Páginas

sábado, 22 de maio de 2010

Lidando com a dor da ingratidão

Como é profunda a dor que sentimos pela ingratidão de alguém! A ferida causada por aqueles que amamos demora mais para cicatrizar do que quando somos previsivelmente atacados por um adversário já conhecido. Pois, com a dor, vem o elemento surpresa juntamente com a indignação, a decepção, a perplexidade e o sentimento de traição.

Contudo, quem neste mundo ainda não foi apunhalado pelas costas? Seja pelos nossos amigos, parentes, cônjuges ou pelos irmãos mais íntimos da nossa congregação religiosa, em todos estes casos de traição seremos inevitavelmente confrontados com os mais terríveis sentimentos de ira, carregados com as mais fortes emoções.

No Salmo 55, Davi chega a dizer que teria suportado a afronta praticada contra ele, caso fosse vítima do seu inimigo:

“Com efeito, não é inimigo
que me afronta;
se o fosse, eu o suportaria;
nem é o que me odeia
quem se exalta contra mim,
pois dele eu me esconderia;
mas és tu, homem meu igual,
meu companheiro e meu íntimo amigo.
Juntos andávamos,
juntos nos entretínhamos
e íamos com a multidão à Casa de Deus.”
(versos 12-14)

Igualmente, em outro salmo imprecatório, o rei poeta de Israel expressou toda a sua indignação contra aqueles que, sem motivo, investiram contra sua vida, fazendo-lhe mal:

“Pagam-me o mal pelo bem,
o que é desolação para a minha alma.
Quanto a mim, porém,
estando eles enfermos,
as minhas vestes eram pano de saco;
eu afligia a minha alma com jejum
e em oração me reclinava sobre o peito,
portava-me como se eles fossem
meus amigos ou meus irmãos;
andava curvado, de luto,
como quem chora por sua mãe.
Quando, porém, tropecei,
eles se alegraram e se reuniram;
reuniram-se contra mim;
os abjetos que eu não conhecia,
dilaceraram-me sem tréguas;
como vis bufões em festins,
rangiam contra mim os dentes.”
(Salmo 35:12-16)

Num outro lamento, em que também profetizou a respeito de Judas Iscariotes, Davi falou novamente da traição, referindo-se ao ato de “levantar o calcanhar” à mesa, até hoje uma grave ofensa no contexto cultural do Oriente Médio:

“Até o meu amigo íntimo,
em quem eu confiava,
que comia do meu pão,
levantou contra mim o calcanhar.”
(Salmo 41:9)

Lendo sobre Davi, tento compreender o drama de uma esposa dedicada que não obtém o reconhecimento de seu marido, a indignação de empregado esmerado que é dispensado com a maior frieza pela empresa onde trabalha, bem como a situação de um pai que, após sustentar o filho por longos anos, é esquecido num asilo qualquer nos tempos de sua velhice.

Como ativista dos movimentos sociais aprendi numa certa medida o que é a dor da ingratidão quando a minha militância em favor da coletividade não recebe nenhuma retribuição proporcional. Frequentemente, vejo verdadeiros heróis do povo sendo escarnecidos e injustamente criticados por aqueles que são beneficiados pelas conquistas pleiteadas, como se fossem líderes oportunistas.

Entre os que praticam a filantropia, seja doando recursos ou prestando serviços, raramente são honrados pelos seus destinatários. E muitos desses valorosos homens, quando passam por suas dificuldades, às vezes não recebem nada em troca daqueles que foram ajudados. E, inclusive, há casos em que a pessoa beneficiada chega a se voltar contra o seu benfeitor, passando-lhe a perna ou armando uma cilada para depois ingressar com algum processo judicial.

No evangelismo, tenho visto as piores retribuições. Ao receber uma palavra positiva, algumas pessoas reagem com grosseria, agressividade e indiferença, muito embora outros aceitem a mensagem de coração aberto.

Entretanto, se olharmos para a vida de Jesus, veremos que maiores afrontas e atitudes de ingratidão o Senhor suportou por nossa causa.

Nunca ninguém amou tanto o ser humano quanto Jesus de Nazaré. E também nunca ninguém sofreu tantas injustiças e traições quanto o Senhor, de modo que, ao olhar para Ele, esvazia-se todo o meu sentimento de auto-comiseração.

Certa vez Jesus curou dez leprosos, dos quais apenas um (um samaritano) retornou para agradecê-Lo. Nas cidades em que evangelizou na Galileia, em nenhuma delas foi registrado uma conversão coletiva, apesar dos muitos milagres que o Senhor realizou no meio do seu povo. Em Nazaré, cidade onde Jesus foi criado, seus concidadãos tentaram assassiná-lo após ouvirem seu discurso na sinagoga. Em Gadara, localidade situada na região gentílica de Decápolis, a população de lá pediu ao Senhor que se retirasse do território deles, após Jesus ter feito bem a um homem perturbado. E até os familiares de Jesus não o compreenderam durante algum período do seu ministério.

Mas foi nas suas horas mais difíceis que Jesus experimentou o abandono e a traição. Enquanto agonizava no Jardim das Oliveiras, chegando a suar sangue enquanto falava com o Pai, seus discípulos não aguentaram o sono e adormeceram. Após receber o beijo da traição de Judas, eis que, no final, todos os discípulos o deixaram, fugindo dos guardas. Na casa do sumo sacerdote, seu próprio povo o bateu, cuspiu em sua face e dele zombou. Perante Pilatos, a multidão ali presente preferiu que, no lugar de Jesus, soltassem a Barrabás, clamando em alta voz para que o Senhor fosse crucificado.

Olhando para Jesus, deixo de me sentir a maior vítima do mundo, passando a me colocar na mesma condição dos que o abandonaram e fugiram no momento de sua prisão. Mesmo sem ter vivido naquela época, consigo identificar as cusparadas e os açoites que dei em Jesus pelos meus pecados do tempo presente, lembrando das vezes em que o rejeitei no meu coração preferindo praticar o mal ao invés do bem. Recordo das mentiras que proferi, de minhas concupiscências sexuais, dos meus atos de injustiça com o próximo, de minhas blasfêmias, do meu apego ao dinheiro, da minha falta de amor e até das motivações ruins que não foram exteriorizadas, de modo que todas estas ofensas são como os pregos da ingratidão cravados sobre a carne do meu Senhor.

Reconhecendo isto, dou glória a Deus porque são as chagas de Jesus que hoje saram o meu coração das mais profundas dores causadas pela convivência humana, de modo que o sentimento da traição acaba servindo como aprendizado do que o Senhor sofreu por causa da humanidade, padecendo o desprezo de todos e sendo tratado pior do que um animal.

Ora, sete séculos antes de Jesus, assim profetizou Isaías a seu respeito, retratando-o como o servo sofredor:

“Certamente, ele tomou sobre si as nossas enfermidades e as nossas dores levou sobre si; e nós o reputávamos por aflito, ferido de Deus e oprimido. Mas ele foi transpassado pelas nossas transgressões e moído pelas nossas iniquidades; o castigo que nos traz a paz estava sobre ele, e pelas suas pisaduras fomos sarados. Todos nós andávamos desgarrados como ovelhas; cada um se desviava pelo caminho, mas o SENHOR fez cair sobre ele a iniquidade de nós todos” (cap. 53:4-6)

Assim, meditando no sofrimento de Jesus, encontro a oportunidade de tomarmos posse da cura espiritual para as nossa dores mais íntimas. Ou seja, temos a oportunidade de descarregar Nele aquilo que tanto nos aflige e deixarmos as feridas cicatrizarem. E, deste modo, resta-nos a escolha de alimentar a nossa dor solitária ou aceitar o remédio dado por Deus para que sejamos sarados, pondo de lado o infrutífero sentimento de auto-comiseração.

Nenhum comentário:

Postar um comentário