Felizmente, no Brasil, a água é considerada um bem de uso comum do povo. Trata-se de um recurso livre de apropriação pela iniciativa privada ou mesmo pelo Estado, muito embora isto não signifique impossibilidade de se cobrar pelo seu uso ou de se conceder a um particular a execução de serviços públicos como o saneamento básico. E, justamente para resguardar o uso prioritário e múltiplo das águas, uma vez que os recursos hídricos são finitos na natureza, sendo grande as pressões econômicas, a Lei Federal n.º 9.433/97 previu a criação dos comitês de bacia hidrográfica.
Inspirando-se no modelo francês, desejou o legislador brasileiro promover uma gestão descentralizada das águas com a participação do Poder Público, dos usuários dos recursos hídricos e das comunidades envolvidas no território de cada bacia hidrográfica. Ou seja, através destes três setores, são compostos os comitês de bacia afim de que, em conjunto, as pessoas jurídicas integrantes possam elaborar o planejamento da respectiva área de atuação. E, embora os comitês sejam compostos apenas por entidades eleitas entre seus pares, entendo que é indispensável o incentivo à participação pública dos cidadãos. É o que diz o jurista Paulo Affonso Leme Machado em seu livro Direito ambiental brasileiro:
“O controle do uso das águas – patrimônio coletivo – não terá êxito se o público – em todos os seus segmentos – não tiver oportunidade de acompanhar a utilização dos instrumentos da Política Nacional dos Recursos Hídricos, em especial a elaboração do Plano de Recursos Hídricos. Valem aqui os argumentos expendidos sobre a participação do público no Estudo de Impacto Ambiental. Antes de ser apreciado e votado pelo Comitê de Bacia Hidrográfica seria de alta valia que o Plano de Recursos Hídricos proposto pelas Agências de Água fosse publicado na íntegra para divulgação, inclusive, via eletrônica, e sua síntese, contendo os programas de aplicação dos recursos financeiros, publicada nos Diários Oficiais da União, dos Estados e dos Municípios interessados. Com a publicidade prévia, informa-se a tempo e de forma antecipada em relação á decisão de adoção do Plano.”
Em 2001, quando ainda era estudante de Direito, comecei a me interessar pelos comitês de bacia. Lembro-me que, no dia 11 de setembro daquele ano, enquanto ocorria o atentado terrorista em Nova York, eu estava numa reunião em um hotel da Região dos Lagos sobre a formação do comitê do rio Macaé. Na época, eu era o representante da extinta ONG Instituto Planeta Vivo de Desenvolvimento Sustentável e presenciei todo o jogo de interesses do (des)governo Garotinho e das prefeituras dos municípios envolvidos. Recordo muito bem de como alguns políticos tentavam cooptar as ONGs e os pequenos usuários das águas para apoiarem seus objetivos nem sempre transparentes. Secretários de meio ambiente, com a justificativa de estarem "compensando a natureza", queriam mesmo era tomar dinheiro dos grandes usuários. Principalmente da riquíssima PETROBRÁS.
Ainda assim, penso que valeu a pena aquele comitê ter sido criado assim como tantos outros no Rio de Janeiro e nos demais estados. Pois tendo em vista o baixo grau de maturidade da sociedade brasileira, penso que a gestão democrática e participativa tem sido um importante avanço para que os cidadãos comecem a se interessar pela fiscalização e o acompanhamento das diversas políticas públicas. Não só quanto aos recursos hídricos como em relação às unidades de conservação da natureza (parques, reservas, áreas de proteção ambiental, etc) e dentro de outros assuntos além do meio ambiente. Tanto é que precisamos ficar mais atentos sobre o que acontece nos conselhos municipais de saúde, de educação, de transporte, do idoso, de tutela do menor e dos animais que precisam funcionar satisfatoriamente nas nossas respectivas cidades.
De acordo com o artigo 38 da Lei n.º 9433/97, esta é a competência dos comitês de bacia hidrográfica:
I - promover o debate das questões relacionadas a recursos hídricos e articular a atuação das entidades intervenientes;
II - arbitrar, em primeira instância administrativa, os conflitos relacionados aos recursos hídricos;
III - aprovar o Plano de Recursos Hídricos da bacia;
IV - acompanhar a execução do Plano de Recursos Hídricos da bacia e sugerir as providências necessárias ao cumprimento de suas metas;
V - propor ao Conselho Nacional e aos Conselhos Estaduais de Recursos Hídricos as acumulações, derivações, captações e lançamentos de pouca expressão, para efeito de isenção da obrigatoriedade de outorga de direitos de uso de recursos hídricos, de acordo com os domínios destes;
VI - estabelecer os mecanismos de cobrança pelo uso de recursos hídricos e sugerir os valores a serem cobrados;
VII- estabelecer critérios e promover o rateio de custo das obras de uso múltiplo, de interesse comum ou coletivo.
Nós, simples cidadãos, podemos nos fazer representar nos comitês de bacia hidrográfica através das ONGs ambientalistas que existem em nossa sociedade local (art. 39, V da lei). Por esta e outras razões, precisamos frequentar mais estas entidades, lutarmos para que elas atuem com transparência, democracia e sejam melhor controladas por seus membros. Infelizmente, como é bem divulgado pela imprensa, existem muitas ONGs picaretas que são fundadas apenas para fins de arrecadação de recursos financeiros em projetos suspeitos nos quais o dinheiro da nação é desviado. Só que, se situações como estas ocorrem é porque nós, a sociedade civil desorganizada, assim permitimos deixando de participar ativamente do associativismo.
Conhecendo um pouco da política europeia, sobretudo de países onde não existe a unicidade sindical, tenho visto que a representação da sociedade por ONGs pode muito bem dar certo desde que exista realmente uma participação coletiva, sendo indispensável o desenvolvimento de uma cultura mais habituada com a democracia. Em países desenvolvidos como a Alemanha, as ONGs e organizações sindicais costumam ter um número de membros com muito mais expressão do que aqui. Pois, como diz um conhecido meu lá da Prefeitura de Nova Friburgo, no Brasil temos “INGs” que seriam os “indivíduos não-governamentais”.
Morando há pouco mais de três meses aqui na cidade do Rio de Janeiro, tenho procurado me inteirar de alguns acontecimentos pertinentes à política local e regional. Recentemente, recebi um email do ambientalista Sérgio Ricardo sobre o processo eleitoral da plenária do Subcomitê da Baía de Guanabara em seu trecho oeste, conforme pode ser lido no edital disponibilizado eletronicamente pelo governo estadual:
http://urutau.proderj.rj.gov.br/inea_imagens/downloads/EDITALSCBG.pdf
Este comitê encontra-se dentro de uma área de atuação que inclui 17 municípios fluminenses, os quais contém rios que deságuam na baía de Guanabara, incluindo o Rio de Janeiro com seus cursos d'água urbanos. É composto por 45 membros com direito à voz e voto, com mandato de dois anos, sendo 15 representantes de cada setor (usuários das águas, sociedade civil organizada e governos). E, no trecho oeste da área de atuação do comitê, serão eleitos desta vez 8 membros das organizações sociais com interesse em recursos hídricos que atendam à Lei Estadual n.º 3239/99, artigo 62, as quais são:
a) Consórcios e associações intermunicipais de bacias hidrográficas;
b) Associações regionais, locais ou setoriais de recursos hídricos;
c) Organizações técnicas e de ensino e pesquisa voltadas aos recursos hídricos e ambientais;
d) Organizações não-governamentais com objetivo de defesa de interesses difusos e coletivos da sociedade, e
e) Outras organizações assim reconhecidas pelo Conselho Estadual de Recursos Hídricos (CERHI).
Diante de uma notícia destas, vejo o quanto é importante os cidadãos da sociedade civil desorganizada ficarem mais atentos a estes movimentos. Nós cariocas andamos há décadas insatisfeitos com a poluição da nossa baía de Guanabara e dos rios que nela deságuam, mas a grande maioria nem sabe como se posicionar para defender o direito de todos a um meio ambiente equilibrado, conforme dispõe nossa Constituição Federal. Simplesmente ficamos alienados e deixando que outros decidam tudo por nós.
Meu desejo é que, em cada bacia hidrográfica, as pessoas comecem a se mobilizar. Acho que cada cidadão precisaria não só se informar sobre como anda o comitê de bacia de sua região como também precisa fazer parte de uma ONG séria capaz de verdadeiramente representar a sociedade. E, se numa cidade faltam entidades idôneas para o desempenho desse papel, que criemos novas organizações com um estatuto realmente democrático, eleições periódicas, declaração de imposto de renda sempre em dia e um número expressivo de membros.
Muito bom o artigo, parabéns ao autor.
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