Este trecho da segunda epístola atribuída pela tradição católica ao apóstolo João expressa muito bem o cenário da Igreja no século II, quando se destacaram os apologetas do cristianismo. Dentre eles, podemos lembrar do ortodoxo bispo Irineu de Lyon, discípulo de Policarpo de Esmirna.
Segundo alguns estudiosos do Novo Testamento, tanto a primeira epístola de João quanto a segunda teriam sido textos resultantes de reações de algumas lideranças da Igreja aos grupos que o catolicismo, tempos depois, veio chamar de “gnósticos”. E, atualmente, muitos críticos do cristianismo oficial consideram que jamais existiu a seita do gnosticismo, mas sim comunidades e pastores que não se adequavam ao modo de pensar imposto por uma facção eclesiástica dominadora.
Por razões de objetividade para manter o foco da mensagem, não vou aprofundar-me nas questões históricas. Quem desejar conhecer mais acerca deste apaixonante assunto, recomendo o livro Além de toda a crença da historiadora Elaine Pagels, publicado no Brasil pela editora Objetiva, a qual empreendeu um sério estudo sobre os evangelhos e textos considerados como “apócrifos”.
Eu, apesar de concordar com a autora sobre os abusos praticados pelos cristãos ortodoxos em relação aos seus “hereges”, durante os últimos 1900 anos de história da Igreja, tenho percebido a importância do conhecimento da verdade real baseada numa busca autêntica e reta do pesquisador. Pois, saindo do meu mundinho idealizado de teologias liberais, chego à conclusão de que o aspecto esotérico das religiões não se encontra acessível a todos em termos de compreensão espiritual já que existem diversos níveis de consciência na humanidade, se é que podemos assim dizer. E, na prática, sem receberem um ensino firme, as pessoas tornam-se presas fáceis de lobos enganadores, os quais aproveitam-se da ingenuidade alheia.
No final do ano passado (2011), visitei uma senhora católica, a qual, como grande parte dos brasileiros seguidores da religião dominante, sempre teve o outro pé no espiritismo formando assim a sua crença popular. Para ela, ir num domingo à missa, depois participar de uma sessão mediúnica num centro kardecista e, quando passa por problemas, ainda fazer um “trabalho” para entidades cultuadas na Umbanda, são atividades que se relacionam com o frágil conjunto de crenças da maioria das pessoas. Tudo muito cultural e servindo como um meio de enfrentar psicologicamente os problemas do cotidiano.
Pois bem. Esta senhora idosa e humilde, que sobrevive com sua filha incapacitada recebendo um benefício assistencial do governo de apenas um salário mínimo, foi capaz de entregar suas economias guardadas na poupança a uma mulher enganadora que bateu em sua porta. Tendo acolhido estranhos em sua residência, ambas (mãe e filha) foram facilmente ludibriadas por uma espertalhona, a qual se apresentou com aquele velho papo de que “fizeram uma bruxaria para destruir a vida de sua filha”. E, prometendo desfazer o suposto mal armado por terceiros invejosos, a safada conseguiu arrancar das duas mais de mil reais, dinheiro que elas precisavam para comer, fazer reparos na casa, tratar dos dentes, comprar remédios, etc.
Se coisas deste tipo acontecessem só com os católicos, seria até fácil discursar contra os padres atuais por estes não proporcionarem uma base bíblica sólida para o rebanho de devotos sob os cuidados do patriarcado romano. Porém, é verdade que problemas análogos também ocorrem de uma outra maneira com os ditos “evangélicos”. E, lamentavelmente, apesar de muitos crentes lerem um pouquinho mais as Escrituras do que seus irmãos do catolicismo, ainda assim eles continuam vulneráveis aos lobos devoradores já que o conhecimento que as pessoas leigas têm da Bíblia muitas das vezes é superficial.
Os evangélicos, em sua maioria, não vão aos terreiros de Umbanda, nem consultam horóscopos ou muito menos procuram a suposta adivinhação das ciganas que ficam “lendo” as mãos dos outros nas esquinas das ruas. Porém, tenho visto que este grupo de crentes (o segundo maior do país) cai com facilidade nos discursos marqueteiros das seitas neo-pentecostais que proliferam aos montes por aí e também dizem:
“Fizeram um trabalho de macumba para destruir a sua vida. Venha para a corrente de libertação dos setenta pastores! Aqui a sua vida vai mudar com Jesus!”.
Não é difícil encontrarmos tantos evangélicos, vindos até mesmo de denominações tradicionais, contribuindo financeiramente para os programas de seitas neo-pentecostais na TV. Aos domingos pela manhã, eles estão presentes nos cultos de suas congregações que frequentam desde criança. Só que à noite ou durante a semana, eles preenchem parte do tempo ouvindo as mensagens deturpadas desses enganadores midiáticos.
Confesso que muitas das vezes eu me sinto impotente diante da ignorância do povo e, nestas horas, ainda prefiro ver as pessoas seguindo a ortodoxia das igrejas reformadas mais tradicionais do que estarem disponíveis para qualquer vento de doutrina. Pois em igrejas onde o estudo bíblico é incentivado nas escolas dominicais, o aprendizado teórico de algum modo contribui para o crescimento intelectual do crente.
Por outro lado, sei o quanto é difícil transmitir um conteúdo de informação bíblica para o público capaz de satisfazer os anseios de cada um pela via experimental. Depois de alguém receber uma doutrinação rígida em escola bíblica dominical, todo o aprendizado mental pode perder o sentido diante de situações difíceis e o cristão imaturo acaba indo atrás de coisas que prometem soluções imediatas para seus problemas.
Voltando à segunda epístola de João e levando em conta que o seu autor anônimo estava efetivamente combatendo a ação de enganadores e não à pluralidade teológica dentro da Igreja, posso encontrar ali uma ótima direção pastoral para fins de cuidar dos demais irmãos mais frágeis na fé.
Lendo os três versos que antecedem a passagem bíblica acima citada (os versos 4, 5 e 6 de 2João), podemos observar que o “presbítero” autor da carta fala na prática obediente do amor. Ou seja, junto com o alicerce da verdade está uma vida amorosa capaz de tornar o ensino apostólico real, construtivo, acolhedor, motivador e inclusivo em todos os seus aspectos. Seja quanto á aceitação do outro por sua condição moral ou nas questões sociais.
Será que um crente ainda “bebê espiritual” vai trocar facilmente uma congregação comunitária que o ama de verdade pelas teologias enganadoras de prosperidade?
Pois eu digo que, mesmo se tal irmão cair nas ciladas desses pregadores mentirosos, muitas serão as probabilidades de um retorno rápido ao lar espiritual de origem. Até mesmo porque a sua conduta errante será bem compreendida pelos demais membros da Igreja, os quais o amarão sem reservas e sem julgamentos morais pelo tropeço cometido.
De qualquer modo, chego à conclusão de que a ortodoxia é totalmente dispensável bem como recusável por se tratar de algo incompatível com a pluralidade de ideias e com o próprio desenvolvimento da atividade de pensar. No entanto, o incondicional apego à verdade (o conhecimento real das coisas e o esclarecimento), que deve ser inseparável do amor não fingido, precisa estar sempre presente no meio de uma congregação disposta a servir a Deus. Pois, se não houver um amor sincero, todo o conteúdo transmitido pelas lideranças e mestres acaba se tornando algo frio, distante e muito teórico.
“E agora, senhora, peço-te, não como se escrevesse mandamento novo, senão o que tivemos desde o princípio: que nos amemos uns aos outros. E o amor é este: que andemos segundo os seus mandamentos. Este mandamento, como ouvistes desde o princípio, é que andeis nesse amor.” (2João 5-6; ARA)
Que o amor jamais falte nas congregações, grupos de oração e classes bíblicas existentes na nossa nação! Pois a sua prática é a verdadeira “doutrina” do Messias.
OBS: A ilustração acima foi colhida de um acervo de conteúdo livre da Wikimedia Foundation que pode ser utilizado por outros projetos, sendo um material de domínio público. A gravura refere-se ao padre grego Irineu de Lyon, tido pelos católicos como o Santo Irineu.
Rodrigão, até mesmo a "história real" está "contaminada" com a leitura do investigador, o que não significa necessariamente uma "desvalorização" do todo da obra.
ResponderExcluirEu não diria que a ortodoxia e a doutrina religiosa são necessárias, mas que elas contribuem para uma abordagem em outra leitura dos fatos apurados.
A ortodoxia mostra de onde partimos.
ResponderExcluirNão podemos tanto olhar para trás, pois corremos o risco de nos transformar em uma estátua de sal , como aconteceu com a mulher de Ló.
Mas a saudade dos tempos da ortodoxia, nunca vai deixar de vibrar em nosso peito. Quando menos se espera, ela chega. É como uma onda no mar, como dizia o filósofo-cantor Lulu Santos(rsrs)
Olá, Franklin!
ResponderExcluirConcordo contigo.
A leitura do investigador sempre será passível de erros. Por mais que ele procure compreender a verdade real das coisas, ao invés de perder-se nas fantasias do auto-engano. E vedade seja dita que até hoje nenhum pesquisador contemporâneo conseguiu decifrar de maneira satisfatoriamente esclarecedora aquilo que está escrito nas milenares versões oficiais de cada tradição. E os que tentam dar uma interpretação conforme seus valores para o bem da sociedade de hoje, tipo dar um sentido mais pacífico à "guerra santa" ou uma visão universalista do amor cristão do 4º Evangelho, não pode também perder a consciência de que está contrariando o texto.
Eu mesmo, ao citar 2João, estou procurando de algum modo ressignificá-lo neste artigo e não desvalorizá-lo, muito embora me pareça que o seu autor anônimo (um provável padre grego do século II) estivesse mais preocupado em banir os supostos "gnósticos", aqueles que ameaçavam a visão doutrinária que uma parte da Igreja estava construindo e impondo aos demais. Assim, considero até inegável a existência de uma apologética obtusa e de um anti-judaísmo nos textos do Novo Testamento, além da repressão sexual, ameaças sobre castigo eterno, etc.
Sempre considero nas minhas análises a abordagem ortodoxa, por mais absurda que nos pareça ser. Por mais que ela aranque de mim um enfurecimento ou até mesmo risadas do tipo "esta coisa ridícula e anticientífica não dá pra engolir", ainda assim seria ignorância de minha parte não prestar a atenção.
Abraços.
Caro Levi.
ResponderExcluirConcordo contigo porque a ortodoxia é o que formou a visão religiosa da grande maioria dos cristãos e judeus liberais de hoje. Ainda assim, posso dizer que em relação a minha pessoa, tive uma educação um pouco livre da religião na infância (meu pai era ateu) e me deixei cativar pelo fundamentalismo na minha adolescência, encontrando no meio evangélico algo que o catolicismo não oferecia. E esta descoberta me motivou bastante, apesar de ter me causado prejuízos em diversas áreas da vida.
"Mas a saudade dos tempos da ortodoxia, nunca vai deixar de vibrar em nosso peito. Quando menos se espera, ela chega."
Ou às vezes somos tentados a retornar para ela. Foi o que ocorreu quando me deparei com o caso daquela senhora idosa que mencionei no texto. Vendo sua fragilidade, concordei que ela e sua filha fossem se confessar com o padre, tendo também lido para ela, dentre várias passagens bíblicas, a oferta gratuita da graça de Isaías 55 e as advertências do presbítero em 2João. Ou seja, naquela hora acabei confiando um pouco na ortodoxia considerando o nível de consciência frágil da outra pessoa. Sò que ainda assim, não desanimei quanto à promoção do esclarecimento.