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sábado, 10 de julho de 2010

O privilégio de ter convivido com um grande avô


Com sete anos de idade, perdi meu pai. Tal fato sucedeu no final do mês de setembro de 1983, o que prolongou para mim o inverno daquele difícil ano, tendo sido uma grande perda.

No entanto, ainda no final de 1983, aproximei-me de meu avô paterno, Sylvio Ancora da Luz, numa de suas visitas ao Rio de Janeiro, onde até então eu morava até então na companhia de minha mãe. Como de costume, vovô e sua segunda esposa Diva ficavam no apartamento da cunhada Leonor em Copacabana. E foi justamente naquela ocasião que pedi para a minha avó paterna Darcília, sua ex-esposa, lhe telefonasse afim de que ele viesse encontrar-se com o neto.

A oportunidade rendeu não somente um passeio pela Zona Sul carioca, mas uma grande aproximação entre mim e ele. A partir daí, foram várias visitas e estadias em sua residência na cidade de Juiz de Fora até que, no ano de 1985, aceitei o convite de ir morar com ele e Diva em Minas Gerais.

Venho de uma família desajustada de pais e de quatro avós separados, mas posso dizer que o relacionamento entre meu avô e Diva corria muito bem. Eu nunca os vi discutindo com gritos ou palavrões, se agredindo fisicamente ou praticando atitudes de desrespeito. Talvez até tivessem um ou outro desentendimento discreto do qual eu não participasse, coisa normal de um casal, mas a impressão que sempre tive é que ambos viviam um relacionamento exemplar, formando um lar bastante acolhedor.

Dei muito trabalho para meu avô, tanto no fim da infância, na adolescência e juventude. Só que não é disso que quero compartilhar hoje aqui, pois o que pretendo é me recordar de alguns traços de sua personalidade, gostos culturais, hábitos e, enfim, celebrar a existência de mais uma pessoa que passou por este planeta.

Geralmente as pessoas escrevem sobre a biografia de gente famosa como reis, rainhas, presidentes, atores, pintores, cantores, esportistas, empresários de sucesso, generais de guerra, ativistas políticos, líderes religiosos, etc. Só que nos esquecemos de valorizar aqueles que optaram por ficar ficar no anonimato, mas cumpriram as missões de suas vidas como pais, trabalhadores, donas de casa e simples membros de uma sociedade.

Alguns até chamavam meu avô de general, mas ele jamais teve esta patente das Forças Armadas. Foi um militar do exército brasileiro, da arma da artilharia e, por não ter feito curso de Estado Maior, terminou sua carreira como coronel no Quartel General de Juiz de Fora, somando 35 anos de serviço prestado ao Brasil. E, na época em que entrou para a reserva, ainda era permitido aos militares receber um vencimento correspondente a duas patentes superiores e reivindicar uma espécie de “promoção” quanto ao último posto que ocupava.

Modesto e prático, vovô preferiu apenas os vencimentos de general de divisão, sendo que jamais o vi sair às ruas com a farda nos dias de comemoração da independência, a qual de recordação permaneceu no armário da casa com a três estrelas e as medalhas. Aliás, ele se vestia de maneira bem simples e humilde. Seu automóvel era um Fusca ano 73 de cor verde clara e, quando viajava na época de minhas férias escolares, hospedava-se em acomodações convencionais na cidade mineira de Lambari, sem nenhum luxo ou ostentação.

Apesar de tudo, na época de minha infância, vovô tornou-se um grande motivo de orgulho pra mim. Eu que tinha deixado de morar com meu pai desde os três anos e havia ficado órfão aos sete, nesta ocasião já não me sentia tão inferior aos colegas de escola.

Vovô não foi à 2ª Guerra, mas ficou com os norte-americanos no Recife na década de 40 para defender o Brasil no caso de uma invasão dos alemães, coisa que ele parece ter acreditado até o final de sua vida. Porém, aquele foi o único período em que viveu no Nordeste e grande parte de sua carreira militar foi no Rio Grande do Sul, lugar onde tomou gosto pela música sertaneja gaúcha. No começo de sua carreira militar, ainda se usava bastante o cavalo e este era o animal que ele mais admirava.

Posso dizer que a convivência com meu avô permitiu que eu conhecesse cantores como o Gaúcho da Fronteira e Berenice, ambos do Sul. Porém, ele também gostava um pouco de Sérgio Reis, escutava fitas de Nélson Gonçalves e vez ou outra assistia uns clips de pagode que passavam aos domingos no Fantástico. Seu programa favorito era o Globo Rural, o que certamente lembrava a infância que teve no campo, quando meu bisavô administrou a fazenda de minha tataravó no Vale do Paraíba na década de 30.

Nossa alimentação também era simples, porém saudável. Sem negar o costume mineiro, o feijão era batido no liquidificador. Não jantávamos, mas tínhamos quase sempre uma sopa na hora do almoço. Leite, queijo branco e frutas também não faltavam, sendo que o doce ele me restringia por medo do neto desenvolver algum tipo de diabete a exemplo do que ocorreu com meu pai. Porém, engordei bastante quando fui pra casa dele e estive bem acima de meu peso até os 22 anos.

No relacionamento que tinha comigo, meu avô chegava a ser bem autoritário e, neste aspecto, digo que ele levou um pouco do quartel pra dentro de casa. Contudo, nós conversávamos bastante e, através do meu convívio com ele, aprendi a gostar de caminhadas ao ar livre e perdi o medo de andar de bicicleta sem aquelas rodinhas de apoio aos nova anos de idade. Inclusive, quando o conheci, antes de completar 70 anos, vovô tinha uma saúde de ferro de maneira que eu precisava me esforçar para acompanhar seus passos ligeiros pelas ruas.

Na adolescência, eu já não buscava manter tanto relacionamento com meu avô. Sua constante preocupação comigo me irritava e muitas vezes eu o entristeci querendo levar a vida do meu jeito. Não aceitava seus sábios conselhos para que aproveitasse as boas oportunidades que tinha para estudar e me preparar para concursos. Suas ideias de fazer do neto um funcionário público estável e bem remunerado não entravam na minha cabecinha ambiciosa, pois minha obsessão era me tornar um rico homem de negócios, coisa que jamais realizei.

Vovô nunca me deu carro, o que muito me revoltava, fazendo-me sentir inferior a outros colegas da faculdade e em desvantagem para conseguir namoradas. Quando andava com ele na rua, sentia vergonha de sua calça tergal com tênis e camisa velha, desprezando a maior riqueza que ele tinha para me transmitir – um bom caráter. E cheguei a evitar de apresentar meu avô aos meus colegas nesta época.

Seus últimos 10 anos de vida não foram nada fáceis. Aos poucos, vovô foi ficando com a memória esquecida e incapacitado para praticar vários atos normais do cotidiano. Um ano e pouco depois de minha vinda de Juiz de Fora para Nova Friburgo, ele deixou de me reconhecer por causa da doença, o que foi um grande choque pra mim. Por mais que eu tentasse me comunicar com ele, não conseguia mais estabelecer um diálogo e alegrá-lo com algumas boas notícias que na certa ele gostaria de saber depois de ter investido em mim durante tanto tempo. Quando finalmente me formei, no final de 2004 (uns seis meses antes de seu falecimento), era inviável lhe transmitir esta tão esperada mensagem.

Em 30 de maio de 2005, vovô faleceu num leito do Hospital Militar de Juiz de Fora, uns dois dias depois de minha visita. Seu corpo de quase 88 anos estava todo inchado e ele já nem conseguia mais ingerir alimentos sólidos. E, por causa dista situação, morte pode ter sido um alívio para seus sofrimentos que ele suportou sem o auxílio de qualquer igreja já que não fazia parte de nenhuma instituição religiosa.

Hoje reconheço o quanto meu avô foi importante pra mim. Ele nada me ensinou acerca da Bíblia ou do cristianismo pois de certa forma era um dos últimos seguidores de doutrinas do positivismo de Augusto Comte, coisa que se pregava muito nas Forças Armadas brasileiras nas décadas de 30 e 40. Porém, aprendi com ele a ter caráter, honestidade e decência. E, apesar das coisas absurdas que eu já fiz em minha vida, hoje tenho na pessoa de meu avô uma boa referência de um grande homem.

Acho que muitos filhos só dão valor a seus pais após uma certa idade ou depois do falecimento de seus descendentes. No auge da juventude, muitas vezes não valorizamos nossos pais, mas um dia começamos a reconhecê-los. E ainda que não tenham sido pessoas perfeitas e possam ter falhado conosco em determinados momentos, tiveram alguma contribuição positiva para transmitir.

Na Bíblia, o quinto mandamento assim diz: “Honra teu pai e tua mãe, para que se prolonguem os teus dias na terra que o SENHOR, teu Deus, te dá” (Êxodo 20.12). E, no Novo Testamento, Paulo diz que este é “o primeiro mandamento com promessa” (Efésios 6.2), identificando, além da longevidade, o verdadeiro sucesso do filho.

De fato, se eu tivesse respeitado mais meu avô e seguido suas instruções, provavelmente estaria hoje vivendo dias melhores sobre a terra. Poderia ser já um funcionário público estável, com uns 15 anos de contribuição previdenciária, e um salário capaz de satisfazer minhas principais necessidades, coisas que, embora não devam ser consideradas como elementos de culpa, servem de um rico aprendizado.

Penso que todos nós temos também a oportunidade de honrar o nosso Pai Celestial que é Deus, dando ouvidos à sua instrução. Atender a voz de Deus com temor (reverência) também nos conduz a uma vida virtuosa e que nos gera frutos além dos nossos dias aqui na terra.

Neste sentido, honrar pai e mãe é apenas uma sombra de um mandamento muito maior que se refere a uma obediência reverente ao nosso Criador. E, mesmo que venhamos a enterrar nossos ascendentes, teremos para sempre o Pai Celeste, cujo Nome (caráter) é santo.

Se temos ainda vivos pais, mães, avós e tutores, devemos aproveitar as oportunidades que nos restam para amá-los sem reservas, dando-lhes atenção e gosto de viver, servindo-os da melhor maneira que podemos, apesar de todas as dificuldades que podem envolver qualquer relação. E esta é a vontade de Deus para o nosso próprio bem.

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