelo que se pode perceber de toda a narrativa de Lucas, Jesus não ficava se auto-proclamando o Messias esperado pelo povo judeu. A si mesmo referia-se modestamente com o o "filho do homem", ainda que o autor sagrado nos diga, desde as primeiras páginas, que ele era mesmo o Cristo. Somente Pedro teve a coragem e a ousadia de responder. O discípulo intrépido abre a sua boca e declara: "És o Cristo de Deus".

Chegamos aqui no clímax do livro em que pela primeira vez Jesus é reconhecido dessa maneira pelos que o seguiam. A afirmação não vem da boca  nem de anjo e nem de demônio. Foi um dos mais íntimos discípulos que fez a confissão!

No texto original de Marcos 8:27-30, o episódio em comento é imediatamente antecedido pela cura de um cego em Betsaida. Já em Lucas, seria pela multiplicação dos pães. Porém, considero importante levarmos em conta todos os eventos já apresentados pelo evangelista, como mencionei acima. Até este momento, os discípulos presenciaram Jesus pregando, curando, libertando pessoas do assédio de espíritos malignos, enfrentando a oposição dos religiosos e optando por conviver com os pecadores, sendo eles os destinatários do ensino secreto do Mestre acerca da interpretação das parábolas e o conhecimento dos "mistérios do Reino" (8:10).

De acordo com a versão ampliada do 1º Evangelho (Mt 16:17), a confissão de Pedro decorreu de uma revelação divina, indo além da mera descoberta humana. Já os textos de Lucas e de Marcos não mencionam isto, ainda que possamos ver a ação de Deus implícita no posicionamento do discípulo. Isto porque havia uma série de contradições sendo suscitadas pela vida de Jesus.

Como pode o Messias fazer de impuros pescadores seus discípulos, aceitar prostitutas e ir a uma festa na casa de publicanos ao invés de seguir o modo de vida "santo" dos fariseus? Muitas coisas que o Senhor fazia eram vistas como escândalos. Ele quebrava a principal algema de todos os tempos - a culpa incutida nas mentes humanas por causa do pecado. Ao declarar perdão ao seu semelhante, tais palavras eram tomadas como "blasfematórias" pelos religiosos que se arrogavam donos de Deus.

Pois bem. Pedro tinha sido até então um humilde pescador do Mar da Galileia que, ao separar os peixes comestíveis de todas as coisas capturadas em sua rede, tocava nos corpos dos animais impuros que eram tidos como impróprios para consumo pelos judeus. Sua profissão era por isso desprestigiada naqueles tempos de ignorância espiritual, mas foi o meio encontrado pelo discípulo para sobreviver até que o Mestre apareceu em sua vida e fez dele um "pescador de homens" (5:10). Jamais qualquer outro rabi iria tratá-lo com tanta dignidade e acolhimento.

Pedro e os demais apóstolos poderiam ter escolhido abandonar a Jesus porque ele se afastava do padrão de comportamento separado dos outros mestres. Contudo, os discípulos sabiam que também eram a causa do desprestígio que o Senhor sofria diante dos religiosos. Se o negassem, estariam rejeitando o único que lhes deu a oportunidade de serem incondicionalmente recebidos. Logo, aquela confissão foi a decisão mais acertada que Pedro fez.

A confissão de Pedro é seguida por uma advertência e explicação de Jesus sobre o que ainda iria lhe acontecer. O texto não diz o motivo pelo qual proibiu os discípulos de declararem ser ele o Messias. A meu ver seria porque Jesus pretendia distinguir-se do imaginário popular de que um messias viria libertar Israel da dominação estrangeira. Se os discípulos saíssem anunciando que ele era o Cristo, o seu ministério ainda em curso sofreria um desvirtuamento. Era a vontade de Deus que a contradição aumentasse ainda mais a respeito do nosso Senhor e só depois da rejeição, crucificação e ressurreição, os apóstolos poderiam compartilhar a descoberta de como identificaram Mestre. A partir daí, seria preciso fé para alguém, naqueles tempos, repetir a confissão de Pedro e significar Jesus de tal maneira.

Que paradoxo! De que maneira Jesus herdaria o trono de Davi, reinando para todo o sempre sobre a casa de Jacó, permitindo que fosse morto? Aquilo não poderia entrar na cabeça dos discípulos enquanto o Mestre convivia com eles. Mas considerando que o leitor da época da edição do 3º Evangelho já tivesse conhecimento sobre a pregação da obra redentora de Cristo, o autor sagrado passa diretamente para o ensino de que o seguidor deve carregar a sua cruz, pulado o trecho de Marcos 8:31-33. Será mostrada a necessidade de renúncia às ambições egoístas pela adoção de um novo estilo de vida capaz de promover o Reino de Deus. Aquela era a conquista que o nosso Senhor pretendeu alcançar pelas sábias contradições que suscitou.

Oras, a pergunta que não quer calar seria o que significa Jesus para o cristão na atualidade? Praticamente não há nada de desafiador alguém confessar ser Jesus o Messias no nosso tempo. O brasileiro, acostumado desde criança a chamar o Senhor de Cristo e ignorado qual o real significado do vocábulo (literalmente quer dizer "ungido"), só inovará se for seguir as mesmas atitudes polêmicas e aparentemente contraditórias do Mestre.

Pois bem. Quando vejo a Igreja criando obstáculos para a inclusão do pecador, não aceitando a condição dos homossexuais, exigindo das pessoas que, ao se converterem, sejam capazes de se adequarem num determinado padrão de comporta mento moral, percebo o quanto a cristandade ainda precisa conhecer melhor o seu Cristo. Do que adianta repetirem a confissão de Pedro se muitos líderes religiosos adotam atitudes incompatíveis com a obra feita por Jesus? Pois, quando rejeitam qualquer ser humano, é como se estivessem novamente pregando o Messias no madeiro!

Há um desvio de conduta nas igrejas que precisamos abolir. Aceitamos o pecador que se arrepende mas erramos em exigir dele um comportamento que se ajuste ao nosso, ignorando as dificuldades de cada um em se conduzir. Além do mais, pecamos em impor doutrinas e preceitos de homens tirando das pessoas a liberdade proposta em Cristo Jesus. Aliás, não faz muito tempo, durante uma missa rezada em 25/05/2013, o papa Francisco defendeu o batismo dos filhos das mães solteiras, advertindo os católicos com estas palavras:

"Essa mulher teve a coragem de continuar a gravidez. E o que encontra? Uma porta fechada?"

Se olharmos por esse prisma, continua sendo ousado e desafiador abraçar a causa de Jesus livre do fermento da religiosidade. Se imitarmos o seu comportamento escandaloso, seremos rejeitados pelos fariseus do presente. Seremos identificados pelos hipócritas como mundanos, apóstatas e hereges. Experimente, por exemplo, entrar num boteco e se sentar à mesa junto com algum necessitado espiritual que entorna um copo de cerveja para afogar as mágoas. Não vai demorar muito para que os "santinhos" comecem a dizer que você estava na "roda dos escarnecedores", citando equivocadamente o Salmo 1º.

Creio que esta é a cruz que temos para carregar seguindo os passos do Mestre. Do que adianta ao discípulo ganhar aplausos da Igreja inteira e se perder quanto ao verdadeiro propósito do Evangelho? Pois quem se envergonhar de conviver com o pecador, dele também se envergonhará o nosso Senhor quando vier encontrar-se conosco na sua glória. Portanto, não nos enganemos sobre quem foi Jesus: o maior "amigo dos publicanos e dos pecadores" (Lc 7:34).

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