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domingo, 3 de março de 2019

Neste carnaval, mais do que nunca eu sou Mangueira



Desde criança, eu já tinha duas agremiações pelas quais nutria certas afinidades. Uma era o Flamengo, time de futebol pelo qual meu pai torcia alucinadamente e que, desde os primeiros dias de vida, fez-me um seguidor do rubro-negro havendo me vestido com uma fralda com a estampa do escudo do clube. Já a outra simpatia que eu tinha era pela escola de samba Estação Primeira de Mangueira. Ou simplesmente, Mangueira...

Entretanto, jamais fui um fã do Carnaval e nem cheguei a ter grandes paixões pelo futebol. Anualmente, sempre que rolavam os desfiles das escolas de samba do Rio de Janeiro, nos meses de fevereiro e março, torcia para que a Mangueira vencesse. Só que, até os tempos de adolescente, nunca me ligava no samba-enredo de nenhuma delas, sendo que me chamavam mais a atenção os carros alegóricos, algumas fantasias e, logicamente, as mulheres quase peladas cujos corpos e movimentos mexem com a libido de qualquer macho.

É possível que as três vitórias ocorridas durante os anos 80 dessa escola, que tem como símbolo  as cores verde e rosa, possam ter me induzido a torcer por ela, tendo em vista que, em certos momentos de nossa infância ou juventude, procuramos um campeão para nos referenciar. Sem contar que, em 1984, ano da inauguração do Sambódromo, a Mangueira foi a primeira a desfilar encantando multidões. 

Todavia, era inegável o talento dos poetas e cantores mangueirenses. Recordo muito bem de ainda ter pego personagens históricos da agremiação como o intérprete Jamelão (1913 - 2008) e a sambista da velha guarda da escola, Dona Zica (1913 - 2003), a qual fora esposa do fundador Cartola (1908 - 1980). Deste, porém, já não me recordo tanto, mas soube de seu vasto trabalho artístico através dos diversos documentários que até hoje se repetem nas transmissões da TV brasileira.

Pois bem. Em 2019, o samba-enredo da Mangueira, História pra Ninar Gente Grande, eu diria que está "dez, nota dez", como diz a famosa expressão relativa à apuração dos desfiles, criada por Carlos Imperial. Algo mesmo de tirar "a poeira dos porões", enaltecendo os heróis populares no lugar daqueles que sempre foram valorizados pela História tradicional. E a sua letra, de autoria do carnavalesco Leandro Vieira, começa justamente assim, mencionando dois grandes compositores do samba:

"Mangueira, tira a poeira dos porões
Ô, abre alas pros teus heróis de barracões
Dos Brasis que se faz um país de Lecis, jamelões
São verde e rosa, as multidões" 

Valorizando um país que "não está no retrato", a música faz menção da participação histórica das mulheres, dos valentes índios tamoios e dos mulatos. Cita o nome da guerreira negra do período colonial Dandara, a qual foi esposa do líder Zumbi dos Palmares, contando então uma versão diferente do que aprendemos sobre a libertação dos escravos, com uma interessante referência ao movimento abolicionista ocorrido anos antes na então província do Ceará:

"Brasil, o teu nome é Dandara
E a tua cara é de cariri
Não veio do céu
Nem das mãos de Isabel
A liberdade é um dragão no mar de Aracati"

Confesso que, se não houvesse visitado Fortaleza em outubro do ano passado e me inteirado um pouquinho sobre a História do lugar, tais versos do samba não teriam tanto sentido pra mim. Lá cheguei a conhecer o Centro Cultural Dragão do Mar que é uma homenagem ao líder jangadeiro Francisco José do Nascimento (1839 - 1914) que teve grande participação na abolição dos escravos em sua região, anos antes da filha de D. Pedro II sancionar a Lei Áurea.

Dando prosseguimento à letra, o samba da Mangueira finaliza exaltando o movimento dos caboclos na época da sangrenta Independência da Bahia de 02/07/1823, a resistência da população nos anos da ditadura militar e os nomes (no plural) de duas outras mulheres também negras:

"Salve os caboclos de julho
Quem foi de aço nos anos de chumbo
Brasil, chegou a vez
De ouvir as Marias, Mahins, Marielles, malês"

Luísa Mahin, segundo a Fundação Palmares, teria sido uma ex-escrava de origem africana, radicada no Brasil, que teria tomado parte na articulação de todas as revoltas e levantes de escravos que sacudiram a Província da Bahia nas primeiras décadas do século XIX, dentre as quais podemos citar a Revolta dos Malês (1835) e a Sabinada (1837-1838). Foi mãe do poeta e abolicionista Luís Gama havendo a forte crença de que a sua origem tenha vindo do povo Mahi, na Costa da Mina (região do golfo da Guiné), de onde viria o seu sobrenome.

Quanto à Marielle Franco, combativa vereadora da cidade do Rio de Janeiro que foi covardemente morta em março do ano passado, temos nela uma das mais recentes personagens da História brasileira e que precisa ser considerada como uma voz das mulheres, dos negros e dos homossexuais, apesar de haver silenciada pelo poder das milícias que oprimem comunidades. 

Além da sua notável desconstrução da História contada pelas elites brasileiras, a Mangueira trará para a Avenida uma outra novidade que será a sua primeira musa trans, quebrando assim os paradigmas de uma escola tradicional. Trata-se da jovem Patrícia Souza, de 25 anos, que exerce a profissão de cabelereira em Londres. 

Infelizmente, o desfile da Mangueira não será hoje, mas está previsto para a segunda-feira de Carnaval, no dia 04 de março. Vamos, portanto, prestigiar a festa da verde e rosa, e para terminar o post, segue aí um clip do samba-enredo que foi gravado no YouTube, o qual anda fazendo um enorme sucesso.  



Ótima noite de samba, meus amigos!

2 comentários:

  1. Uma narrativa histórica excelente! Que vençam as melhores! E que o brilho do carnaval se irradie pro toda a cidade, apesar do prefeito que temos.
    Uma ótima noite para você!

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    1. Caro Prof. Adinalzir, sem dúvida esse samba-enredo é surpreendente e deve estar incomodando muitas mentes conservadoras. Inclusive a do prefeito aí da capital que, em 2018, na música "Com dinheiro ou sem dinheiro, eu brinco!", foi criticado por essa mesma escola anunciou por haver dito em junho de 2017 que cortaria pela metade a verba dos desfiles das escolas de samba a fim de repassar os recursos para a educação. E, ao elaborar o orçamento para este ano, ele cortou verba para ruas, escolas e hospitais, mas poupou a inchada máquina pública...

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