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segunda-feira, 12 de março de 2012

Conflitos de um salmista atribulado

"Penso nos dias de outrora,
trago à lembrança os anos de passados tempos.
De noite indago o meu íntimo,
e o meu espírito perscruta.
Rejeitará o Senhor para sempre?
Acaso não torna a ser propício?
Cessou perpetuamente a sua graça?
Caducou a sua promessa para todas as gerações?
Esqueceu-se Deus de ser benigno?
Ou, na sua ira, terá ele reprimido as suas misericórdias?
Então, disse eu: isto é a minha aflição;
mudou-se a destra do Altíssimo."
(Salmo 77.5-10; tradução ARA)

Em algum momento da monarquia davídica, ou quem sabe até no exílio babilônico, parece ter vivido o ambíguo Asafe, a quem é atribuída a autoria de doze salmos da Bíblia.

Como todo israelita, Asafe foi instruído nas escrituras da Torá. Aprendeu sobre a história de seu povo, ouvindo desde criança a versão milagrosa de como os seus antepassados teriam sido libertados da escravidão egípcia. E também deve ter recebido advertências de seus professores acerca das prevaricações daquela geração da época de Moisés, tida como ingrata, infiel, inconstante e de caráter dúbio.

Todavia, nem Asafe ou os seus ascendentes mais próximos presenciaram os mesmos eventos fenomenais registrados nos livros de Êxodo e de Josué. Jamais ele viu o Mar Vermelho se abrindo, nem a água saindo da rocha ou mesmo teria provado do maná. Ao invés de todas estas coisas, ele foi testemunha das dores humanas, do desespero, das tragédias, derrotas militares e enfermidades, dando a impressão de que o ministério de Moisés foi mais mitológico do que real.

Não muito diferente de Asafe, assim vejo hoje os cristãos do presente. Não conhecemos Jesus andando pelas cidades da Galileia e nem assistimos algum de seus milagres. As curas dos cegos, paralíticos, surdos, mudos, leprosos e lunáticos foram relatadas a nós através das penas dos evangelistas em livros conservados por séculos pela tradição eclesiástica sem qualquer prova acerca dos eventos narrados. E, com isto, aquele que é tido para as igrejas como o Cristo, o sucessor de Moisés e a encarnação da divindade, também vira um mito bem distante nos nossos momentos difíceis.

Hoje muitos neo-pentecostais tentam vender a imagem de Jesus como sendo uma entidade viva que ainda opera milagres, Na indústria da fé, prega-se constantemente que pessoas têm sido curadas de câncer e AIDS. Outras são "libertas" de supostos espíritos demoníacos (geralmente associados aos orixás das religiões afro-brasileiras para atender ao interesse proselitista dos neo-pentecostais). E, neste contexto, milhões são induzidos a acreditar que estão manifestando possíveis dons da época apostólica, "falando em outras línguas", tendo visões de anjos e se esquecendo que tudo muitas das vezes não passa de uma hipnose coletiva.

O certo é que, diante da existência de narrativas religiosas que falam em milagres, o ser humano vai ser sempre tentado a desejar uma repetição de acontecimentos que ele acredita ter ocorrido no passado afim de adoçar com ilusões a sua dura realidade. Ao invés de atentar para uma significação mais profunda do mito, as pessoas preferem ficar na espera de soluções rápidas e imediatas, desejando que as coisas se cumpram como na música O chão vai tremer do grupo gospel Toque No Altar:

"O chão vai tremer!
O Céu vai se abrir!
Os anjos de Deus vão descer e subir"

Mas não é esta a realidade! A verdade é que a alma humana vive farta de males e todos nos confrontamos com a morte. Somos consumidos pela aflição e, nestas horas, o crente sofre a inevitável dor de ser rejeitado até que se ache só, aterrorizado e sufocado. Nenhum maná cai do céu e o milagre não mais se repete.

O que fazer?! Vamos ficar nos lembrando esquizofrenicamente das memórias de um passado lendário, repetindo para nós mesmos que, na hora H, o chão vai tremer e o céu vai se abrir? Ou iremos encarar de vez a nossa situação, desconstruindo corajosamente a imagem ilusória que criamos acerca da divindade em nossas mentes para encontrarmos o Deus vivo caindo na real?

Em seu Salmo 77, o poeta parece não desistir de buscar a Deus no dia de sua angústia e, curiosamente, nem se consola com os acontecimentos relativos às origens de seu povo (verso 2). Antes, em sua meditação, ele considera que foram apagados os rastros das pegadas de seus antepassados quando atravessaram o Mar Vermelho e o Jordão como se vê no versículo 19, o trecho que considero enigmático do poema bíblico em comento:

"Pelo mar foi o teu caminho;
as tuas veredas, pelas grandes águas;
e não se descobrem os teus vestígios"
(ARA)

Já uma outra tradução, a Bíblia de Jerusalém, diz assim:

"Teu caminho passava pelo mar,
tua senda pelas águas torrenciais,
e ninguém reconheceu tuas pegadas."
(BJ)

Para a surpresa dos leitores, eis que, nos dias de Moisés, aquela geração má e adúltera não foi capaz de reconhecer o Deus que tinha salvado o povo da escravidão do faraó. De nada teria adiantado a ocorrência de prodígios como o mar se abrir e a água escorrer da pedra dura e seca. Poucos tiveram fé e muitos retornaram ao Egito em seus corações.

Mas como seria vazia a nossa existência sem o drama do sofrimento? Como que rapidamente nos esqueceríamos de coisas tão importantes da vida se tudo fosse um mar de rosas? Será que o comodismo nos faria bem? Pode a bonança do mar instruir um aprendiz de navegante?

Tenho pra mim que religiões como as seitas neo-pentecostais, que ensinam pessoas a fugirem do sofrimento fazem um grande mal ao indivíduo. A ideia que tais "pastores" passam sobre um Deus que sempre cura torna-se inegavelmente injusta e inverídica. Se a pessoa enferma não é curada, eles dizem que é preciso orar mais, fazer jejum duas vezes na semana, subir no monte, adequar-se moralmente nas regras da seita, dar dízimos e ofertas desafiadoras. E, se ainda assim nada ocorrer, a resposta final será: "é porque você não teve fé, meu irmão".

No momento, tenho buscado acompanhar durante umas poucas horas do dia o sofrimento de minha avó materna internada no Hospital Municipal Ronaldo Gazolla, em Acari, no Rio de Janeiro. E confesso que não está nada fácil a situação dela. Desde sua internação na Unidade de Pronto-Atendimento (UPA) da Tijuca (05/03) até agora está faltando fechar o diagnóstico e já não é mais possível conversar direito com ela.

Tendo sido ela fiel por anos à IURD, agora vovó está lá sem o apoio fraterno desta seita, tornando-se um anti-marketing do Gézuiz curandeiro dos (in)vangélicos. Membros da igreja chegaram a me dar aquela indireta de que a situação de doença dela teria sido porque minha avó, nos últimos anos, trocou a IURD do bispo Pedir Mais Cedo pela IMPD do "apóstolo" Valdomiro. E, na IMPD, certamente querem mais é abafar o caso de que assumirem que uma irmã dizimista fiel está morrendo num hospital.

Nestas horas, restam só mesmo pessoas verdadeiramente próximas e gente de alma boa sem nenhuma vinculação religiosa-institucional que, eventualmente, oferece algum apoio. Tem até uma mulher da atual igreja dela que a ajudou bastante, doando parte de seu tempo para auxiliar a família a dar banho nela quando vovó ainda estava em casa. Mas, na verdade, os pastores dessas seitas não estão nem aí. O negócio deles é tirar a grana das pessoas e alimentar ilusões que, em momentos como este, aumentam mais ainda o sofrimento do doente.

Atualmente, já sem poder conversar com minha avó visto que ela não está mais lúcida, ouço de sua boca tão somente gemidos de dor e palavras sobre morte (não sei se ela quer morrer ou se sente medo da morte). Cheguei a ouvi-la pedir socorro a Jesus e também chama pelos seus falecidos pais. Porém, o Gézuiz das seitas neo-pentecostais nada faz nestas horas. Apenas pede o dízimo das pessoas e as ameaça com um inferno abrasador...

Onde estão os tempos de milagres? Será que eles realmente existem?!

Aí que está. Penso que os milagres sempre existiram e não deixarão de existir. Só que eles fazem parte da nossa compreensão mítica e compõem narrativas bíblicas que nos levam a um despertamento da espiritualidade interior. Não para aguardarmos uma repetição de acontecimentos dentro deste mundo físico, mas sim para mergulharmos no auto-conhecimento. E aí, nestas horas, nada mais libertador para o ser humano do que o confronto com a realidade tal como fez Jesus (não o Gézuiz) em suas últimas palavras na cruz quando recitou o Salmo 22 em aramaico às três da tarde e talvez nem já estivesse tão consciente: "Deus meu, Deus meu, por que me desamparaste?" (ver Mc 15.34).

Assim como deram vinagre a Jesus numa esponja para prolongar o seu sofrimento afim de zombarem se Elias viria mesmo salvá-lo, não nego que hoje vivo um conflito ético em relação a minha avó. Consegui que a ambulância da SAMU a tirasse de casa no dia 05/03, sendo que a mandaram pra UPA. Depois, como a UPA não podia fazer transfusão de sangue, entrei com um processo no dia 09, durante o plantão judiciário, para que ela fosse transferida para um hospital, o que veio a ocorrer neste sábado passado (10). E assim ela tem permanecido num lugar bem distante de sua casa, passando a maior parte do tempo sem acompanhantes, podendo receber visitas só três vezes na semana e o hospital ainda cria as mais absurdas restrições de horário para o acompanhante da pessoa idosa poder entrar.

Será que eu também estaria ajudando a dar "vinagre" a ela para prolongar mais ainda seu sofrimento?

De qualquer modo, não voltaria atrás no que fiz pois meu entendimento é que devemos buscar a vida e não a morte, mas sei que Deus me perdoa porque não sei o que faço. E aí minha oração pela vovó é que se faça a vontade de Deus. Não quero enganar a mim mesmo com expectativas em falsos milagres e muito menos pregar mentiras com uso desaconselhável da Bíblia a algum paciente que sofre. Peço que ocorra o melhor para ela neste momento e acho que nenhum de nós sabemos o que é melhor, sendo que as esponjas de vinagre simplesmente ocorrem e contribuem para a história da vida de cada um.

"Os céus e a terra tomo, hoje, por testemunhas contra ti, que te propus a vida e a morte, a bênção e a maldição; escolhe, pois, a vida, para que vivas, tu e a tua descendência" (Deuteronômio 30.19; ARA)

Que Deus tenha misericórdia de nós todos e nos dê uma boa semana!

4 comentários:

  1. Rodrigão, como disse o Nietzsche: "Aquilo que se faz por amor está sempre além do bem e do mal".

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  2. Inspiradas estas palavras do Nietzsche! Uma frase digna de entrar no cânon bíblico como mais um provérbio. Aliás, mesmo desconhecendo o contexto, parece que tem tudo a ver com as mensagens de Jesus fazermos do amor a essência das nossas motivações.

    Dentro do que colocou, é certo que nem sempre saberemos tomar as decisões corretas. Porém, se nossa motivação for boa, a escolha errada torna-se perdoada e aí será cada consciência quem julgará.

    Valeu pela excelente contribuição, mesmo que com poucas palavras.

    Abração!

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  3. Rodrigo, é impossível a gente não se tocar com os seus textos, especialmente nos casos de sentimentos intensos como este.

    Forte abraço.

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  4. Caro Ivani,

    Obrigado por sua mensagem ao texto que escrevi.

    Como expôs certa vez o escritor norte-americano Philip Yancey, "os escritores não são muito mais do que xeretas espiando pelo buraco da fechadura da realidade" e acho que isto de alguma maneira se aplica aos amadores blogueiros...

    Minha avó está numa situação bem difícil e que piora ainda mais com a precariedade do sistema público de saúde. Sei que me horas como esta nem sempre conseguimos fazer o máximo. Porém, quando agimos, como não se sentir impotente diante de determiandas situações que estão além do nosso controle?

    Valeu pelo seu apoio!

    Abração.

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