"Em havendo contenda entre alguns, e vierem a juízo, os juízes os julgarão, justificando ao justo e condenando ao culpado. Se o culpado merecer açoites, o juiz o fará deitar-se e o fará açoitar, na sua presença, com o número de açoites segundo a sua culpa. Quarenta açoites lhe fará dar, não mais; para que, porventura, se lhe fizer dar mais do que estes, teu irmão não fique aviltado aos teus olhos. Não atarás a boca ao boi quando debulha." (Dt 25:1-4; ARA - destaquei)
Tive uma reflexão neste último sábado (12/04) quando, acidentalmente, abri a minha Bíblia no capítulo 25 de Deuteronômio e li a citação acima transcrita. Observei que o texto sagrado, embora fale de uma pena de castigo corporal hoje não mais utilizada pelas nações ocidentais, eis que a orientação das Escrituras trás em si um importante princípio de humanidade sobre a limitação do castigo, o qual precisamos assimilar em nossas ações.
Pode-se afirmar que a penalidade dos açoites foi um corretivo que os antigos magistrados (hebr. shofetim) aplicavam em casos considerados graves. Entre os israelitas, o condenado sofria no máximo até trinta e nove golpes determinados conforme a danosidade do delito e as condições físicas que possuía para suportar o castigo. Isto porque a medida não deveria jamais perder o seu caráter de misericórdia. Senão vejamos os pertinentes comentários teológicos do rabino Meir Matzliah Melamed que constam na versão da Torá - A Lei de Moisés, editada pela editora Sêfer, pág. 575, esclarecendo como os judeus do passado passaram a interpretar e aplicar essa instrução bíblica:
"Apesar de a Torá escrever o número de quarenta açoitadas, o Talmud (Macot 22) traduz a palavra Bemispar (em número) como Sefar (limite dos quarenta), isto é, trinta e nove. Por isso, era proibido exceder este número. O Malcut era executado na presença de três juízes. Um deles pronunciava as seguintes palavras durante a execução da pena: "Se não guardares para cumprir todas as palavras desta Lei, escritas neste livro para temeres este Nome glorioso e temível, o Eterno, teu Deus; e fará o Eterno com que as tuas feridas e as feridas da tua descendência sejam diferentes das outras feridas grandes e fiéis e das doenças más e fiéis" (Deuteronômio 28:58-59). "E guardareis as palavras desta aliança e as cumprireis, para que prospereis em tudo quanto fizerdes" (Deut. 29:8). Finalmente, pronunciava este versículo dos Salmos que contém 13 palavras hebraicas: "O Eterno é misericordioso, perdoa a iniquidade e não destrói, retém muitas vezes a Sua cólera e não manifesta nunca toda a Sua ira." (Salmos 78:38). Em cada treze golpes, repetia-se este versículo. Os primeiros treze golpes eram dados sobre o peito, e os outros, metade sobre uma costa e metade sobre a outra. O condenado era examinado previamente se podia suportar os trinta e nove golpes; do contrário, davam-lhe menos, segundo a sua constituição física."
No Brasil, a penalidade dos açoites aos que eram considerados homens livres só veio a ser extinta com a Constituição Imperial de 1824, mas continuou valendo contra os escravos, desde que não condenados à pena capital, bem como na hipótese de galés, limitada até cinquenta açoitadas por dia, conforme era previsto no artigo 60 do Código Criminal de 1830. Também se aplicava essa penalidade aos casos de insurreição contra o Império. Até então vigorava o rigoroso Livro V das Ordenações Filipinas, o qual impunha à população da Colônia suplícios e horrores semelhantes aos da Inquisição.
Atualmente, com o artigo 5º, inciso XLVII, alínea e da Constituição de 1988, são proibidas as penas "cruéis", dentre as quais se incluem, obviamente, qualquer castigo corporal ou psicológico. Tanto é que hoje até o preso deve ter a sua integridade física e moral respeitada (item XLIX do art. 5º da CRFB).
É certo que, se viajarmos ao moderno Estado de Israel, também encontraremos uma legislação criminal mais adequada às concepções sobre os direitos humanos dos nossos tempos embora as penas de prisão por lá sejam mais duras do que aqui. Em todo caso, é assegurado o contraditório e a ampla defesa aos acusados num processo penal. Até um terrorista tem os seus direitos preservados ainda que passe o resto da vida morando numa cadeia.
Contudo, em todo caso sempre haverá limites para a aplicação de qualquer pena pois esta não pode perder o seu caráter de ressocializar o indivíduo trazendo-o de volta ao convívio normal com as demais pessoas. Uma vez cumprida a obrigação, o ex-condenado encontra-se livre de sua dívida para com o Estado e a sociedade, não podendo esta exigir-lhe mais nada. Tanto é que, se o cidadão vier a permanecer preso além do tempo fixado na sentença, ele passa a ter o direito constitucional de receber uma indenização (art. 5º, LXXV da CRFB), tendo em vista o princípio da inocência maculada.
Só que não é bem isso o que ocorre no meio social brasileiro! Na prática, o egresso do sistema penitenciário acaba sofrendo inúmeros preconceitos. Pois além de não conseguir com facilidade um trabalho, a sociedade continua "açoitando-o". É como se carimbassem em sua testa: "Esse cara é bandido!"
Acredito que muitas dessas reações talvez sejam explicadas pelo sentimento de impunidade que toma conta de grande parte das mentes. Ora, mas se as penas ainda são brandas e propiciam a reincidência dos delitos, então que mudemos as normas criminais do país. E sugiro começarmos isso ainda este ano de 2014 quando serão eleitos os novos deputados federais e senadores. Porém, alerto para que não nos tornemos cidadãos hipócritas criando obstáculos à recuperação ética do nosso semelhante. Aliás, como bem ensinava Nietzsche, "nosso crime em relação aos criminosos consiste em tratá-los como patifes". Logo, devemos sempre nos recordar que todas as penalidades aplicadas têm seus limites e que o apenado continua sempre como um ser digno pela sua condição humana.
OBS: Ilustração acima extraída do acervo virtual da Wikipédia, conforme consta em http://it.wikipedia.org/wiki/File:Karwats.jpg
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