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domingo, 23 de outubro de 2011

Em busca da consciência messiânica

Em 1578, durante a batalha de Alcácer-Quibir, morreu o monarca português D. Sebastião, o Desejado, aos 24 anos de idade, sem deixar nenhum descendente para reinar em seu lugar. Para os portugueses, ele era o único sucessor legítimo da Dinastia de Avis e, com sua morte prematura, o trono passou para Felipe II da Espanha, pertencente à Casa de Habsburgo.

Mesmo com a remoção de seu corpo para a Belém portuguesa, muitos não se conformaram com a morte do rei e daí criou-se o mito de que D. Sebastião ainda estava vivo e que retornaria um dia para livrar o país do domínio estrangeiro, dando início a um messianismo lusitano - o sebastianismo. Alimentando a crendice popular de que o monarca ainda iria retornar da mansão dos mortos para governar Portugal, o sapateiro Trancoso Bandarra chegou a compor suas trovas "prevendo" tal acontecimento. Assim, o movimento foi se revestindo de um caráter místico e patriótico, durando séculos e alcançando até o discurso de Antônio Conselheiro, o líder da Revolta de Canudos, no final do século XIX, no sertão nordestino.

Esperar pela chegada de messias ou de salvadores da pátria tem sido o repetitivo comportamento da humanidade há milênios. Quando leio os três primeiros evangelhos da Bíblia cristã, percebo nas entrelinhas uma certa indignação de Jesus quanto às expectativas messiânicas em sua época.

De acordo com a tríplice tradição dos sinóticos, houve uma ocasião em que Jesus perguntou aos discípulos sobre o que o povo e eles pensavam a seu respeito. Durante o diálogo, alguns levantaram a possibilidade de que o Mestre fosse João Batista, outros responderam ser ele "algum dos profetas" e houve até mesmo quem afirmou que talvez se tratasse de Elias (segundo as Escrituras hebraicas, o profeta Elias não morreu e foi arrebatado por Deus semelhante a Enoque). Então, intrepidamente, Pedro declarou que Jesus era "o Cristo" (ver Marcos 8.27-30; conferir com Mt 16.13-16 e Lc 9.18-20).

Para a surpresa dos discípulos que, assim como a maioria dos judeus da época, aguardavam a vinda de um messias capaz de livrar a nação do domínio romano, Jesus lhes proibiu severamente que anunciassem ser ele o Cristo. E tal vedação encontra-se não somente em Marcos 8.30 como também se repete em Mateus 16.20 e Lucas 9.21.

Por que razão Jesus teria advertido os seus discípulos para que não falassem a ninguém que ele era o Messias esperado por Israel? Será que de fato ele não era o Cristo? Seu tempo de morrer passando pelo sacrifício da cruz ainda não tinha chegado? Ou aquilo foi por razões de modéstia?

Aprendi através da doutrina eclesiástica que esta proibição teria sido transitória até ocorrerem a morte e ressurreição do Senhor, ou ainda até o acontecimento do Pentecostes, porque depois, quando os discípulos receberam a comissão de anunciar as boas novas em todo o mundo, deveriam pregar abertamente ser Jesus o Cristo, o Filho do Deus bendito. Porém, a Bíblia jamais menciona expressamente qual foi o real propósito de Jesus nesta passagem da tríplice tradição evangélica. E aí surgem intérpretes afirmando que Jesus negou ser o Messias prometido pelos santos profetas quando proibiu seus seguidores de pregarem tal coisa ao povo.

Bem, o que melhor consigo extrair dessa citação em estudo é que Jesus, provavelmente, pretendia desconstruir o conceito de messianismo que paralisava os movimentos sociais em Israel e, ao mesmo tempo, provocava sangrentos radicalismos políticos através de revoltas populares de galileus como as do zelotes. Tanto é que, no discurso escatológico, os discípulos foram alertados sobre os falsos cristos que poderiam aparecer:

"Então, se alguém vos disser: Eis aqui o Cristo! Ou: Ei-lo ali! Não acrediteis; porque surgirão falsos cristos e falsos profetas operando grandes sinais e prodígios para enganar, se possível, os próprios eleitos. Vede que vo-lo tenho predito. Portanto, se vos disserem: Eis que ele está no deserto!, não saiais. Ou: Ei-lo no interior da casa!, não acrediteis." (Mt 24.23-26; ARA)

De acordo com a história judaica, algumas décadas após o fim do segundo Templo, houve uma grande revolta liderada por Simão bar Kokhba, proclamado messias, dando ensejo a uma destruidora guerra dos israelitas contra os romanos na primeira metade da década de 30 do século II. Por conta daquele acontecimento catastrófico, os judeus vieram a ser expulsos de sua terra por praticamente dois mil anos. Após o massacre, o imperador Adriano proibiu que os judeus entrassem em Jerusalém e esta, ao ser reconstruída, tornou-se a Aelia Capitolina, tendo os romanos erguido sobre as ruínas do antigo Templo um lugar de adoração a Júpiter. E até ser criado o Estado de Israel, no século XX, a Terra Santa ainda seria ocupada pelos bizantinos, árabes, cruzados, turcos e britânicos.

Perigoso esse messianismo, não? Será que até hoje ainda não soubemos compreender a essência da mensagem messiânica dos velhos profetas da Bíblia? Mas, afinal, o que significam as palavras "Cristo" ou "Messias"?

Inicialmente, acho importante esclarecer que Khristós é o correspondente grego que os escritores do novo Testamento encontraram para o termo hebraico Mashiach, o que, por sua vez, significa "ungido". Isto porque, segundo a tradição bíblica, os antigos reis precisavam ser ungidos com óleo pelo sumo sacerdote israelita antes de governarem. E assim foi com Saul, Davi, Salomão e todos os outros monarcas da nação de Israel. Ou seja, cada um deles foi um messias até que chegou a invasão de Nabucodonosor e a deportação dos judeus para a Babilônia (século VI a.E.C.). A partir de então, nunca mais os judeus tiveram um outro rei ou messias porque passaram a viver debaixo dos seguintes impérios estrangeiros até os tempos de Jesus: caldeus. persas, gregos e romanos.

Sem dúvida que, após a bimilenar diáspora, o Estado de Israel continua ainda sem um monarca, tendo adotado a forma republicana de governo. E, atualmente, com uma expressiva população de ateus e judeus liberais, muitos israelitas chegam a rejeitar a ideia tradicional de messianismo de modo que há quem afirme ser o povo de Israel, ou o Estado de Israel, o próprio Messias.

Refletindo sobre a identificação do povo com a ideia messiânica, não desprezo o pensamento daqueles que desacreditam na vinda ou volta de qualquer Messias. Pois, se retornarmos aos tempos do profeta Samuel, veremos que este notável líder do povo judeu não se agradou da tola ideia de constituir um monarca sobre a nação. E, neste sentido, o texto bíblico fala claramente que o pedido de um rei significou a rejeição do povo ao próprio Deus (ver 1Sm 8.7; 10.17).

Diante dessas descobertas, cabe aqui a indagação por que os apóstolos de Jesus teriam começado a pregar ser ele o Messias? Pois, se por hipótese, considerarmos que o Mestre tivesse proibido os discípulos de anunciarem em qualquer momento ser ele o Cristo, houve então uma desobediência por parte daqueles primeiros seguidores?

Sem nenhum receio que me chamem de herege, compartilho o sentimento de que, admitindo-se tal hipótese (de ser Jesus um total demolidor da crença no messianismo), talvez os primeiros discípulos afirmaram que ele era o Cristo porque queriam justamente contestar a dependência de seus conterrâneos quanto à espera de um salvador da pátria. Possivelmente fosse o desejo de Jesus e dos apóstolos que a nação judaica despertasse para a realidade e começasse a liderar a si mesma, independentemente do bestial domínio de Roma ou de expectativas ilusórias. Assim, dizer que o carpinteiro de Nazaré era o Messias, sendo ele tão descendente do rei Davi como inúmeros outros em sua época, era o discurso ideal para que quaisquer pessoas comuns da sociedade, sobretudo os excluídos, pudessem se sentir confiantes para lutarem em prol daquilo que tanto marcou o discurso de Jesus - "a vinda do Reino de Deus". Logo, o objetivo inicial daqueles pregadores poderia ter sido o de despertar a consciência messiânica em cada um dos ouvintes.

Cada vez mais tem ficado claro pra mim que o comportamento simples de Jesus não se restringia à simples modéstia, mas tinha por objetivo ensinar ao seu público uma nova maneira de lidar com a realidade em todos os seus aspectos. Para tanto, os seus seguidores precisavam se libertar da passividade que paralisa os liderados e se tornarem militantes ativos do Reino, de modo que os discípulos foram incentivados a fazerem obras ainda maiores do que aquelas realizadas pelo Mestre (Jo 14.12). Assim, para que um novo mundo pudesse começar a ser desenhado, seria necessário estabelecer um princípio basilar de igualitarismo incompatível com as religiões e os regimes políticos autoritários em que as instituições manipulam as massas através da exaltação de algumas personalidades tidas como "privilegiadas".

É curioso que até os dias atuais ainda seja cultivado um messianismo dominador nos meios políticos e eclesiásticos. Nas eleições costuma-se dizer que o candidato fulano de tal "é o cara", atribuindo títulos indevidos a esses sujeitos enganadores a exemplo do slogan "caçador de marajás" usado por Collor de Mello em 1989. Ou ainda em várias igrejas em que os seus frequentadores são ensinados a obedecer cegamente o líder pastoral porque se trata do "ungido do Senhor". E isto sem falar nos papas católicos tidos como "representantes de Cristo na Terra" e "sucessores do trono de Pedro".

Chegou a hora de acabarmos com essas infantilizações e crescermos. Precisamos somente aceitar que Deus reina e cada um assumir o seu papel messiânico na coletividade quanto à construção de uma nova realidade planetária. E para que este governo divino e sem aparência humana seja concretamente estabelecido, primeiro devemos nos transformar interiormente. Aí, praticando uma reciclagem existencial e permitindo que o ego seja substituído pela consciência crística ou superior, tal como fez Jesus no seu aperfeiçoamento, partiremos então unidos para uma missão capaz de abalar os fundamentos desse sistema "babilônico" corrupto.

Que venha o Reino do Eterno! E que sejamos nós os construtores dessa era de justiça e de paz, precavidos de que, se alguém tentar se passar por falso profeta ou pseudo messias, mesmo vindo em nome de Jesus, não devemos lhe dar crédito. Afinal, como diz um interessante ditado zen, "se encontrar o Buda, mata-o" porque não é o Buda.


OBS: A primeira ilustração acima trata-se da obra Recommandation aux apôtres (Recomendação aos apóstolos) do pintor francês Joseph Jacques Tissot (1836–1902). O quadro foi feito entre 1886 e 1894, encontrando-se hoje no Museu do Brooklyn. Já a segunda ilustração trata-se de um retrato de D. Sebastião de Portugal pintado por Cristóvão de Morais em 1571. Quanto à terceira imagem, cuida-se de um dos frescos que se encontra numa velha sinagoga em Dura Europos, Síria, e que mostra o profeta Samuel ungindo Davi como rei sobre Israel.

8 comentários:

  1. Este texto já se encontrava há praticamente uma semana em meus rascunhos. Finalmente publiquei-o hoje e valeu a pena ter esperado porque pude redigi-lo com sensatez e ainda pesquisado uns bons complementos à mensagem original.

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  2. Sobre as ilustrações, achei fantástica este quadro do francês Joseph Jacques Tissot, o qual nos passa a ideia de um Jesus sentado numa roda ensinando, dialogando e incentivando os discípulos a aprenderem com suas próprias experiências. Uma imagem bem diferente do Cristo Pantocrator que parece se autoproclamar um ser divino e que impõem aos seguidores uma dependência dele.

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  3. Rodrigão, esse espírito messiânico é típico de dominadores e tiranos inescrupulosos. Se os encontrares, fuja deles!

    Jesus disse que: “o Reino de Deus não vem com aparência exterior (visível), nem dirão: ei-lo aqui, ou, ei-lo ali; porque, eis que o reino de Deus está entre vós”.

    Buscar a messianidade do Reino de Deus é buscá-lo no coração dos homens, pois quando olhamos para dentro de nós podemos perceber quem está governando o nosso ser, ele não tem de ser buscado em outro lugar senão dentro da nossa interioridade e submissão a vontade do Nosso Rei. É buscar a justiça, o que é íntegro, o que é reto que não é fruto de legalismo, moralismo ou de fanfarrismo trombeteiro, mas de justiça discreta, mansa e não marketeira.

    Boa semana mano!

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  4. Rodrigo, adorei o texto!!
    Essa proposta de protagonizar a própria vida é ainda muito pouco difundida no meio religioso." Há que ser dependente!" No final das contas, dependemos de um lugar para ser crentes, um homem para ouvirmos Deus falar, e de permissão para pensar. Mas esse sentimento que não permite crescer, tb é acolhedor. Colo de mãe que não deixa o filho crescer. Quer coisa mais ambivalente?
    Abraços e fica com Deus.

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  5. Olá, Franklin!

    O que você colocou vem complementar certeiramente esta mensagem que publiquei ontem.

    É assim que desenvolvemos a nossa consciência messiânica e nos dispomos verdadeiramente a crescer rumo a um amadurecimento pessoal. Aí já não buscamos respostas no exterior. Aprendemos a olhar para dentro, reciclarmos o nosso ser.

    Acredito que esta busca da justiça deve estar mesmo relacionada com um processo de transformação interior da pessoa. Pois só assim é que ela sse torna "discreta, mansa e não marketeira", conforme bem colocou.

    Grande abraço e tenha uma excelente semana, meu irmão!

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  6. Oi, Mariane.

    Creio que para crescermos precisamos romper com as dependências.

    Quando o filhote de águia aprende a voar, ele é lançado pela mãe pra fora do ninho no momento oportuno. Diferente de muitas mães da civilização humana... (rsrsrs)

    Igualmente, quando leio aquela passagem em que Jesus manda os seus discípulos de dois a dois pregarem nas cidades de Israel anunciando a chegada do Reino e curando as pessoas, ele desejava que seus seguidores não dependessem dele.

    Por outro lado, observo Jesus deixando seus discípulos até à vontade para que, se quizessem, afastarem-se dele. E uma das características marcantes que se repretem em suas falas após os milagres a ele atribuídos é "vai para a sua casa". Ou, como no episódio da mulher adúltera indevidamente colocado no cap. 8 do Evangelho de João (em outros manuscritos a mesma passagem aparece em Lucas). Ali observamos que a mulher, além de não ser condenada por Jesus e a deixa livre.

    Assim, tenho observado cada vez mais que a visão messiânica compartilhada por Jesus surpreendeu seus ouvintes de tal maneira que muitos em sua época não souberam compreendê-lo. Isto porque desejavam ter um rei, retornar aos velhos tempos da monarquia davídica ao invés de todos serem responsáveis pelo governo da coletividade e começarem assumindo o ônus da parte social enquanto a nação se achava despida do poder político independente.

    Ora, será que até hoje ainda não somos assim? Ter alguém decidindo por nós não é mais cômodo pra muita gente? Lamentavelmente é o que percebo quando ouço pessoas por aí defendendo a volta do regime militar ao invés de elas mesmas perceberem que são fiscais da democracia e que podem se unir e lutar contra a corrupção.

    Valeu pelos comentários.

    Abração!

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  7. Rodrigo

    No Talmude o Messias viria quando Israel guardasse de uma forma integral o Shabat.

    Segundo o psicanalista Erich Fromm (discípulo de Freud), “os profetas viam no tempo messiânico uma situação em que o combate entre o homem e a natureza chagaria ao fim, e o estado paradisíaco seria novamente restaurado. O estado paradisíaco seria novamente restabelecido. Se o ser humano foi expulso do paraíso porque ele queria ser como Deus ― igual ao Pai, isto é, capaz de conquistar a mãe ― e se o trabalho é a punição por esta infração original, então, de acordo com a concepção dos profetas, no período messiânico o ser humano iria viver novamente em harmonia total com a natureza, isto é, sem necessidade de trabalhar no paraíso ― o equivalente ao útero materno”. (Messianismo e utopia no pensamento de Martin Buber e Erich Fromm michael löwy)

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  8. Prezado Levi,

    Muito obrigado por sua participação!

    Pra mim, isto faz um certo sentido porque precisamos aprender a lidar com os nossos desejos e necessidades afim de pormos um basta a esta tendência predatória hoje no mundo e que está levando os recursos naturais a um exaurimento.

    É a nossa reconciliação com a Terra e com o Eterno que vai restaurar a paz vivenciada na ideia do Éden! Lamentavelmente muitos de nós fomos estimulados a consumir e consumir como se os recursos naturais fossem inesgotáveis. A nova geração, contudo, precisa aprender a valorizar o ser e se satisfazer com a contemplação do que já existe, aprender o amor pela Vida, compartilhar aquilo que tem em excesso, reciclar, reaproveitar o que já usou e principiar nos valores do igualitarismo e da inclusão.

    Forte abraço!

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