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terça-feira, 31 de agosto de 2010

Risco de vida: planos de saúde recusam a disponibilizar transporte de emergência entre a casa do paciente e o hospital conveniado

Quando assistimos na TV as bem elaboradas propagandas das operadoras de plano de saúde, mostrando imagens de pessoas sendo conduzidas até por helicópteros, muitas das vezes somos induzidos a pensar que o serviço ofertado é seguro e de alta qualidade, um socorro certo nas mais horas incertas.

Tremendo engano!

Pouca gente sabe que, segundo a interpretação que as seguradoras fazem da Lei n.º 9.656/98, o transporte emergencial dos usuários dos planos de saúde não se inclui no rol de cobertura assistencial obrigatória que deva ser prestado pelas operadoras, exceto quando houver previsão contratual ou se tratar do transporte inter-hospitalar de pacientes. E tal posição, pasmem, é lamentavelmente apoiada pela Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), autarquia federal que tem o dever de fiscalizar os planos de saúde.

Algumas semanas atrás, aqui na minha cidade, li um texto publicado na seção de cartas do jornal local A Voz da Serra com o título “Cadê as ambulâncias”, de autoria de Silvia Liborio, em que a leitora relatou um drama por ela vivenciado, compartilhando que a Unimed de Nova Friburgo negou-se a transportar sua mãe de casa até o hospital através da ambulância:

“Na noite de 25/07/10 precisei de ambulância para socorrer minha mãe, com suspeita de ataque cardíaco (cianótica e desorientada), caída no chão da cozinha de sua casa. O 192 informou que não tinha disponível, o Hospital Raul Sertã não atendia ao telefone e só consegui no Day Hospital, ambulância paga, mesmo assim por muito sorte. A Unimed NF informou que não pega paciente em casa, nem pagando. O que está acontecendo em Nova Friburgo? Eu soube que tinha alguém que implantou um serviço particular de ambulâncias na cidade, mas que teve de encerrar as atividades pois foi ameaçado pelo cartel do setor. Ora, não atendem e não deixam os outros atenderem? Alô políticos, só preocurados com o próprio umbigo: Isso é uma vergonha!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! Vou me lembrar do sufôco que minha mãe passou na hora de votar nessas eleições!!!!!!!!!!!!!! E olha que temos vários candidatos médicos...” - originais sem destaque

Após tomar conhecimento da situação e confirmar a omissão praticada pela cooperativa da Unimed Friburgo, através do seu Serviço de Atendimento ao Consumidor (SAC), representei contra esta empresa perante o Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro já que a referida operadora é a que tem o maior plano de saúde aqui em minha cidade, fato que justifica uma atuação de uma das nossas duas Promotorias de Tutela Coletiva na defesa dos interesses da maior parte da população.

Ontem (30/08/2010), quando voltei ao Ministério Público afim de acompanhar a minha representação, fiquei sabendo do seu indeferimento liminar com menção da promoção de arquivamento de um anterior inquérito civil público instaurado em 2003 (IC n.º 128), o qual havia tratado de questão semelhante. Em sua decisão, a 2ª Promotoria de Justiça de Tutela Coletiva de Nova Friburgo acolheu o mesmo entendimento por ela adotado anteriormente, baseando-se, em síntese, na ausência de obrigação legal das operadoras de planos de saúde em prestarem o transporte emergencial de seus consumidores, no sentido de removê-los de suas residências para a unidade de saúde. Foram estes os argumentos do respeitável Promotor de Justiça:

“(...) O Não obstante a causa nobre defendida pelo representante, não resta ao Ministério Público, meios legais de impor às operadoras de planos de saúde a obrigação de disponibilizarem o serviço de transporte aos pacientes, conduzindo-os de suas resistência até o hospital conveniado. Certo é que a legislação vigente, mais precisamente a Lei nº 9.656/98, que dispõe sobre os planos e seguros privados de assistência à saúde, não inclui no rol de cobertura assistencial obrigatória, o transporte emergencial dos usuários dos planos de saúde. Ao contrário, atribui apenas aos planos a obrigação de realizar o transporte inter-hospitalar de pacientes, quando já conduzidos ao nosocômio público por ambulâncias do Município, a quem cabe a prestação do serviço que é caracterizado como público (…) Portanto, conclui-se que não há obrigação legal no sentido de conferir as operadoras de planos de saúde, a responsabilidade pelo transporte de seus consumidores, razão pela qual resta inviável a adoção de qualquer medida pelo Parquet para atender a pretensão deduzida na representação (…)” - original com parágrafos

Igualmente, a promoção de arquivamento do referido inquérito civil, mesmo reconhecendo as deficiências dos serviços de emergência prestados pelo Poder Público, também acompanhou a interpretação da ANS que favorece a pretensão das operadoras de planos de saúde:

“(...) Conclui-se, pois, que os planos de saúde não estão obrigados a transportar seus consumidores, ainda que em situação de emergência. Tal serviço é público, sendo atualmente realizado pelo SAMU. As deficiências do serviço público, contudo, sugerem a necessidade de revisão da lei – por isso os autos foram mantidos na Secretaria, aguardando-se eventual alteração do texto legal. No entanto, como tal alteração não ocorreu, o fato é que, de acordo com a lei hoje vigente, não se pode impor às operadoras de planos de saúde que realizem o transporte que a própria lei excluiu, sob pena de violação ao princípio da legalidade (…)” - original também com parágrafos

Hoje mesmo ingressei com recurso ao Conselho Superior do Ministério Público por entender que a Unimed, ao recusar-se a patrocinar um atendimento de urgência entre a residência do consumidor e a unidade hospitalar, está atentando perigosamente contra a dignidade humana, o que configura um flagrante desrespeito à à saúde e à vida das pessoas, bem como aos princípios básicos da nossa Constituição. Para mim, está claro que a interpretação adotada pela ANS e que fora acolhida pelo Ministério Público acaba obrigando o consumidor a se socorrer através do caótico sistema público de socorro de emergência que, notoriamente, funciona de modo bem precário no nosso país.

Ora, devemos nos conformar tão somente com a existência de normas positivadas, como se o rol de procedimentos obrigatórios das operadoras de planos de saúde estivessem restritos apenas a uma previsão legal taxativa, ou será que não caberia ao Ministério Público e às associações de defesa dos consumidores, como defensores da sociedade, construírem uma interpretação mais extensiva das normais legais e, desta forma, aplicarem o princípio da razoabilidade?

Independente de todas as posições jurídicas que possam ser adotadas, é incontestável a existência de lesão a interesses coletivos e da ocorrência de uma preocupante situação de vulnerabilidade às quais estamos todos expostos. Principalmente porque a má prestação dos serviços de socorro põe em risco vidas humanas, atentando diretamente contra um direito fundamental do indivíduo que é reconhecido pela nossa Constituição.

Certamente que não podemos indefinidamente esperar que a ANS adote uma interpretação mais favorável ou que o Ministério Público resolva ajuizar uma ação civil pública em favor dos usuários dos planos de saúde, a qual também dependeria de um posicionamento da Justiça. Devemos lembrar que este é um ano de eleições e, quando comparecermos às urnas, teremos a oportunidade de escolher os deputados e senadores que farão as leis deste país e que, portanto, estarão investidos de poder para alterar a Lei n.º 9.656/98.

Será que uma nova lei não poderia obrigar as seguradoras a prestar o serviço de transporte de emergência que remova o paciente de sua casa ao nosocômio?

A verdade é que os consumidores pagam caras mensalidades às empresas de planos de saúde, são iludidos pelas omissas informações publicitárias veiculadas nos meios de comunicação, mas, finalmente, quando vão usar os serviços, acabam se sentindo enganados. O descaso praticado pelas seguradoras é revoltante e a ANS está deixando muito a desejar. Este ano mesmo, mais precisamente em maio, a cooperativa Unimed Rio negou-se a prestar um atendimento de urgência à minha esposa que havia tido um aborto espontâneo e se encontrava com o feto morto no seu útero. Naqueles momentos de grande desespero, acabei tomando a decisão de interná-la num hospital público tendo depois ingressado com uma ação indenizatória por danos morais e ainda notificado o caso à ANS para que fosse feito o re-embolso aos cofres públicos.

Infelizmente, grande parte da população do país não está consciente quanto à frequência dessas situações, pois, só quando realmente precisamos acionar um serviço de emergência, como o 192 ou o 193, é que nos damos conta da nossa vulnerabilidade. Passamos a maior parte do tempo anestesiados com o futebol, as telenovelas, os programas de auditório, os sorteios da megasena e as demais distrações do cotidiano, deixando de acompanhar como estão as políticas na área de saúde.

Tudo isso tem me deixado cada vez mais convencido sobre a importância sobre termos um sistema público de saúde que realmente funcione, o que, inegavelmente, contraria diversos interesses porque há mafiosos de branco lucrando com o caos no SUS. Contudo, não são apenas os pobres que, repentinamente, podem vir a precisar de uma ambulância. Pessoas da classe média podem de uma hora para outra passar mal e aí descobrem que, nessas horas, estão todos no mesmo barco. Uma nau a ponto de naufragar nas profundas ondas de um oceano.

Que não nos esqueçamos de todas essas coisas quando sairmos de casa para votar daqui a algumas semanas e que, após a posse dos novos governantes e parlamentares, sejamos capazes de acompanhar os atos do Poder Público. A saúde precisa ser encarada como prioridade na pauta do governo brasileiro!

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