Li nesta manhã que o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), atendendo sugestão da OAB fluminense, regulamentou a instalação de Juizados Especiais nos aeroportos do Rio de Janeiro, São Paulo e Brasília, com a finalidade de solucionar eventuais conflitos quanto aos serviços do transporte aéreo. As unidades judiciais, previstas para funcionar em breve, deverão dispor de equipes de funcionários e conciliadores, todos coordenados por um magistrado, os quais buscarão uma composição entre passageiros, empresas e órgãos do governo quanto a problemas do tipo atrasos ou cancelamentos de voos, extravios de bagagens, etc. Caso as partes não consigam entrar em acordo, poderá ser instaurado de imediato um processo judicial que tramitará no Juizado Especial mais próximo do domicílio do consumidor.
Mesmo que a medida esteja mais destinada a beneficiar uma classe média que anda de avião do que às pessoas de condição humilde usuárias do SUS, considerei plausível a iniciativa. Principalmente porque, disponibilizando serviços judiciais nos aeroportos, o CNJ estabelece um padrão de atendimento da Justiça brasileira bem mais elevado do que se verifica na prática diante de outras situações do cotidiano.
Meu contentamento obviamente não se satisfaz com o fato de que passageiros de companhias aéreas terão melhores oportunidades de defender seus direitos. Desejo que, conhecendo serviços que funcionam melhores, o cidadão seja realmente despertado para exigir uma ampliação do acesso aos órgãos jurisdicionais em todos os aspectos. E, quanto a isto, pergunto por que também não podemos ter Juizados Especiais nos terminais rodoviários? Será que as empresas de ônibus também não desrespeitam os horários de partida? E as bagagens dos passageiros rodoviários são sempre preservadas durante as viagens?
Todavia, vou mais além! Acho que não só os aeroportos e rodoviárias precisam de unidades judiciais para atender o cidadão, como também os nossos caóticos hospitais públicos, nos quais se vê constantes violações aos direitos dos pacientes a ponto de caracterizar indubitáveis atentados à dignidade humana.
Constantemente assistimos nos jornais pacientes dormindo nas filas dos postos de saúde apenas para tentarem marcar uma consulta médica pelo SUS. Já soube de idosos abandonados pelos corredores dos hospitais e gestantes em trabalho de parto que têm seus filhos na recepção das maternidades públicas porque não conseguem atendimento. Pessoas chegam a aguardar por meses apenas para ver o médico e, finalmente, quando vão mostrar seus exames, estes já estão fora da validade tornando frustrante toda a espera.
Mas na prática, como a Justiça está contribuindo para combater tais situações?
O CASO DE MARIA
Em outubro 2007, uma cidadã brasileira que chamarei de Maria* encontrava-se incapacitada para atividades laborais e sentia fortes dores no corpo. Ela havia sido encaminhada ao Instituto Nacional de Traumatologia e Ortopedia (INTO), antigo HTO, para que fosse colocada uma prótese em seu quadril e já estava cerca de sete meses numa fila de espera sem previsão de data para a sua operação ser realizada.
Com o benefício de auxílio-doença injustificadamente cortado pelo INSS, Maria procurou o seu advogado que ingressou com duas ações no Juizado Especial Federal. Uma para restabelecer o benefício previdenciário e outra para que o INTO operasse logo a paciente.
Num primeiro momento, a Justiça pareceu fantástica. Maria conseguiu o deferimento de uma tutela antecipada que obrigou o INTO a realizar os exames necessários para que sua cirurgia no quadril fosse realizada no hospital. Contrariada, a União recorreu, mas a decisão inicial foi mantida.
Meses depois, foi então proferida uma sentença confirmando a tutela antecipada, mas negou-se o pedido de indenização por danos morais com o argumento de que a demora para atendimento adequado dos pacientes do SUS é notoriamente um problema crônico da sociedade brasileira.
Inconformada, Maria recorreu e conseguiu que fosse reformada a sentença de primeira instância judicial. Contudo, apesar da bela fundamentação do juiz que ficou como relator do processo, a Turma Recursal fixou uma indenização por danos morais em parcos R$ 4.000,00 (quatro mil reais), tendo Maria ainda esperado mais alguns meses para que a União Federal pagasse a quantia através de RPV na Caixa Econômica.
A FUNÇÃO PREVENTIVA E PEDAGÓGICA DO DANO MORAL
A reflexão que faço a partir de um exemplo desses é que talvez nem houvesse tanta necessidade das pessoas procurarem a Justiça se os magistrados agissem com maior rigor diante de situações de desrespeito ao cidadão, fixando indenizações verdadeiramente condizentes com a violação sofrida, o que serviria de desestímulo para a prática de condutas ilícitas.
Desde a Antiguidade, o dano moral já era percebido nas leis das diversas civilizações que contribuíram para a formação da nossa sociedade ocidental.
Por volta do segundo milênio antes da era cristã, num período anterior ao próprio Direito romano, o Código de Hamurábi já disciplinava algumas situações na Mesopotâmia em que o dano de natureza moral poderia ser reparado pecuniariamente. Apesar da predominância do preceito “olho por olho e dente por dente” da lei de Talião, havia casos especiais em que uma pena econômica tornava-se a alternativa para compensar a vítima pelo pagamento de “ciclos de prata”.
Há quem diga que as leis sumerianas, como o Código de Ur-Nammu (três séculos mais antigo que o de Hamurábi) previa um número maior de fatos em que o direito da vingança da vítima já teria sido substituído pela reparação compensatória, através de uma compensação em dinheiro, conforme ensina Américo Luís Martins da Silva:
“O Código de Ur-Nammu (...) foi descoberto somente em 1952, pelo assiriólogo e professor da Universidade da Pensilvânia, Samuel Noah Kromer. Nesse Código elaborado no mais remoto dos tempos da civilização humana é possível identificar em seu conteúdo dispositivos diversos que adotavam o princípio da reparabilidade dos atualmente chamados danos morais.” (O dano moral e a sua reparação civil. São Paulo: RT, 1999, pág. 65)
Sem ter dispensado a regra do Talião, a Torá também adotou algumas soluções semelhantes quanto à reparação por danos morais, conforme se observa neste texto em Deuteronômio 22.13-20 em que a vítima sofre uma indiscutível humilhação:
“Se um homem casar-se e, depois de deitar-se com a mulher, rejeitá-la e falar mal dela e difamá-la dizendo: 'Casei-me com esta mulher, mas quando me cheguei a ela, descobri que não era virgem', o pai e a mãe da moça trarão aos líderes da cidade, junto à porta, a prova da sua virgindade. Então o pai da moça dirá aos líderes: 'Dei a minha filha em casamento a este homem, mas ele a rejeita. Ele também a difamou e disse: “Descobri que a sua filha não era virgem”. Mas aqui está a prova da virgindade da minha filha'. Então os pais dela apresentarão a prova aos líderes da cidade, e eles castigarão o homem. Aplicarão a ele a multa de cem peças de prata, que serão dadas ao pai da moça, pois aquele homem prejudicou a reputação de uma virgem israelita. Ele não poderá divorciar-se dela enquanto viver.” (Tradução da Nova Versão Internacional)
Para os nossos valores de hoje, pode até parecer estranho o marido pagar uma indenização ao pai da moça, mas não podemos desprezar que, mesmo dentro da cultura hebraica do segundo milênio antes de Cristo, o dano moral já era de alguma maneira reconhecido e funcionava para prevenir e corrigir violações. E creio que esta orientação bíblica pode ser aplicada também diante de outros casos que se repetem no cotidiano.
Entre os gregos, desde os tempos homéricos, a compensação financeira por danos morais constituía-se como uma tradição daquela brilhante civilização clássica. E, posteriormente, as normas instituídas pelo Estado vieram a abolir o direito de vingança, determinando que a reparação do dano poderia ser de natureza pecuniária.
Embora tradicionalmente a pena e a indenização sejam institutos que não se confundem, por terem naturezas distintas, não há como se negar que a reparação por danos morais tem também um caráter semelhante ao de pena civil privada, funcionando, na prática, como uma retribuição ao mal causado pelo lesionador.
O ex-magistrado do Tribunal de Justiça de São Paulo e consultor jurídico de advogados, Dr. Sílvio de Salvo Venosa, assim reconhece:
“Há função de pena privada, mais ou menos acentuada, na indenização por dano moral, como reconhece o direito comparado tradicional. Não se trata, portanto, de mero ressarcimento de danos, como ocorre na esfera dos danos materiais. Esse aspecto punitivo da verba indenizatória é acentuado em muitas normas de índole civil e administrativa. Alias, tal função de reprimenda é acentuada nos países da common law. Há um duplo sentido na indenização por dano moral: ressarcimento e prevenção. Acrescente-se ainda o cunho educativo, didático ou pedagógico que essas indenizações apresentam para a sociedade. Quem, por exemplo, foi condenado por vultosa quantia porque indevidamente remeteu título a protesto; ou porque ofendeu a honra ou a imagem de outrem, pensará muito em fazê-lo novamente.” (Direito civil: Responsabilidade civil. volume 4. 5ª edição, São Paulo: Atlas, 2005, pág. 282)
Para que a condenação pelo dano moral cumpra com o seu papel dissuasório, servindo de desestímulo para a prática de futuros atos ilícitos, é indispensável que os valores das indenizações sejam arbitrados numa quantia verdadeiramente proporcional. Pois, segundo consta no artigo 5º, inciso V, da Constituição Federal, a indenização deve ser "proporcional ao agravo".
CONCLUSÃO
É verdade que as nossas leis são belíssimas. A Constituição brasileira expressamente diz no seu artigo 196 que a saúde é um direito de todos, mas ainda é preciso que que ela se torne realmente. Deste modo, vejo tanto na ampliação do acesso ao Judiciário, quanto na justa fixação das verbas indenizatórias por danos morais, excelentes mecanismos de pressão para que os governos possam tratar com mais dignidade o cidadão.
Nossos juízes não são eleitos pelo povo, mas, neste ano de 2010, iremos escolher os nomes das pessoas que nos governarão e farão as nossas leis. Surgirão inúmeros candidatos defendendo a saúde e a educação, mas precisamos ser seletivos na hora do voto, excluindo da nossa lista os políticos desonestos que não têm compromisso com o bem estar da coletividade.
Melhor do que o cidadão ter um melhor acesso à Justiça, ou esta passar a arbitrar indenizações por danos morais em valores mais justos, é termos políticas públicas mais eficientes na área de saúde.
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(*) O nome Maria foi propositalmente inventado para preservar a identidade da paciente que ingressou com sua ação na Justiça. Achei que ficava melhor do que escrever as iniciais de seu verdadeiro nome.
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