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terça-feira, 22 de novembro de 2011

Como combater a violência no trânsito?

Neste domingo, dia 20/11, houve uma passeata diferente em São Paulo. Pessoas reuniram-se no Parque do Ibirapuera, zona sul da capital paulista, afim de protestarem contra a violência no trânsito.

A manifestação foi organizada pelo movimento União em Defesa das Vítimas de Violência (UDVV), através de uma caminhada, contando com a participação das vítimas e de seus familiares. E, conforme pude assistir ontem pela manhã, no programa Mais Você da Ana Maria Braga, na TV GLOBO, havia um recolhimento de assinaturas com a finalidade de tornar as leis mais duras para os casos de morte no trânsito, aumentando a pena do homicídio culposo para 5 a 8 anos, além da proposta de que o teste do bafômetro seja substituído por um exame clínico.

Na verdade, trata-se de um projeto de lei de iniciativa popular que propõe as seguintes alterações na Lei nº 9.503/97 (o Código de Trânsito Brasileiro, conforme o texto do abaixo-assinado virtual:

A revogação da infração administrativa prevista no artigo 165 e seguintes (A embriaguez ao volante passa a ser somente ilícito penal e não mais ilícito administrativo); A revogação dos artigos 276 e 277 dos procedimentos administrativos previstos (O procedimento administrativo foi incorporado às infrações penais); A revogação da parte final do artigo 291, caput, bem como do parágrafo primeiro e do inciso primeiro do artigo 291 (Eliminação do enquadramento à lesão corporal culposa); Propõe a alteração do artigo 302, acrescentando os §§ 2º, 3º e 4º (Aumento da pena, a obrigatoriedade da submissão ao exame clínico e a formalização de obtenção de provas de embriaguez); Propõe a alteração da redação do caput do artigo 306, e acrescentando ainda os §§ 1º e 2º (Eliminação do mínimo de concentração de 6 (seis) decigramas, a obrigatoriedade da submissão ao exame clínico, o aumento da pena e a formalização de obtenção de provas de embriaguez. (extraído do site http://www.naofoiacidente.org/)

Em relação ao exame clínico eu concordo totalmente. Afinal, muitos condutores pegos pela polícia dirigindo embriagados simplesmente recusam-se a fazer o teste do bafômetro bem como o exame de sangue já que ninguém é obrigado a produzir provas contra si mesmo em virtude do princípio basilar do devido processo legal. Então, se acabar a relativa obrigatoriedade do bafômetro, substituindo-o pelo exame clínico, em que profissionais de saúde farão uma observação do indivíduo detido pela polícia, a sociedade estará melhor protegida contra pessoas inconsequentes que jamais deveriam tocar no volante de um carro.

Contudo, tenho reservas em relação ao aumento de pena, visto que se trata de grande ilusão da sociedade acreditar que uma punição mais severa seja capaz de influenciar a conduta das pessoas.

Atualmente, a pena máxima para o homicídio culposo, quando o agente não tem a intenção de matar, é de no máximo quatro anos. De acordo com a proposta do grupo, a pena para quem matar no trânsito estando embriagado seria elevada para cinco a oito anos. Ou seja, impediria que, neste caso, o juiz condene a uma pena alternativa. Senão vejamos a proposta do grupo que acrescenta dispositivos ao art. 302 do CTB:

§ 2º. No homicídio culposo cometido na direção de veículo automotor, a pena será de cinco a oito anos, se o agente dirigir veículo automotor em via pública e estiver sob a influência de qualquer concentração de álcool ou substância tóxica ou entorpecente de efeitos análogos.
§ 3º. No caso da infração prevista no paragrafo anterior, todo condutor de veículo automotor, envolvido em acidente de trânsito ou que for alvo de fiscalização de trânsito, sob suspeita de dirigir sob a influência de álcool ou substância tóxica ou entorpecente de efeitos análogos, será submetido a exame clínico ou perícia médico legal que, por meio técnico, permita ao médico legista certificar seu estado.
§ 4º. A embriaguez a que se refere o artigo 302, § 2º deste Código poderá ainda ser constatada pelo agente de trânsito mediante a obtenção de outras provas em direito admitidas, acerca dos notórios sinais de embriaguez, excitação ou torpor apresentados pelo condutor que será encaminhado para a realização do exame clínico.

De acordo com esta reportagem da Folha de São Paulo, eis que um dos manifestantes, entrevistado pelos jornalistas, assim se manifestou:

"Só existem duas formas de mudar um comportamento: pela conscientização ou pela punição. A conscientização vai acontecer, mas ela é muito lenta, demorada. E eu não posso fechar os olhos para o que vejo no dia a dia (...) Hoje todo mundo usa o cinto, não por estarem todos conscientizados, mas porque é lei e obrigatório. Precisamos fazer a mesma coisa com a bebida, com uma lei mais rígida, e esperando que daqui a 50 anos as pessoas se conscientizem (...) Hoje a pessoa que comete homicídio culposo, ou seja, sem intenção de matar, vai pegar no máximo quatro anos de cadeia. No Brasil, com até quatro anos [de prisão], ela paga uma pena alternativa. Queremos que essa pena seja alterada para cinco a oito anos, ou seja, que se agrave pelo fato de ela estar embriagada." (extraído de http://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/1009352-caminhada-no-ibirapuera-lembra-vitimas-de-acidentes-em-sp.shtml)

Respeito a opinião dele, mas, sinceramente, não acho que este seja o caminho!

Se por um lado a vida não pode ser banalizada, não se pode achar que lotar as cadeias seja solução para tornar a convivência social mais segura e preventiva. Ainda mais no sistema carcerário brasileiro em que os estabelecimentos penitenciários são verdadeiras escolas do crime e que muito pioram a condição do indivíduo, tornando-o ainda mais revoltado e com sérias dificuldades de se reintegrar profissionalmente depois quando deixa o presídio.

Não podemos nos esquecer que a necessidade deve ser o fundamento para que seja aplicada a pena restritiva de liberdade. É o que nos ensina Cesare Bonesana, o Marquês de Beccaria (1738-1794) em sua clássica obra Dei Delitti e delle Pene (1766):

"Não bastava, porém, ter formado esse depósito; era preciso protegê-lo contra as usurpações de cada particular, pois tal é a tendência do homem para o despotismo, que ele procura, sem cessar, não só retirar da massa comum sua porção de liberdade, mas ainda usurpar a dos outros (...) Por conseguinte, só a necessidade constrange os homens a ceder uma parte de sua liberdade; daí resulta que cada indivíduo só consente em pôr no depósito comum a menor porção possível dela, isto é, precisamente o que era necessário para empenhar os outros a mantê-lo na posse do resto." (Dos delitos e das penas. Tradução de Flório de Angelis. São Paulo: EDIPRO, 1993, pág. 17) - destacou-se

Ora, a prisão de alguém apenas é justificável se for uma medida indispensável para assegurar a vida, a integridade física e a liberdade das demais pessoas dentro da sociedade. É algo que não pode ter nenhum caráter retributivo ou punitivo, mas tão somente o objetivo de impedir pessoas potencialmente perigosas de incidirem novamente em suas agressões, sendo óbvio que, em regra, não há nada de pedagógico numa cadeia.

Assim, entendo que aumentar a pena para mais de quatro anos é até válido. Porém, o mínimo para os casos em questão não pode ser de cinco anos! Pois é preciso que o magistrado, analisando cada caso particularmente, possa decidir se o fato é hipótese de conceder pena alternativa ou de tomar a medida extrema que seria mandar o sujeito pra uma cadeia.

Lamentavelmente, a prisão tem sido um meio de segregar as camadas mais pobres da população brasileira com menos renda e deficiência educacional. Porém, desde o século XIX, em seu livro A finalidade do direito, o jurista alemão Rudolf von Ihering (1818-1892) já considerava como irresponsável aplicar penas quando houvesse meios suficiente para a concretização do direito. Pois, do contrário, a própria sociedade viria a sofrer as consequências de estar se privando de uma parcela da sua liberdade.

Tal raciocínio de Ihering eu relaciono a outra proposta defendida pelo grupo paulista. De acordo com a ideia do abaixo-assinado, o artigo 306 do CTB passaria a ter a seguinte redação:

Art. 306. Conduzir veículo automotor, na via pública, sob a influência de álcool ou sob a influência de qualquer outra substância psicoativa que determine dependência.
Penas - reclusão, de um a três anos, multa e suspensão ou proibição de se obter a permissão ou a habilitação para dirigir veículo automotor.
§ 1º. No caso da infração prevista no artigo 306, todo condutor de veículo automotor, envolvido em acidente de trânsito ou que for alvo de fiscalização de trânsito, sob suspeita de dirigir sob a influência de álcool ou substância tóxica ou entorpecente de efeitos análogos, será submetido a exame clínico ou perícia médico legal que, por meio técnico, permita ao médico legista certificar seu estado.
§ 2º. A embriaguez a que se refere o artigo 306 deste Código poderá ainda ser constatada pelo agente de trânsito mediante a obtenção de outras provas em direito admitidas, acerca dos notórios sinais de embriaguez, excitação ou torpor apresentados pelo condutor que será encaminhado para a realização do exame clínico.

Embora não possamos abrandar a gravidade do caso quanto à conduta de alguém dirigir bêbado, penso que tudo se revolveria muito bem pelas
vias administrativas se as medidas adequadas fossem bem aplicadas. Deste modo, basta que se imponha a proibição do motorista infrator obter a permissão ou a habilitação para dirigir veículo novamente. E, somente nos casos de reincidência, e se o condutor embriagado estiver inabilitado, é que se aplicaria a restrição da liberdade da pessoa porque aí sim ela se torna uma ameaça em potencial para a vida, a integridade física dos outros, bem como para o convívio social.

Precisamos aprender a encarar esses problemas com maturidade, sem transportarmos as nossas dores emocionais para o debate político e muito menos nos deixarmos levar pelos inflamados discursos em favor do recrudescimento das penas. Sei que é difícil para alguém que, por exemplo, tenha perdido num acidente de trânsito a mãe, o pai, um irmão ou até um filho conseguir raciocinar de um modo multidimensional, colocando-se mesmo que por uns instantes na situação do lesionador. Só que, se não formos capazes de alargar a nossa visão, poderemos estar contribuindo para a criação de uma armadilha contra nós mesmo, abrindo mais espaços para o desenvolvimento de uma inescrupulosa indústria que muito se aproveita do Direito Penal, envolvendo autoridades corruptas, advogados criminalistas e a mídia sensacionalista.

Esta é a minha opinião, mesmo respeitando profundamente as iniciativas da União em Defesa das Vítimas de Violência e apoiando outras propostas do grupo.

OBS: A imagem acima foi extraída do blogue da UDVV em http://www.keikoota.com.br/blog/?p=461

8 comentários:

  1. Respondendo à minha própria pergunta, entendo que, mesmo em doses homeopáticas, só a conscientização pode mesmo resolver este problema no nosso país juntamente com a imposição de maiores dificuldades para que as pessoas possam dirigir através de avaliações mais rigorosas do candidato à carteira de habilitação do DETRAN. Como disse, não acredito no recrudescimento das penas. Ainda mais tratando-se de prisão. Acredito que, se as penas alternativas forem levadas á sério e não ficarem restritas ao fornecimento de cestas básicas, o lesionador pode ter maiores oportunidades de se regenerar e repensar a sua conduta irresponsável.

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  2. Rodrigo,

    Na madrugada do último feriado, um jovem de 23 anos, atleta, lutador de jiu-jitsu, foi atropelado e morto por um audi que estava fazendo um racha com outro carro de luxo. As investigações policiais concluíram que ambos os motoristas estavam com teor alcoólico acima do permitido. Ambos também estão presos acusados por homicídio doloso.

    Seria isso o início de um avanço nesta questão, visto que em muitos casos, o poder aquisitivo dos criminosos fala mais alto?

    Os advogados entraram com pedido de Habeas- corpus mais por enquanto sem sucesso.

    Um abraço.

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  3. Donizete,

    Penso que as manifestações não tenham muito a ver com o posicionamento da Justiça neste caso específico.

    Você mencionou um exemplo que pode ser considerado como crime doloso - o homicídio decorrente de racha de carros. Aliás, melhor dizendo, o racha seria um delito que a doutrina juríudica chama de "preterdoloso". Seria quando há dolo na conduta inicial do agente e o resultado alcançado é diverso do almejado. Por exemplo, quando alguém participa de um racha, o sujeito não pretende atropelar pessoas. Porém, como a cunduta é considerada flagrantemente atentatória à vida humana, pode-se dizer que, em tese, o agente assumiu os riscos do resultado.

    Sendo assim, o crime deixa de ser culposo e passa a ser doloso. E, havendo prisão em flagrante, o juiz pode não conceder nem habeas corpus e nem o relaxamento da prisão.

    Eu mesmo, se fosse magistrado, não concederia liberdade provisória porque o indivíduo pode reincidir e matar outras pessoas na via pública.

    Neste ponto, o CTB pega muito leve pra quem pratica o racha. Vejamos, pois, o que diz a norma:


    Art. 308. Participar, na direção de veículo automotor, em via pública, de corrida, disputa ou competição automobilística não autorizada pela autoridade competente, desde que resulte dano potencial à incolumidade pública ou privada:

    Penas - detenção, de seis meses a dois anos, multa e suspensão ou proibição de se obter a permissão ou a habilitação para dirigir veículo automotor.



    Porém, o tipo penal supramencionado diz respeito a alguém simplesmente participar de um racha. Pois, se o sujeito cometer um homicídio, aí já seria preterdoloso, podendo, inclusive, ir a juri.

    Abraços.

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  4. É uma questão complicadíssima!

    Ao mesmo tempo em que concordo com aquele cidadão que disse que só a conscientização não basta, por ser muito lenta e demorada,
    não posso questionar, entretanto, uma realidade que você bem colocou, de que não se pode achar que lotar as cadeias seja solução para tornar a convivência social mais segura e preventiva.

    O cidadão, diferente do profissional de direito, pensa e julga com parcialidade. Talvez instigado pelo sensacionalismo dos jornalistas que contribui para essa formação de opinião.

    Abraços.

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  5. Rodrigo


    Já que a lei seca, pela recusa do indivíduo em se submeter ao teste do bafômetro, é mais uma lei a não pegar neste país, veja o que a Toyota sugeriu para o país da impunidade:


    Carro que não deixa bêbado dirigir:

    “A montadora japonesa Toyota criou em parceria com a empresa Hino um dispositivo que mede o teor alcoólico do hálito do motorista e pode bloquear a partida do automóvel caso o limite tolerável seja ultrapassado”. (rsrs)

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  6. Concordo com você, Donizete!

    A questão deve ser analisada com razoabilidade pelo legislador.

    Há vários casos diferentes de homicídios culposos envolvendo o trânsito. Os mais graves são os atropelamentos intencionais seguidos pelos rachas de veículos.

    Porém, há situações em que a culpa do condutor é questionável ou atenuada em virtude de situações concorrentes. Seria o caso da vítima atravessar improdentemente fora da faixa de pedestres em pista de alta velocidade e, na hora, o condutor, devidamente habilitado e sem álcool no sangue, mas com velocidade um pouco acima do permitido, não conseguiu controlar a direção do veículo e nem freiar a tempo.

    Assim, acho que nos casos onde a causa do acidente foi tão somente a culpa e não o dolo, a pena de prisão torna-se desnecessária, o que não livraria o agente de pagar através de trabalhos comunitários bem como responder civil e administrativamente, tendo, inclusive, que indenizar a família da vítima e talvez nunca mais dirigir.

    Certamente que, se procurarmos dentro da sociedade, encontraremos as mais emocionantes histórias de pessoas que, um dia, cometeram graves acidentes de trânsito mas que, posteriormente, mudaram radicalmente suas maneiras de viver e de pensar a vida. Muitas delas são trabalhadores, pais de família e já buscaram até uma reconciliação com a família da vítima.

    Há situações na vida em que a vítima sobrevivente de um atropelamento seriamente lesionada, bem como os familiares que tiveram uma perda, foram capazes de liberar perdão para o lesionador.

    Nem todo mundo resolve entrar com processo na justiça cível para ser indenizado pelos danos morais e materiais. Uns por questão de orgulho porque entendem que dinheiro nenhum pode apagar a sua dor, mas continuam nutrindo o ódio em seu coração contra o lesionador. E outros porque optaram por perdoar totalmente o agressor, compreendendo que seriam capazes de praticar os mesmos erros.

    De qualquer modo, a luta da sociedade civil por mais segurança no trânsito é uma causa justa e que eu apoio. E independnetemente dos manifestantes estarem muitas das vezes motivados pelo sensacionalismo dos jornalistas ou pelas suas emoções abaladas ainda pela perda de um parente, acho que é válido protestar. Afinal, é a vida humana que está em jogo.

    Abração!

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  7. Levi,

    Sinceramente, eu acho que o legislador deveria sempre evitar exageros na legislação.

    Para que uma lei "pegue", ela precisa estar em acordo com o fato social e a realidade. Pois, conforme a experiência tem mostrado, raramente as leis conseguem impulsionar um novo comportamento na sociedade. Isto proque as pessoas não costumam agir deste ou daquele modo porque agora é lei. Elas adotam condutas baseadas nas suas necessidades.

    Penso que a educação para o trânsito exige o controle das emoções que é muito mal trabalhado nas escolas e mesmo nas provas do DETRAN. Nós brasileiros lidamos muito mal com a pressa, com a irritação, com as provocações, com a frustração e com os problemas que nos surpreendem.

    Há países em que o trânsito tem muito menos regras e as pessoas se respeitam. Na caótica Índia, por incrível que pareça, os motoristas conseguem dirigir melhor do que nós mesmo com precária sinalização e dividindo as ruas com pedestres, carroças, bicicletas, ônibus e até elefantes.

    Por que nós não podemos melhorar sem precisar de leis e mais leis?!

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