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domingo, 13 de novembro de 2011

"Se Deus está conosco, por que tanto sofrimento?"

Certamente você já se deparou com pessoas formulando abertamente tais perguntas e até mesmo possa ter se questionado e jamais exposto aquilo que pensou. Mas saiba que, milênios antes dos ateus da era contemporânea fazerem indagações deste tipo, a Bíblia relata que um homem chamado Gideão teve a coragem de jogar este sentimento na cara do Anjo do SENHOR.

"Respondeu-lhe Gideão: Ai, senhor meu! Se o SENHOR é conosco, por que nos sobreveio tudo isto? E que é feito de todas as suas maravilhas que nossos pais nos contaram dizendo: Não nos fez o SENHOR subir do Egito? Porém, agora, o SENHOR nos desamparou e nos entregou nas mãos dos midianitas." (Juízes 6.13; ARA)

Em outras traduções do Texto Massorético, estas mesmas palavras atribuídas a Gideão mostram-se ainda mais rudes do que na versão revista e atualizada de João Ferreira de Almeida:

"e Guidon disse-lhe: 'Por favor, meu senhor, se o Eterno está conosco, por que nos sobreveio tudo isto? Onde estão todos os Seus milagres, que nossos pais nos contaram, dizendo: Não nos fez o Eterno subir do Egito? Pois agora o Eterno nos abandonou e nos deu na mão dos midianitas'" (Sêfer)

"Gedeão lhe respondeu: "Eu te peço, meu Senhor! Se Iahweh está conosco, donde vem tudo quanto nos acontece? Onde estão todos os prodígios que os nossos pais nos contavam dizendo: 'Não nos fez Iahweh subir do Egito?' E agora Iahweh nos abandonou e nos deixou cair sob o poder de Madiã..." (Bíblia de Jerusalém)

Embora o Anjo do SENHOR não responda a Gideão, a resposta parece ter sido dada pelo redator de Juízes nos versos de 7 a 10 do capítulo 6. De acordo com a narrativa bíblica, os israelitas tinham se afastado de Deus e, por consequência da prática de coisas más "aos olhos" do Eterno, passaram a ser subjugados pelos midianitas e outros povos nômades que pareciam viver do saque das nações sedentarizadas.

Dentro do contexto religioso dos povos sedentários do antigo Oriente Próximo, os quais viviam da agropecuária, havia o costume idolátrico de cultuar Baal. Debaixo de árvores consideradas sagradas, como o carvalho onde o Anjo do SENHOR apareceu a Gideão, eram oferecidos sacrifícios para as divindades cananeias na vã expectativa de se obter resultados melhores nas próximas colheitas.

Além disso, a narrativa relata que a opressão dos midianitas, embora tenha durado sete anos, parece ter sido mais dura que as anteriores. Tanto é que, temendo os seus adversários, os israelitas precisavam esconder nas grutas os estoques de alimentos para não serem totalmente roubados pelos adversários. E ninguém ousava tomar uma providência prática, de modo que as tribos de Israel andavam desunidas e cada vez mais se alienando dentro da emburrecida adoração baalista.

Ora, a pior opressão não é aquela que está fora de nós, mas sim dentro. E, neste caso, Gideão foi um homem inconformado com a realidade em que vivia. Ele, sendo pobre e explorado pelos estrangeiros em sua própria terra, demonstrou não gostar muito daquela conversinha mole dos religiosos e foi até capaz de duvidar da aparição sobrenatural do Anjo do SENHOR, considerada como uma teofania por muitos teólogos.

Num interessante paralelo com Moisés, Gideão é convocado para uma missão humanamente impossível. De modo algum ele é censurado por Deus por agir com sua maneira rude de manifestar as suas dúvidas quanto à Divina Providência. E, em todas as vezes que fala com o Eterno, o maior dos juízes de Israel é encorajado a lutar numa guerra santa contra os inimigos do seu povo:

"Então, se virou o SENHOR para ele e disse: Vai nessa tua força e livra Israel da mão dos midianitas; porventura não te enviei eu?" (Jz 6.14; ARA)

Num precioso relacionamento de intimidade entre Gideão e Deus, um coloca o outro a prova. Depois de pedir o sinal do velo e o orvalho, afim de que a sua missão fosse autenticada por um milagre (Jz 6.36-40), Deus então reduz o número do exército de Gideão para atacar o inimigo com tão somente 300 homens (Jz 7.1-8). E o êxito de sua campanha militar ocorre de maneira surpreendente. Depois que Gideão soube do temor infundido no adversário (Jz 7.9-15), os midianitas foram vencidos sem que ocorresse a princípio nenhum combate físico, pelo que foram tomados pelo pânico do Deus de Israel (Jz 7.19-22).

Por mais que um relato sobre guerra santa venha chocar a moral de um leitor do século XXI, não se pode ignorar a essência espiritual que se encontra ali. A Bíblia é um ótimo livro para expor com riqueza de detalhes o comportamento humano, sem nada a esconder sobre as falhas de caráter de seus personagens, mesmo em relação aos líderes de Israel. E, por sua vez, a guerra santa, necessária para a sobrevivência dos povos antigos, torna-se hoje uma ilustração da batalha que travamos dentro de nós mesmos e nos nossos relacionamentos com a sociedade em busca da justiça.

Pode-se dizer que a realização da justiça é algo inseparável do Reino de Deus, a respeito do qual Jesus muito pregou. E o estabelecimento deste Reino se faz tanto através da intervenção milagrosa de Deus como também guarda uma relação com o agir do seu povo aqui na Terra, executando-se através de nós a missão apostólica de anunciar ao mundo as boas novas da graça. Se bem que a vinda dessa nova realidade não vem com aparência exterior e já foi começada há muito tempo (Lucas 17.20-21).

Certamente que, nesta luta sagrada contra o mal, Deus não quer que sejamos covardia. Mesmo dentro do refinamento ético que a evolução dos tempos nos impõe, afim de nos abstermos atualmente de qualquer tipo de derramamento de sangue, é preciso ter a mesma disposição de Gideão para enfrentarmos os problemas pessoais e da coletividade.

Como podemos ler nos capítulos 6, 7 e 8 de Juízes, Gideão evoluiu em relação ao argumento de que a nação de Israel tinha sido abandonada por Deus. Após libertar-se interiormente do ópio da idolatria religiosa, ele partiu para o enfrentamento da realidade e mobilizou a sua comunidade para enfrentar os invasores.

Igualmente, também precisamos da mesma atitude de Gideão. Temos que romper com o viciante conformismo no qual o Brasil hoje se encontra, "deitado eternamente em berço esplêndido". Pois, afinal, conforme está lá em Mateus 11.12, o Reino "é tomado por esforço, e os que se esforçam se apoderam dele" (ARA). Ou, numa versão sem eufemismo, o Reino "é assaltado com violência; são violentos os que o arrebatam" (TEB).


OBS: A ilustração acima refere-se à pintura do artista sacro holandês Maarten van Heemskerck que viveu entre 1498 e outubro 1574. O quadro, pintado por volta de 1550, retrata o personagem bíblico Gideão agradecendo a Deus pelo milagre do orvalho (passagem de Juízes 6.36-40) e se encontra no Museu de Belas Artes de Estrasburgo, localizado na Alsácia francesa. Já a imagem à esquerda cuida-se de um auto-retrato que, originalmente, foi pintado junto com o Coliseu. Maarten van Heemskerck ficou conhecido por suas representações das Sete Maravilhas do Mundo, tendo sido ele filho de uma família de pequenos agricultores em Heemskerk, norte da Holanda.

4 comentários:

  1. Rodrigão, nós seres humanos sofremos da Síndrome de Avalista", queremos achar alguém que seja responsável por nossas KHDAS!!!

    É mais simples, cômodo e igualmente desonesto jogar a batata quente no colo de alguém do que "rebolar" e assumir a própria responsabilidade sobre a gestão da vida para fazer menos besteira e com isso não ter de amargar as indesejáveis consequências.

    Sofremos por questões simples: Pura e mera contingência, passividade como vc relatou no final do texto em encarar os processos de mudança do nosso contexto ou então, por consequência da nossa irresponsabilidade em tratar bem o "dom da vida"!

    NADA A VER COM DEUS! COISAS QUE ACONTECEM NA CAMINHADA E QUE DIZEM RESPEITO SOMENTE A NÓS...

    OH!!! E esse blog tá de sacanagem comigo, tive que escrever 3 comentários pra conseguir postar 1! rsrsrs

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  2. Olá, Franklin!

    Pode ser que você tenha sofrido alguma instabilidade temporária da rede. Independente isto, tenho tido problemas depois que instalei um programa chamado "ASK" e agora não consigo desintalar do meu computador cujo sistema é o Windows Vista e impede a remoção de outros programas. Vou acabar ligando pra área de suporte de Microsoft.

    Estou de acordo com os seus comentários sobre a nossa valha mania de querermos culpar alguém.

    Recentemente, na comunidade no Facebook de uma igreja batista da qual fui membro, um irmão assim se manifestou:

    "De uns tempos pra cá me tornei uma pessoa cética quanto à autoria do Diabo em relação aos meus pecados (e aos dos outros). Não sei por que, mas jah ouvi algumas vezes casos como 'Pow, eu trai a minha esposa... sabe como é, neh, o inimigo fica tentando... ele joga sujo...'"

    A desculpa que de foi o diabo quem me levou a fazer isto ou aquilo é explicada pela análise comportamental quando nos deixamos mover por aquilo que o pesquisador norte-americano Julian Rotter chamou de "loc externo".

    Segundo ele, o "locus of control" (local de controle) seria a nossa percepção a respeito das causas subjacentes aos eventos existenciais. Assim, o locus of control (loc) seria a plataforma a partir da qual o indivíduo atribui significação de responsabilidade aos fatos ocorridos na vida.

    Podemos falar em loc interno quando a pessoa considera a sua inteira responsabilidade pelos efeitos ou consequências dos empreendimentos assumidos, admitindo serem os fatos - sejam esses positivos ou negativos - resultados de suas escolhas feitas. Contudo, o loc torna-se externo quando o indivíduo atribui os resultados dos acontecimentos a fatores ou circunstâncias situados fora ou além de seu poder. Neste caso, a pessoa considera os fatos ocorridos serem o resultado das escolhas feitas por outros indivíduos ou instâncias superiores.

    Deste modo, quando alguém põe a culpa no diabo (ou nos outros) pelas escolhas que faz é porque ainda não sabe discernir o quanto existe de condicionamento externo e o quanto existe de autonomia nos comportamentos assumidos, de modo que tal pessoa não consegue evitar polarizações em seus discursos, tendo uma clara tendência à submissão, passividade e esquiva quanto à autorresponsabilidade pelo resultado das ações tomadas. E isto talvez explique por que até hoje os "cultos de libertação" oferecidos por inúmeras "igrejas" vivem lotando...

    A verdade é que existem outros escapes semelhante a "botar a culpa no diabo", conforme Gênesis muito bem nos mostra quando Adão culpou Eva e esta a serpente.

    Quando falei a respeito do "loc externo", posso incluir aí o comportamento de culparmos os outros, as circunstâncias da vida, uma perda que tivemos no passado, uma doença, um insucesso, o trânsito nas cidades, etc.

    A maturidade está em reconhecermos até onde vai este condicionamento externo e até onde eu quiz agir de uma determinada maneira. E, tomando esta consciência, o passo seguinte e partir pra mudança. Agir!

    Grande abraço, meu mano!

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